Entrevista com Oswaldo de Camargo

08/08/2023

Oswaldo de Camargo é um desses raros escritores que conseguem trafegar por diferentes gêneros com igual assombro. Ele estreou na literatura há 62 anos com 15 poemas negros, cujo prefácio foi escrito por Florestan Fernandes, que o definiu como “essencialmente um poeta”. Nove anos depois, porém, ele decidiu se arriscar na prosa, e o resultado foi O carro do êxito, livro de contos igualmente celebrado por apresentar uma voz negra em pleno domínio da forma.

Nascido em Bragança Paulista em 1936, Oswaldo de Camargo estudou música e humanidades no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz e foi revisor do Estado de S. Paulo, redator do Jornal da Tarde e diretor de cultura da Associação Cultural do Negro, além de colaborar com diversas publicações como Niger, O ébano e Cadernos negros. Em 2021, a Companhia das Letras deu início à reedição de sua obra com O carro do êxito. Em seguida, vieram os versos de 30 poemas de um negro brasileiro, que reúne os 15 originais publicados em 1961 e outros 15 escritos nas últimas décadas. Em 2023, a novela A descoberta do frio. São livros capazes de extrair sentimentos múltiplos, marcados pela elegância e um rigor da língua que não deve nada aos autores que o influenciaram, como Adonias Filho, João Antônio, Fernando Sabino e Thomas Mann.

Na entrevista abaixo, Oswaldo de Camargo traça um panorama de seus percursos literário e pessoal, bem como do movimento negro no Brasil. Ter contato com sua obra em 2023 é um alento, mas também serve de aviso firme. Em suas próprias palavras, a respeito de 30 poemas de um negro brasileiro, a leitura de seus escritos “leva ao exame de sua importância para avaliar sobre como se encontra hoje a situação do negro que faz da arte, sobretudo da literatura, o seu instrumento com o intuito de colaborar para a solução do secular problema da desigualdade em nosso país”.

Florestan Fernandes definiu o senhor como “essencialmente um poeta”. Mas seus contos são igualmente exuberantes, contundentes. Como se deu essa aproximação com a prosa?

No meu caso, foi muito difícil a passagem do verso para a prosa. O verso sustentava minha procura de expressar-me; o que eu havia escrito em prosa ficcional, nos meus 15, 16 anos, quando era seminarista no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto (SP), resumia-se a trabalhos para as lições de português, com temas dados pelo professor, no caso o padre Edvald Berg, holandês, muito severo e exigente, o que me fez muito bem. No entanto, eram temas que nenhuma relação tinham com minhas experiências de adolescente negro que aos 12 anos encontrou portas fechadas em seminários de São Paulo por motivo da cor, órfão aos sete anos, de origem mais que obscura, pais e parentes paupérrimos, todos analfabetos. História longa, que pretendo contar em minhas memórias.

A expressão de Florestan Fernandes “essencialmente um poeta”, no seu histórico prefácio, me surpreendeu. E me entusiasmou para fazer do verso o veículo para me expressar como negro, o modo de me dizer com a palavra diante sobretudo dos frequentadores da Associação Cultural do Negro, em São Paulo, que, de algum modo, abrigava uma espécie de elite cultural afro-brasileira que apreciava literatura.

No entanto, meus trabalhos, no Seminário, em prosa ficcional não ficaram esquecidos e foram certamente o meu impulso inicial para escrever prosa. Guardo carinhosamente um caderno em que estão recolhidos alguns desses textos. Um deles, “A morte de Gonçalves Dias”, escrito com caneta tinteiro preenchendo nove páginas, e outros, cujos resultados não ouso comentar, entre eles “Quando voltar a primavera”, “Fascinação do pano verde”, “Memórias dum peixe (de aquário)”. Então, após ter saído do Seminário, em 1954, com 17 anos, chegando aos 22 comecei a ler, com mais afinco, livros de ficção.

Abreviando: alguns autores de que me aproximei nesse tempo me deslumbraram; para lê-los, varei madrugadas após sair do Estadão, onde eu era revisor, com horário das 22h15 à 2 da manhã, por aí.

