Mariposa vermelha é a nova fantasia apaixonante e empoderadora de Fernanda Castro, que chegará ao mercado em 18 de julho pela editora Suma, selo de ficção especulativa da Companhia das Letras. A trama do livro é permeada de monstros insólitos e corriqueiros, relações intensas e amores imprevisíveis e narra a história de Amarílis, uma jovem que, com a ajuda de um demônio, embarca em uma jornada para enfrentar o passado, descobrir a própria força e assumir sua verdadeira essência.
Fernanda Castro é escritora, tradutora, preparadora e revisora de textos. Mora em Recife com o marido, uma calopsita, duas porquinhas-da-índia, muitas plantas, livros e novelos de lã. Além de vários trabalhos em ficção curta, publicou Lágrimas de carne (Dame Blanche), O fantasma de Cora (Gutenberg) e o conto Não vai ser a primeira, nem a última na primeira edição da Revista Suprassuma.
Leia abaixo o primeiro capítulo de Mariposa vermelha
Quando o convoquei, ele pareceu vir de má vontade. Diferente da forma elegante e fluida com que achei que chegaria, envolto em fumaça, ele caiu tropeçando entre as folhas de amoreira e quase derrubou o prato que eu havia enchido de sangue em sua homenagem, os braços compridos arranhando o piso de tacos.
Ele encolheu o corpo, ainda tentando entender onde estava. Parecia surpreso. Parecia um lagarto. Acocorado, os joelhos ossudos quase na altura das orelhas, ergueu de repente a cabeça e me encarou com um par de olhos que eram completamente pretos e sem pupilas.
O gesto me fez recuar um passo para as sombras do cômodo. Não pela primeira vez, tive dúvidas quanto ao que eu pretendia fazer ali. Parabéns, Amarílis, eis o seu demônio, pensei. Agora faça com que ele não a devore.
Obriguei-me a ficar parada e a manter os punhos fechados ao lado das coxas. Minha voz saiu firme:
— Pelo contrato de magia que nos rege, você me deve um favor.
A boca do demônio se repuxou nos cantos em um sorriso desdenhoso, e algo pareceu se eriçar nas laterais de sua cabeça. Ele farejou o ar. Os dentes afiados eram muito brancos. Seu corpo era grande, cinzento feito concreto e rígido, a pele formada por pedaços de tecido sobreposto como uma couraça de escamas. Algumas partes estavam descamando.
— Isso vai depender de quem realizou a invocação — ele disse, preguiçoso, passando um dedo terminado em garra pelas bordas do prato a seus pés. A unha remexeu o sangue espesso e meio coagulado do recipiente em círculos amplos e lentos. Depois, ele ergueu a mão e levou o indicador até a boca. Meu estômago se contorceu. — Que escolha exótica. Onde conseguiu esse sangue?
— Isso importa?
Devagar, ele se ergueu, as pernas e os braços delgados contraindo-se sob as escamas, exibindo a musculatura, os lábios manchados de vermelho ainda sorrindo. Parecia saber de algo que eu ignorava, e parecia feliz com aquele trunfo. Eu não fazia ideia de que eles pudessem ser tão altos. Mas, a bem da verdade, eu não fazia ideia de que demônios pudessem ser coisa alguma.
Ele atravessou o círculo de folhas secas, e o chão do sobrado velho rangeu sob cada um de seus passos em minha direção. Percebi que se movia um tanto recurvado, e que mancava levemente de uma das pernas, os braços pendendo. Havia tiras de pele solta e manchada em seu joelho. Mesmo assim, formava uma silhueta impressionante.
Um nó se formou em minha garganta conforme ele abaixava a cabeça para me olhar nos olhos, nossos narizes quase se tocando. Ele cheirava a florestas úmidas e pedras de calcário aquecidas pelo sol, junto com alguma outra coisa antiga. Um cheiro que eu sentia conhecer de certa forma, mas do qual não era capaz de me lembrar.
— E o que você deseja? — ele perguntou.
Embora eu soubesse a resposta, outras ideias ameaçaram se enroscar em minha língua. O que eu desejava? Bem, para começar, desejava poder voltar no tempo e mudar várias coisas, inclusive eu mesma. Desejava parar de sentir o que eu sentia e de temer o que eu temia. Desejava dormir à noite e não sonhar com o rosto de minha mãe. Arrancá-la de mim. Mas afastei os pensamentos e me agarrei à resposta que eu havia ensaiado.
