Por que Lula não decretou uma GLO?

30/01/2023

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na tarde de 8 de janeiro, enquanto a turba golpista invadia e depredava os prédios dos três poderes, o presidente Lula considerava que medida tomar para retomar a segurança da capital. O ministro de Defesa, José Múcio, chegou a aventar a possibilidade da decretação de uma Operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO). A proposta foi rechaçada por Lula, que depois explicaria: “Se eu tivesse feito GLO, teria assumido a responsabilidade de abandonar a minha responsabilidade. Aí sim estaria acontecendo o golpe que essas pessoas queriam”, disse. “O Lula deixa de ser governo para que algum general assuma o governo.”

Não se sabe o que poderia ter ocorrido se o governo federal tivesse optado por uma GLO; as GLOs, lembremos, são operações aprovadas pelo presidente da República nas quais os militares assumem o comando de uma determinada área para garantir a ordem pública. Nesse perímetro, passam a comandar as demais forças de segurança. 

É inegável que havia membros do Alto Comando apoiando as manifestações e que o risco de os golpistas se aproveitarem de cisões internas no Exército, teimosamente criadas por Jair Bolsonaro, era enorme. Some-se a isso a proteção dada aos manifestantes pelo então comandante do Exército Júlio Cesar Arruda, mesmo depois de terem depredado os maiores símbolos do poder da nossa República. Ele teria também ameaçado o ex-comandante da PM do Distrito Federal: “O senhor sabe que a minha tropa é um pouco maior que a sua, né?”.

Lula decidiu, em vez da GLO, fazer uma intervenção federal em Brasília, liderada por um civil. Rompeu assim com a tradição de envolver os militares em situações em que a segurança pública foge ao controle.

Foi o que aconteceu na última vez em que houve uma manifestação contra o governo na capital, em maio 2017, quando o governo Temer aprovou a reforma trabalhista. E já era assim desde o ano de 2010, quando Lula aprovou a GLO no Complexo do Alemão, que entregou o controla da favela ao Exército por mais de quinhentos dias, inaugurando um modelo que seria repetido em outras favelas antes da Copa do Mundo de 2014, e que aos poucos seria expandido para territórios cada vez maiores.

Entre aquela GLO no Alemão e a decisão de Lula no dia do golpe de 8 de janeiro, o que aconteceu foi um avanço despudorado dos militares sobre diversas áreas da administração pública e da política brasileira — e, tardiamente, um despertar da opinião pública sobre os riscos enormes que isso significa. Esse foi um fio que eu busquei desenrolar no livro Dano colateral, da Objetiva.

Entre os anos de 2010 e 2016 foram realizadas 35 operações de GLO, incluindo as Forças de Pacificacão nos complexos do Alema?o e da Mare?, a Copa das Confederac?o?es e as Olimpi?adas de 2016. Os recordistas foram os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer. Dilma autorizou catorze nos primeiros dois anos, e Temer, doze. O ápice, entretanto, aconteceu quando Temer conduziu a Intervenção Militar em 2018, período em que houve mais de duzentos empregos dos militares em favelas do Rio. Temer colocou o general Braga Netto como interventor, entregando a chave da cidade aos militares.

Estudando a evolução das GLOs como vetor de poder político, não é de espantar que, quatro anos depois, Braga Netto, então candidato a vice de Jair Bolsonaro, tenha sido flagrado comandando um “HQ do Golpe” em Brasília, onde fez reuniões sobre como reverter o resultado eleitoral. Também não surpreende que tenha incentivado golpistas acampados a “esperarem um pouquinho” e a não perderem a esperança. Braga Neto faz parte de uma geração de militares que se aproveitou da fraqueza dos governos civis em uma década de instabilidade política para ganhar influência política, quebrar regras, cometer crimes, abusar do seu poder e sair impune.

