Odyr, os leões, a pátria e a utopia

28/02/2023

Da última vez que conversei com o Odyr para o Blog, em 2018, A revolução dos bichos estava prestes a ser lançada. No Brasil, no caso. Em seguida, a adaptação de George Orwell para quadrinhos seria lançada em inglês, espanhol, holandês, italiano, romeno, polonês, alemão, turco, grego e francês. Parece que ia ter uma edição em coreano. Posso ter esquecido de algum idioma.

O caso é que, no nosso último papo, Odyr não era um autor multi-internacional. No nosso último papo, aliás, ele ainda morava numa casa a quatro quadras da minha, aqui em Pelotas, e vivia a semirreclusão que chamava de “liberdade pessoal: não me sentir obrigado a atender a campainha”.

Em 2019, ele vendeu os livros para o sebo, deixou a guarda dos originais com um amigo, fechou a casa e partiu para o mundo.

“Eu estava há uns dez anos estacionado em Pelotas e querendo outros ares. Desenvolvi uma fantasia de ser artista errante.” A grana de A revolução dos bichos ajudou no impulso. “O fato de que Revolução vendeu para um bom número de países me deu uma certa modesta tranquilidade. Passei uns dois anos só pintando sem compromisso.”

A errância começou e terminou em Porto Alegre. Em poucos meses, o mundo se fechou não só para Odyr, mas para todos, por conta de uma gripe.

“Quando a pandemia inviabilizou tudo de bom que uma capital podia oferecer, fui me isolar na praia do Cassino, onde estou até o momento. Fim da história. Pouca aventura. A vida de artista errante não era pra mim.”

***

O Leão e a Pátria, a adaptação de dois contos do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937) que Odyr lançou em 2022, foi produzido pré-pandemia e pré-errância frustrada. A acrílica foi aplicada sobre o papel ainda em Pelotas, logo depois de Revolução.

“Lembro que o germe do Quiroga foi encontrar em um sebo uma edição massiva dos contos dele, Obras Escogidas, e que fiquei particularmente atraído pelo escapismo. Estávamos já começando nosso pesadelo: era no segundo turno [de 2018] e já havia uma noção de que Bolsonaro podia ganhar. Já na época o clima de fim de mundo e distopia estava em alta. Então, fazer mais um livro com animais falantes me pareceu reconfortante. Queria fazer algo que fosse o contrário do que lia nas notícias. Porque a cultura inteira me parecia (e parece) deprimida.”

A cultura está deprimida?

“Sim, em todas as partes. Em filmes independentes, nas séries, nas HQs. Talvez um pouco menos em literatura, que tem um ritmo próprio e acompanha mais devagar a cultura como um todo. Mas cultura, como dizia o Godard, é tudo: camisetas, TV, anúncios. Cultura é a regra, dizia ele. Arte é a exceção. Ou devia ser.”

No conto “O leão”, uma cidade onde todos são felizes é sitiada por leões. É a única insatisfação da cidade feliz. Um sábio propõe a solução: casar o leão com uma moça e trazê-lo para viver na cidade feliz. Domesticar a fera. Dá certo.

Quando li ainda no sebo a primeira linha de ‘O Leão’, que falava de ‘uma cidade onde todos eram felizes’, pensei que era isso que queria fazer. Sem ironia. E expandi a noção de felicidade que Quiroga deu à cidade. fazendo dela uma utopia racial, de classes, de gênero.”

Dá para fazer algum paralelo com outros leões que sitiam nossa felicidade? Estávamos conversando naquele mês megapolarizado antes das eleições de 2022.

“A questão e solução que se colocam ali são complexas: assimilar o outro, tornar o outro um de nós. Se fosse entrar nos significados disso, seria mais filosofia que nossa breve conversa pode permitir. Prefiro que os leitores tirem suas próprias conclusões.”

Ele recomendou a conclusão de um leitor em especial: Joca Reiners Terron, que escreveu o posfácio de O leão e a pátria fazendo um paralelo entre aquele leão e a biografia de Quiroga.

Tentei deixar minha pergunta mais clara: Dá para domesticar bolsominions?

“Não sei. Tem pessoas que estão doentes, além do diálogo. Tem pessoas que compactuam com o terror de forma sã e perversa, por interesses. Mas também tem motivos mais complexos, tem o Brasil profundo que a gente não consegue ler. Mas certamente não acredito que quarenta por cento do país seja fascista.”

É aí que entra a segunda história, “A Pátria”.

“Nesse sentido, ‘A Pátria’ tem coisas por dizer que aprecio. Que nossa pátria são nossos afetos. São as pessoas de boa fé. Eu estava muito consciente do significado disso enquanto desenhava. Fiz a história inteira para poder reproduzir essas linhas.”

No conto, animais da selva querem fundar sua própria pátria. Eles vão conversar com um homem e ouvem-no explicar a um menino:

“Lutei quatro anos defendendo minha pátria. O que digo agora é para você, meu filho. (…) A pátria é o conjunto dos nossos amores. Até onde quiser que a alma estenda seus raios, a pátria vai com ela. Cada metro quadrado da terra ocupado por um homem de bem é um pedaço de nossa pátria.”

Depois de Porto Alegre, a próxima parada na errância de Odyr teria sido Montevideo, na pátria de Quiroga. Não aconteceu. Em parte por causa da pandemia, em parte porque “a minha disposição para começar a vida de novo em outro país, com todos os ajustes que isso pressupõe, era menor do que eu supus.”

Ele está há dois anos na praia do Cassino. “Era um bom lugar para se isolar durante a pandemia e ver se o mundo ia acabar ou não. Agora que não acabou, não sei ainda se vou ou fico.”

Ele tem outro quadrinho pronto e já entregue à Quadrinhos na Cia. No momento, está trabalhando em mais um, outra adaptação literária.

Não me contou mais nada sobre o trabalho novo. Eu tentei. Não sei se isso aqui foi uma dica:

“Eu certamente gostaria de ver mais utopias. Por uma questão de equilíbrio. Como Ted Lasso, por exemplo, que se passa numa realidade alternativa onde todo mundo é fundamentalmente bom. O que você pode dizer que é falso, mas, quando você vê uma série nórdica ou inglesa, que se passa em uma pequena cidade onde todo mundo é uma pessoa horrível, bueno, aquilo também não é real.”

Não vou testar se ele está atendendo a campainha no Cassino. Provavelmente não. Parece que as visitas via mensagem privada no Twitter também davam vontade de não ter atendido a campainha (do celular).

“Acabou? Apreciei, mas é hora de abrir o vinho.”

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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