— Quero a morte de um homem.
O demônio negou com a cabeça.
— A homenagem que me fez não cobre o preço de tirar uma vida humana. É interferência demais, e não há magia o bastante. Peça outra coisa.
— Não quero que você o mate — retruquei, encarando aqueles olhos sem fundo, soando mais confiante do que realmente me sentia. — Quero apenas que entregue o homem para mim. E então eu o mato.
As sobrancelhas do demônio arquearam de surpresa, e uma risada fez com que os dentes afiados aparecessem mais uma vez.
— Você? Você vai matar um homem? — ele riu de novo, e o olhar debochado que me lançou foi suficiente para fazer meu rosto esquentar.
Eu sabia o que ele enxergava quando olhava para mim. E eu sabia o quão desamparada a imagem devia parecer. Minha pouca altura. Minha silhueta cansada sumindo nas dobras da saia e da camisa amassada, minha pele manchada de sol até formar sardas, meu cabelo cortado na altura do ombro, formando uma moldura de cachos ao redor do rosto. A sombra de um hematoma cobrindo meu queixo. Meus olhos castanhos e comuns.
Quando as pessoas me olhavam, elas viam uma moça bonitinha e indefesa, castigada pela vida. Um bichinho vulnerável, inofensivo, mas sem atrativos o suficiente para que valesse a pena me resgatar em meio aos cães.
Então, e por isso mesmo, forcei-me a sustentar uma expressão mais dura e cruzei os braços, porque havia algo dentro de mim que as pessoas não percebiam de imediato e que eu precisava mostrar para o demônio. Certa loucura. O vazio hereditário de minha mãe.
— Eu invoquei você até aqui, não invoquei? — respondi.
Ele pareceu se divertir ainda mais com aquilo, como se meu desafio fosse algo estimulante. Como se eu fosse incapaz de captar a ironia na situação. De novo aquelas coisas despontaram em sua cabeça, e dessa vez pude discernir as protuberâncias afiadas que se eriçaram e depois voltaram ao lugar com a mesma diligência que os espinhos dorsais de um lagarto ao ser provocado.
— Pois muito bem — o demônio disse, voltando a empertigar o corpo e me estendendo uma daquelas mãos cheias de garras. — Dou um jeito de colocar esse homem no seu caminho. Ou você no caminho dele, tanto faz. Mas você vai ter que se virar com o resto, e vai ter que fazer o que digo. Se concorda com os termos, basta me contar seu próprio nome e apertar minha mão para selar o pacto. E então estarei preso a você.
Hesitei. Sabia quantas brechas aquele acordo dito em palavras simples deixava de cobrir. Todas as maneiras com as quais ele podia me enganar ou agir em benefício próprio. A República deixava bem claro que somente pessoas tolas e desesperadas aceitariam entrelaçar a vida aos caprichos de uma magia. Ou de um demônio. Havia motivos para aquilo ser proibido. Mas eu estava para além do desespero. Eu estava com raiva.
— Amarílis — respondi, colocando minha mão por cima da dele. As garras se fecharam, a pele áspera e morna roçando em meus dedos. Ainda assim, embora as unhas tenham pressionado meu pulso, o aperto dele foi mais gentil do que eu esperava. E então, devagar, o demônio abaixou a cabeça e beijou o dorso de minha mão.
Um pouco do sangue coagulado em seus lábios grudou em minha pele. Senti o rosto esquentar outra vez, desconfortável com o contato inesperado, inexplicavelmente atraída por aquela marca vermelha contrastando junto à cor de bronze em meu pulso.
— Está feito — ele disse, e, em outra circunstância, o peso daquela afirmação proferida em tom grave teria sido suficiente para me deixar assustada. Mas quando olhei de novo em seus imensos olhos pretos, enxerguei apenas meu próprio reflexo, e o rosto que vi ali não parecia sentir nada além de cansaço.