Creio que dessas leituras ficaram ressonâncias que persistem até hoje, em minhas novelas e contos. Memórias de Lázaro, de Adonias Filho; O senhor do mundo, de Octávio de Faria; O encontro marcado, de Fernando Sabino; O valete de espadas, de Gerardo de Melo Mourão; e, já nos meus quarenta e tantos anos, a leitura apaixonada de Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, somando-se aos traduzidos, como A montanha mágica, de Thomas Mann; O idiota, de Dostoievski, foram acentuando os traços permanentes do essencialmente um poeta, mas já agora buscando teimosamente escrever prosa… É essa permanência do essencialmente um poeta, creio, que marca a maioria dos meus textos de ficção, mesmo diante de uma temática tão difícil de expressar com literatura que é ser neste país um negro brasileiro.

 

A antologia 30 poemas de um negro brasileiro traz a íntegra de 15 poemas negros, publicados pelo senhor em 1961. Como o senhor avalia a importância, para a sua trajetória e para o movimento negro, aquela publicação, há 60 anos?

Em 1960, com 24 anos, eu estava fundamente inserido na vida cultural e social da Associação Cultural do Negro, em que se reuniam vários remanescentes de históricos movimentos sociais e culturais transcorridos na década de 1930-40, como a Frente Negra e a Imprensa Negra, entre eles José Correia Leite, um dos idealizadores da Associação; Jayme de Aguiar, expoente da Imprensa Negra; tenente Rosário, pai da futura deputada Theodosina Ribeiro; o agitador cultural Henrique L. Alves; Henrique Cunha, participante assíduo nos movimentos culturais de negros transcorridos entre 1930 e 1950, e tantos outros.

Por ter sido seminarista, com bom ou regular conhecimento de português, latim, francês e grego, e também organista e pianista erudito, eu era apreciado como motivo de respeito e talvez até algum orgulho no que tocava ao negro, visto secularmente como incapaz de produções do espírito, sem transcendência, raramente conseguindo ombrear-se culturalmente com o branco, dono do Ocidente.

Florestan Fernandes, professor da USP e que já havia realizado em 1959, com o sociólogo Roger Bastide, a pesquisa “Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo”, era muito respeitado nos meios que lidavam com Sociologia.

Nascido em 1920, era já famoso, aos 41 anos, quando comentou meus 15 poemas negros. O prefácio dele para esta coletânea poética, com selo da Associação Cultural do Negro, deu-me enorme visibilidade como poeta e como intelectual negro. Foi publicado, algum tempo depois, na Revista Anhembi, depois no livro O negro no mundo dos brancos, em que se encontram vários textos dele sobre a realidade negra brasileira. O que na década de 1970 passou a se chamar formalmente Movimento Negro era nos anos 1950 e 1960 o esforço realizado pelas associações culturais negras para inserir o elemento afro-brasileiro no mundo da igualdade e do respeito. Muita gente do futuro Movimento Negro bebeu nessa fonte. O prefácio de Florestan Fernandes para o meu livro cresce em importância com a inserção dele em 30 poemas de um negro brasileiro, por uma grande editora como a Companhia das Letras. Após 60 anos, esta edição leva ao exame de sua importância para avaliar sobre como se encontra hoje a situação do negro que faz da arte, sobretudo da literatura, o seu instrumento com o intuito de colaborar para a solução do secular problema da desigualdade em nosso país.

 

Publicados em 1972, os contos de O carro do êxito trazem uma voz consolidada, que pensa a existência negra em diversos aspectos da sua intelectualidade. A música, pode-se dizer, atua como um dos fios condutores do livro. Qual era — e ainda é — a sua relação com a música?

O carro do êxito foi de fato uma novidade no meio cultural negro em São Paulo e na literatura brasileira em geral. O escritor negro, em número irrisório, não escrevia ficção. Tenho a impressão de que a prosa era vista como um gênero menor, faltando-lhe a luminosidade da poesia, que já havia dado para as letras nacionais um poeta grande como o João da Cruz e Sousa e uma poetisa notável como Auta de Sousa. (Castro Alves não era ainda visto como mestiço, muito menos arrolado como negro, tal qual se está fazendo hoje).

