Traduzir Verghese

13/06/2024

Por Odorico Leal

Recebi o convite para traduzir O pacto da água no começo de 2023. Aceitei com certa trepidação: nunca tinha traduzido um romance tão longo. Pela extensão da obra, o prazo demandaria certa dose de generosidade, pois nunca se sabe o que padecerá o tradutor ao longo de quatro ou cinco meses. Por outro lado, Abraham Verghese não escreve em um inglês esotérico; embora magistralmente trabalhado, contendo muitos momentos de força poética, seu estilo evita grandes arroubos de sintaxe ou elaboração frasal. O objetivo de Verghese é contar uma grande história, estripulias estilísticas ficam em segundo plano. Levando isso em conta, o prazo não precisaria ser tão generoso, certo? Errado. A verdade é que nenhum texto é simples. As dificuldades de tradução são imprevisíveis e surgem por todos os lados, como goteiras em uma casa de telhado velho. O tradutor vive ensopado, lutando para que as letras na página não desmanchem sob o aguaceiro digno das monções indianas. O prazo, então, precisava ser generoso — para que fosse também realista. E foi.

Passei, então, alguns meses de 2023 visitando todas as tardes o sul da Índia. O pacto da água é uma saga envolvendo várias gerações de uma mesma família, tendo como esteio a figura da inesquecível Grande Ammachi, a pequenina matriarca de Parambil, que na abertura do livro encontramos prestes a se casar. Ela tem doze anos de idade, é o começo do século XX, e acompanharemos essa história até 1977 — um arco que vai da Grande Ammachi à neta Mariamma. Enquanto a Grande Ammachi estabelece um doce matriarcado em Parambil, Mariamma virá a se tornar a primeira médica da família. Para que isso aconteça, muitas coisas mudarão na Índia, e acompanhamos essas mudanças, sempre guiados pelo exímio narrador de Verghese.

As dificuldades de tradução são imprevisíveis e surgem por todos os lados, como goteiras em uma casa de telhado velho. O tradutor vive ensopado, lutando para que as letras na página não desmanchem sob o aguaceiro digno das monções indianas.

Para o tradutor, o principal desafio é não atrapalhar esse narrador. Em Verghese, a história é a protagonista. Claro, há muitos registros estilísticos distintos, desde diálogos bem coloquiais a momentos de tensão poética em que a linguagem ganha ares bíblicos, e o tradutor precisa acompanhar essas modulações. Mas, de modo geral, pode-se dizer que a linguagem aqui tende à certa transparência.

Há exceções: ao introduzir o personagem de Digby, o jovem médico escocês, por exemplo, há breves erupções do inglês tal como falado em Glasgow; aqui, sim, Verghese destaca bem a variação linguística, optando por toques de oralidade radical. Nesse caso, uma opção tradutória seria recorrer também em português a certos expedientes que simulassem nesses trechos pontuais uma espécie de dialeto; concluí, contudo, que com isso só chegaríamos a um duvidoso efeito de exotismo, sem sugerir de modo algum as peculiaridades das variações linguísticas de Glasgow, por motivos óbvios; assim, embora me valendo de uma boa dose de coloquialismo, optei por manter a uniformidade de estilo e poupar o leitor de um arremedo impossível de sotaque escocês. Já no caso de Muthu, cozinheiro e criado de Digby em Madras, a variação linguística é parte indissociável da construção do personagem: Muthu fala um inglês rudimentar, com uma sintaxe precária; aqui, sim, busquei o mesmo efeito do original, jogando com um português igualmente rudimentar.

Dito isso, fora os problemas que mesmo as frases aparentemente mais simples acarretam toda tradução, o grande desafio em traduzir Verghese era lidar com as minuciosas descrições de procedimentos cirúrgicos. O próprio autor é médico, e em O pacto da água lidamos com três figuras da mesma profissão: Digby, o jovem cirurgião escocês; Rune, médico sueco que, depois de muitas perambulações e viagens, descobre uma vocação espiritual trabalhando em um leprosário na Índia; e, claro, Mariamma, que, como médica, será responsável por solucionar o mistério dos afogamentos que marcam sua família. As cenas cirúrgicas abundam, e nelas a linguagem tende a uma especificidade delicada que precisa ser honrada.

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Por último, vale ressaltar que toda tradução é um empreendimento que envolve muitas cabeças e muitas mãos, e isso é ainda mais verdadeiro no que diz respeito a esta tradução de O pacto da água. Entre a tradução final que enviei para a editora e o texto que veio de fato a ser publicado, há milhares de pequenas alterações e ajustes que tornaram o texto incalculavelmente melhor, tanto que não posso falar de fato que a tradução seja minha; trata-se, na verdade, de uma tradução coletiva, em que meu texto original passou pelo escrutínio e a reescritura das preparadoras Gabriele Fernandes e Maria Emilia Bender, dos revisores Huendel Viana e Ingrid Romão e da editora Camila Berto. 

Coletivamente, tivemos o prazer de trazer ao leitor brasileiro essa grande saga indiana, que, entre tantos méritos, entrelaça com maestria a tradição espiritual dos cristãos do sul da Índia e a medicina moderna, sempre com personagens muito bem construídos, cujas vidas em alguns casos acompanhamos da infância à velhice e dos quais nos despedimos com muito pesar, como quem se despede de velhos amigos.

Pintura de Amadeo Luciano Lorenzato que ilustra capa de O pacto da água, de Abraham Verghese.

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