Além de reforçar a dependência dos governos civis às forças militares, ao trivializar o uso das GLOs, houve um redirecionamento da doutrina militar para pensar a segurança nacional. Reforçou-se, ainda, uma visão corriqueira da caserna — entre os mais radicais e mais antigos — de que a Nova República, período que começou com o fim da ditadura, foi um fracasso; os governantes civis seriam sempre incompetentes e corruptos. Além disso, generais voltaram a falar e a “ser ouvidos com naturalidade”, de acordo com uma orientação do Ex-Comandante Eduardo Villas Boas, e passaram a ser vistos corriqueiramente dando entrevistas em programas jornalísticos como “experts” — caso, por exemplo, do general Heleno, que mantinha no Gabinete de Segurança Institucional militares que propagavam abertamente o golpe de Estado contra Lula.

Após sair do governo, Michel Temer declarou, no final do seu curto e triste governo, que devia muito aos militares. “Eu tenho recebido das Forc?as Armadas um apoio extraordina?rio. Foram mais de onze ou doze operac?o?es [GLO] e, em alguns estados, ate? duas, tre?s ou quatro vezes. [...] Eles te?m dado um presti?gio enorme ao governo”, registrou no seu livro A escolha, uma coletânea de conversas suas sobre sua presidência. “Visitei muitas vezes o general Villas Bo?as, por exemplo, em seu aniversa?rio, quando fui cumprimenta?-lo em sua casa. Essas coisas fazem parte da boa convive?ncia institucional.”

Foi durante o seu governo que o mesmo Villas Boas fez o Tweet que se tornou um marco do avanço dos militares sobre o poder político. Comentando o julgamento sobre a manutenção da prisão de Lula, o general disse que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade” e que “se mantém atento às suas missões institucionais”. Saiu barato — ele mesmo admite — e nenhum dos três poderes sequer criticou a postura do general que fere cabalmente o Código de Conduta Militar, que diz que membros da ativa das Forças são proibidos de se manifestar sobre política.       

Abria-se um dos períodos mais nefastos das relações civis-militares, que culminaria com os acampamentos em frente aos quarteis e a invasão golpista em Brasília.

Há um lado mais sombrio e menos conhecido sobre o avanço dos militares sobre a segurança pública. Segundo minhas apurac?o?es para escrever Dano colateral, desde 2011 ocorreram pelo menos 35 mortes de civis por militares atuando em operac?o?es de seguranc?a pública. Ao acompanhar como são feitas as investigações pela Justiça Militar, aprendi muito sobre como a impunidade continua a reinar na caserna, assim como o desprezo às instituições e até às vidas civis. As investigações são feitas pelos pro?prios militares que, na maioria das vezes, te?m como testemunhas apenas os soldados. Raramente a fami?lia da vi?tima e? ouvida.

No geral, os sobreviventes e as fami?lias ficaram sem socorro, sem auxi?lio legal, financeiro ou psicolo?gico. Em todas as histo?rias que apurei, os familiares indicaram falta ou demora de socorro, e alguns revelaram terem sido ameac?ados quando tentaram pedir por Justic?a.

Isso só é possível porque as Forças Armadas nunca se submeteram ao poder e à justiça civil. Por seu lado, os poderes civis foram lenientes e preguiçosos ao deixar de punir os crimes militares.

Nenhum desses crimes foi punido, assim como não foram punidos diversos outros crimes, abusos e transgressões dos militares, que só se multiplicaram nos anos do governo Bolsonaro. A impunidade permeia toda a relação civil militar na Nova República.

É por isso que, além de refrear o uso de militares em operações de GLO, o governo Lula acertou em trocar, semanas depois, o comandante Arruda pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que dera declarações cabais de apoio ao processo democrático e respeito ao voto. Resta agora avançar para punições efetivas — e não apenas das patentes mais baixas, mas também dos comandantes que foram, no mínimo, coniventes com o golpismo. Afinal, se o Alto Comando tivesse dado uma mensagem clara de que não haveria possibilidade de golpe, não teria acontecido a invasão em Brasília.

Não haveria Golpe se as Forças Armadas tivessem compreendido o seu papel de instituição de Estado e não de governo. E se entendessem que política é coisa de civis, e não de militares. 

Natalia Viana

NATALIA VIANA nasceu em São Paulo, em 1979. Começou a carreira de jornalista aos 21 anos, na revista Caros Amigos. É diretora executiva da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, da qual é cofundadora, desde 2011. Como repórter e editora, venceu diversos prêmios de jornalismo.

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