Eu tocava piano e compunha, do meu modo. Cheguei a pensar em ser compositor, adquiri e folheei vários compêndios de teoria, harmonia, tentei obter conhecimento de Contraponto, mas… E o dinheiro para um bom curso ou uma eventual estada na Europa para aperfeiçoamento? O pouco que restou de minhas composições, criadas nos meus 19-25 anos, não resiste a uma análise honesta. Não tive bons mestres ou me faltou dom para ser autodidata.

Concluo, então: minha prosa é, muitas vezes, a prosa de alguém que gostaria de ser músico, tanto que em vários contos o personagem é mesmo músico, como acontece com “Civilização”, “Cadê o oboé, menino? Toca aí o oboé!”, “Niger”.

É com naturalidade que aparecem nos meus textos gente tocando piano, como se lê em “Negrícia”; o harmônio, tocado na igreja do Rosário dos Homens Pretos, no Paissandu, qual se lê em “Niger”; o adolescente Neco batucando na caixa de engraxate…, como está em “Negritude”.

A música caipira que meu pai fazia na Fazenda Sinhazinha Félix, hoje Fazenda do Trigo, em Bragança Paulista, onde nasci, foi a primeira espécie de música que ouvi antes de chegar aos 6 anos. No fundo, sou um caipira afro-brasileiro perdido entre o erudito e o popular.

Devo muito à música. O primeiro livro que adquiri com meu trabalho foi Mar violento, de Daniel de Queiroz, em 1955. Paguei orgulhosamente com o dinheiro de uma missa tocada na igreja do Rosário dos Homens Pretos: 30 mil reis era o pagamento para cada missa.

Não existo sem música.

 

Um dos grandes contos de O carro do êxito é “Por que fui ao Benedito Corvo”, em que o senhor exibe uma percepção aguçada de experiência urbana na São Paulo dos anos 1970. Qual é a sua relação com a cidade e de que maneira ela influi na sua literatura?

Concordo. Em Benedito Corvo o personagem carrega, como um inarredável peso, a angústia de não ser, não ser visto, assistindo à cidade se agigantar, cada vez mais rica, “sem saber da sua cara”.

O título do livro é O carro do êxito, mas cadê o êxito?

Os personagens de “Por que fui ao Benedito Corvo”, de “Niger”, de “Civilização” e vários outros, como Damião, no conto do mesmo nome, estão ao encalço do sucesso, em um cenário como São Paulo, áspero sobretudo para o afro- brasileiro, que desde 1890, com uma imprensa alternativa (lembre-se a publicação A Pátria), já incluía nos seus propósitos a necessidade de mostrar que também era civilizado, abater os efeitos da secular servidão e de uma abolição que, nas palavras de Carlos de Assumpção no seu poema “Protesto”, “foi um cavalo de Troia”, em suma, mostrar sua humanidade e seu brilho na cidade, ter estatura de cidadão, com igualdade e respeito. As referências às muitas andanças por vários bairros ou logradouros da Pauliceia, entre eles Cambuci, Praça Buenos Aires, Barra Funda, contidas em “Por que fui ao Benedito Corvo”; Jardim Paulistano, no conto “Louçã”; Praça da República, em “Civilização”; são impulsionadas pela própria vida do autor que, revisor no Estadão, o maior jornal do país, trabalhando até às 2h ou 4h da madrugada, ficava zanzando horas pela cidade, sozinho com seus pensamentos. Na verdade, a referência a esses espaços é demonstração de meu amor à cidade, merecedora de menção ficcional nos meus contos. Sem dúvida, para aguçar meu olhar sobre São Paulo fui influenciado por vários autores, como João Antônio, com Malagueta, Perus e Bacanaço a que já me referi neste texto e cronistas que olharam amorosamente São Paulo, da estirpe de Fernando Góes, Luís Martins e, por que não?, algumas poesias de Mário de Andrade. Tenho que citar a jornalista e cronista Helena Silveira, que muito me marcou com o romance Na selva de São Paulo É um universo demais variado, que, em muitos passos, me inspirou para trazer em 1972, na condição de contista, minhas experiências de viver, como negro, na maior e mais trepidante cidade do País.

 

Como nasce um poema de Oswaldo de Camargo? Que tipo de matérias e observações levam o senhor a escrever?

