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Por Renan Nuernberger
A poética de Marília Garcia se constitui a partir de um aparente paradoxo: o movimento um tanto errático do pensamento especulativo, que se desdobra estruturalmente na incorporação de outras formas (como o ensaio), é atravessado por um constante desejo de ancoragem, que se replica na invocação do leitor como parte integrante da tessitura dos poemas. Disso resulta uma produtiva reflexão, ecoada por uma linguagem que se quer sempre bifurcada, marcando a cisão entre o passado, inscrito na mancha fixa dos textos nas páginas, e o presente, instaurado na fluidez de cada nova leitura – seja nas performances da poeta, também referenciadas explicitamente no corpo dos poemas, seja na voz interna de todos nós, leitoras e leitores.
O descompasso entre essas duas marchas faz com que os poemas de Garcia produzam, a um só tempo, indeterminação, enfatizando zonas obscuras no próprio processo de escrita, e concreção, propondo análises iluminadoras acerca de objetos e fenômenos do mundo. E isso aparece sintetizado no título de seu novo livro, Expedição: nebulosa (Companhia das Letras, 2023). Se o primeiro termo assinala o “deslocamento pelo espaço”, relacionado mais com a “passagem/ do que com a/ paisagem”, o segundo pontua precisamente o esforço do “trabalho paisagístico”, cujo intuito é dar a ver o “pedaço de país que a vista alcança”. Ambos os gestos, sempre simultâneos, fundam uma espécie de repetição disruptiva, dentro da qual o retorno é uma maneira de desvendar minúcias ainda inéditas nos percursos já trilhados.
É instigante, por exemplo, observar a renovação trazida pela filha no poema de abertura do livro, “história natural”:
sempre disseram
que eu tinha os olhos
do meu pai
cabelo estatura
queixo caligrafia
– cada coisa de uma tia
os gestos da minha mãe
hoje olho minha filha
e só consigo ver
ela própria:
rosa é uma rosa. é uma rosa
é uma rosa
[...]
Se, pelo olhar dos outros, a imagem do eu compõe-se de rastros do passado, mantendo viva a linhagem familiar na fisionomia e nos trejeitos, seu olhar atencioso, porém, enxerga na filha a imagem da própria filha, concentrada na reiteração do nome “rosa”, cuja força poética se engendra, por sua vez, como citação de Gertrude Stein. Ou seja, os vínculos hereditários projetam-se no olhar da mãe/poeta, ainda que deslocados pelo jogo literário – e como não pensar em outros ecos mais recônditos, como a implícita oposição aos versos de “Resíduo”, de Carlos Drummond de Andrade (“De tudo fica um pouco./ Fica um pouco do seu queixo/ no queixo de sua filha”)?
Há aqui um desvio estratégico que não se confunde com a reprodução vazia da tradição (familiar ou artística), nem com o gesto descarnado de ruptura com esta mesma tradição, preferindo operar num registro deliberadamente mais incerto, numa oscilação atenta às mínimas diferenças. Veja-se, nesse sentido, as variações em torno de William Carlos Williams (“tanta coisa depende/ de uma caixa vermelha/ fechada/ contendo abelhas/ gatos ou galinhas”) ou da reformulação ao rés do chão de T. S. Eliot:
diante da janela
ele é alto e verde
fincado num terreno de pedras
pinho pinheiro
parece parado
mas se olho bem sinto um leve tremor
metros de árvore tombando
pro lado é assim que o mundo
acaba:
bang
entendo
que chegou o fim
o que deve sobrar é a cor
Se a iminência de um possível fim do mundo comparece, em Expedição: nebulosa, indiciando os perigos reais que configuram o momento presente, há também o corajoso exercício de imaginar um mundo depois do fim – feito de perdas e de destroços, mas também de cor. Desse modo, um verbo como “quebrar” pode adquirir uma conotação positiva, seja na quebra do silêncio (em “escreve um poema pros adultos”) ou na quebra do asfalto pelo lento movimento das raízes das árvores (em “então descemos para o centro da terra”).