Tão rápido quanto surgiu, o momento solene entre nós dois foi quebrado. O demônio soltou minha mão com a mesma praticidade despreocupada de um caixeiro-viajante que acaba de vender algum cacareco sem valor. Com um suspiro alto, ele descansou os braços ao lado do corpo e começou a olhar em volta. Não havia muito com o que se familiarizar, apenas o apartamento minúsculo de uma jovem solteira de poucas fortunas, com o papel de parede desbotado em espirais cor de creme. Ficava no segundo andar de um sobrado, acima da loja de bebidas pertencente ao senhorio do edifício — um homem detestável que havia denunciado dezenas de pessoas durante o Regime. A mobília era simples e gasta, com exceção da máquina de costura apoiada em uma das paredes, juntando poeira. Ramos de amoreira recém-colhidos enchiam a mesa da sala.
O demônio de fato não pareceu impressionado, embora não tenha feito comentários. Mas então seus olhos foram atraídos para a varandinha da frente, e ele se arrastou até lá com aquele andar meio trôpego. Como não havia nenhum manual de boas maneiras sobre o que fazer com um demônio depois de selar um pacto, eu o segui, um tanto apreensiva, até a sacada. Ali, o chão cimentado estava frio sob meus pés descalços.
Ele apoiou os braços na grade espiralada de metal, as mãos unidas pendendo para fora com as garras, e ergueu o rosto para olhar o céu. Parecia quase casual naquela posição, a silhueta meio iluminada na penumbra da cidade que dormia. Faltavam algumas horas para que a massa trabalhadora de Fragária começasse a se mexer, quando então os garotos distribuiriam o jornal da manhã, os verdureiros viriam de porta em porta e as balsas começariam a deslizar pelos canais. Espremi o corpo com cuidado para passar sem encostar no demônio. O espaço estreito de cimento comportava apenas duas pessoas de pé, ou um demônio e uma humana muito pequena. Observei seu rosto suspirar e encarar as estrelas. O brilho delas aparecia refletido em seus olhos enormes.
— Faz algum tempo desde a última vez que estive aqui — comentou.
Eu também não sabia como conversar com um demônio, então apenas fiquei quieta. Não fazia ideia do que ele queria dizer com “aqui”. Mas ele insistiu:
— O homem que quer matar… É o mesmo que deixou essa marca em seu queixo?
— Foi um acidente de trabalho — menti.
Os dentes brancos se insinuaram de novo. Talvez ele pudesse farejar minha mentira.
— Onde aprendeu a fazer um ritual de invocação?
— Você tem um nome? — Eu não queria ser a pessoa respondendo às perguntas. Já estava desconfortável o bastante com um estranho em casa.
O demônio sorriu.
— Pode me chamar de Tolú.
— O quê, como o xarope?
— Como o xarope.
Às vezes, um dos boticários da cidade aparecia com um pouco de xarope de bálsamo de tolu para vender entre as funcionárias da fábrica, para ajudar as mais sensíveis a desentupir os pulmões cheios de fiapos de algodão.
Abri a boca para fazer outra pergunta, uma centelha inesperada de curiosidade queimando por dentro. Em vez disso, voltei a me calar. Eu nunca havia visto nenhum outro da espécie dele, e minha mãe não tivera tempo ou disposição para me explicar muita coisa para além do senso comum. As magias dela nunca ousaram chegar tão longe. Não até aquele dia. Então apenas me debrucei e olhei eu mesma para as estrelas, fingindo não me importar com a proximidade daquela pele cinzenta e cálida no batente da varanda.
Mas Tolú baixou o rosto para mim.
— Ainda não me falou quem é o homem que deseja ver morto.
Hesitei, engolindo em seco, ainda encarando a noite. Meu rosto formigou, e percebi que eu estava sentindo vergonha. Ele com certeza me acharia idiota ao ouvir o nome. Era uma ideia idiota, afinal. Era como uma abelha planejando a morte de um falcão. Talvez eu pudesse aplicar uma ferroada, às custas de minha própria vida, mas que diferença faria o ferrão de uma abelha no grande esquema das coisas? Mas o olhar de Tolú queimava em minha pele, e por fim acabei murmurando a identidade do homem que eu desejava ver morto.
Ao entender de quem se tratava, a gargalhada de Tolú escapou pelo ar frio da noite e encheu o sobrado, seus chifres despontando.
— Se tivesse me dito antes, eu exigiria pelo menos o dobro daquele sangue.
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