Nasce da necessidade de me transcender. É muito difícil entender bem o que escrevo, sobretudo em poesia, sem levar em conta a observação de Florestan Fernandes no prefácio para 15 poemas negros: “o fato de ser negro tem tanta importância quanto outras circunstâncias (como a de ser brasileiro, católico marcado por experiências místicas singulares etc.)”.

Creio que a síntese dessa observação, sobretudo no que diz respeito ao meu catolicismo, pode ser encontrada nos versos de “O estranho” e de “À Senhora Aparecida”, na segunda parte do livro, intitulada “Mais 15”. É como negro que, em “O estranho”, convido, fraternalmente: Vinde, provai do meu pão!/Abancai-vos a esta mesa, se conheceis quem eu sou!/ Assentai-vos, meus senhores, / provai do meu pão de fel,/ repasto useiro em família […] Eu vos convidei, senhores!/ Provai, provai do meu pão!

Sentar-se à mesma mesa, fraternalmente, como igual, comemorando a alegria de estar vivo e estar atuando para a felicidade geral, é o meu catolicismo, presente em bom número de meus poemas e muito na novela “Oboé”, publicado há alguns anos pela ECA, da USP.

 

A segunda parte de poemas de um negro brasileiro” traz versos escritos entre 1984 e 2017. Qual a diferença desse poeta para aquele de 1961? E o que o conjunto dessa obra lhe revelou para si mesmo, ao revisitá-la?

A diferença é inevitável. Primeira: nos meus 23 anos eu era recém-saído do influxo da leitura de românticos e parnasianos. Dos parnasianos sofri muita influência de Alberto de Oliveira, o mais formal da tríade, formada por ele, Raimundo Correia e Olavo Bilac.

Dos poetas negros que escreviam na época o que tinha nome mais reconhecido era Solano Trindade, que publicou em 1961 uma reunião de seus poemas com o título Cantares ao meu povo, livro muito apreciado, mas dele não tive nenhuma influência.

Acredito que algumas traduções de franceses, como Mallarmé e Baudelaire ou o americano Edgar Allan Poe acabaram me marcando mais que alguns poetas brasileiros de nome, com exceção de Jorge de Lima.

Vale notar que em vários livros Jorge de Lima se manifestou como poeta católico, haja vista o seu “Tempo e Eternidade”, de que senti forte influência.

Diferença? Talvez a maior é que frequentava a Associação Cultural do Negro um bom número de apreciadores de poesia dos quais eu conhecia carências, expectativas e esperança. Muitos de meus versos tinham o propósito de se dirigirem a eles, nos saraus que ocorriam em datas comemorativas, como o Treze de Maio, Dia da Mãe Negra, Noite Cruz e Sousa.

Assim se explica por que a par do sucesso de meu poema “Grito de angústia”, em que se leem estes versos: Eu conheço um grito de angústia/ e eu posso escrever este grito de angústia,/ e eu posso berrar este grito de angústia;/ quer ouvir? “Sou um negro, Senhor, sou um… negro!”; atada a esses versos, aplaudia-se esta afirmação: Meu coração espera um dia novo/ pousar na fronte escura do meu povo.

Meus versos falavam ao coração deles, sobretudo quando declamados por Nair Araújo, atriz do Teatro Experimental do Negro de São Paulo.

Acredito que em 1958-1960, como expresso na “Carta a Florestan Fernandes”, publicada nesta edição, Solano Trindade, Carlos de Assumpção e eu com meu poema “Grito de angústia” éramos os poetas intérpretes da Associação Cultural do Negro, respeitável caixa de ressonância da questão negra na época.

Trazer este livro de volta, após 60 anos, é apresentar ao leitor de hoje um documento de excepcional importância para se cotejar o que foi e o que é hoje a Literatura Negra, que tem criadores do porte de uma Conceição Evaristo, Cuti (Luiz Silva), Oliveira Silveira, do Rio Grande do Sul, e tantos outros autores que dialogam com a presença do negro neste país.

Mateus Baldi

Mateus Baldi nasceu em 1994. É escritor e roteirista. Fundou a plataforma literária Resenha de Bolso, foi editor de cultura da revista Poleiro e colaborador de literatura no site da Piauí.

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