Não há nisso idealização, no entanto. Marília Garcia abre as janelas do poema, como na letra de Caetano Veloso, “para que entrem/ todos os insetos” – e vale assinalar que a canção popular, esse nosso repertório partilhado, está presente no livro (“os meus amigos são um barato”). O que há, aqui, é uma verdadeira exploração, que se engendra até as últimas consequências, “sobre o timing das coisas/ sobre ir desdobrando/ a experiência/ até chegar/ ao fim”.
Expedição: nebulosa, portanto, não é um livro sobre o luto, mas de um efetivo processo de luto, no qual as incontornáveis perdas – da própria mãe, do amigo Victor Heringer, de Emmanuel Hocquard, da paisagem diária da cidade natal – são elaboradas por diálogos impossíveis entre Narciso e Eco, em que o eu encontra as respostas que procura dentro de sua própria fala. Em outras palavras, formulando uma “elegia inversa”, Garcia “invoca a memória/ para trazer algum elemento para o presente/ [...] tentando refazer o passado” e o “[...] projetando pra frente (futuro)”.
Não à toa, um dos modelos artísticos desse pequeno deslocamento é a obra echo, de Richard Serra, cuja presença ostensiva (“duas peças verticais de 18 metros de altura/ estão ancoradas no chão) é “de algum modo escondida/ da reta de arranha-céus que é a av. paulista”. Na falsa simetria das duas peças, Marília Garcia projeta também sua própria repetição disruptiva:
apesar de iguais não têm a mesma angulação
apesar de iguais são diferentes
A imagem da cidade-palimpsesto, recuperada de Haroldo de Campos, é ela mesma mais um modelo para a dupla operação de Garcia: sobrepondo os mapas do Rio de Janeiro e de São Paulo, a poeta só se encontra quando se perde (“isso tudo acontece apenas distraidamente”), por “um deslocamento diagonal” em que vislumbra também alguns lampejos do futuro:
todo dia a paisagem é a mesma
mas a cada vez que olho ganha
nova camada
fecho os olhos e agora é paisagem na
memória superfícies
sobrepostas
buscar nessas camadas
um detalhe que venha do futuro
um grão de estrela pairando ali
discreto no ar
uma pequena diferença que mostre
o que está a caminho
[...]
Seria possível lembrar muitos outros “sismos e estremecimentos” que Marília Garcia recolhe e elabora em Expedição: nebulosa. O tímido “ruído do tempo” torna-se, neste livro, carregado de sentido por um trabalho contínuo de escavação, realizado com múltiplos instrumentos. Destaco, por exemplo, a sobreposição entre a etimologia de “tutoia” (“eu fico imaginando uma espécie de fluxo de areia/ passando por essa rua”) e o “eco das memórias” no ponto exato da sede do antigo doi-codi (“órgão submetido ao exército/ onde presos políticos foram covardemente/ torturados e assassinados”).
Em dado momento, a poeta nos lembra que “não ter onde pisar é estarrecedor” – construindo mais um eco com “estarrecer”, i.e., “cair por terra de pavor”. Todavia, aqui, o medo de afundar, no passado ou no presente, não é paralisante. Ao contrário, mobilizando experiências individuais (lagartas no quintal, fotografias na praia, mapas pintados de vermelho) e coletivas (as transformações da cidade, a violência estatal da ditadura), Marília Garcia nos convida para seguirmos juntos nesta Expedição: nebulosa, cujo quinhão de descoberta, assim informa o título, ainda está em aberto. Afinal, arrancar alegria ao futuro, mesmo que este sequer exista, é um dos maiores desafios da poesia.
****
Renan Nuernberger (São Paulo, 1986) é poeta, crítico e professor de literatura. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, organizou a antologia Armando Freitas Filho (EdUERJ, 2011), para coleção Ciranda da Poesia, e o volume de ensaios, Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas / Fapesp, 2018), este último em parceria com Viviana Bosi. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017).
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