O que podemos aprender ao aproximar as ideias de judeidade e negritude?

27/09/2024

Anteriormente publicado sob o título Vidas de entremeio, a nova edição de Racismo e antissemitismo: As trajetórias de Stefan Zweig, André Rebouças e Joseph May chega ao Brasil pela Editora Zahar como uma despretensiosa análise dos processos de assimilação e marginalização vividos por negros e judeus. Ao  narrar três trajetórias familiares a partir de suas diferentes formas de lidar com as mudanças histórico-culturais que se processavam na África, no Brasil e na Europa ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, Leo Spitzer apresenta uma obra de leitura obrigatória entre os interessados nas questões raciais, uma referência para todos os que se dispõem a pensar sobre os grandes desafios propostos pela modernidade.

A partir dos pensamentos suscitados pelo livro, questionamos o autor e mais três convidadas especializadas sobre as relações entre negritude e judeidade, e trazemos as respostas abaixo.

Confira:

Blog da Companhia: Judeus e negros estão conectados apenas pelas suas histórias de preconceito e opressão, de antissemitismo e racismo sistemáticos que as duas populações vêm sofrendo ao longo dos séculos? Ou existem outros pontos, mais positivos, de associação entre estes povos?

Leo Spitzer, professor emérito de história da Universidade de Dartmouth e autor, dentre outros, de Racismo e antissemitismo

“Para mim, enquanto um historiador da perseguição racializada, se sobressai uma história de solidariedade, que conversa com W. E. B. Du Bois, um dos maiores intelectuais negros e líder ativista dos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Ele foi um dos fundadores da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP – National Association for the Advancement of Colored People) e editor por muitos anos da The Crisis, publicação oficial da NAACP. As crescentes campanhas de Hitler contra judeus na Europa levaram Du Bois a fazer comparações frequentes entre as pessoas negras e os judeus dos dois lados do Oceano Atlântico, enquanto vítimas de preconceitos raciais similares, conectados por ideologias de supremacia branca. Em 1949, ele visitou a Polônia e o Gueto de Varsóvia, que permaneceu em ruínas depois que soldados alemães e policiais abafaram uma revolta judia que durava um mês e deportaram os moradores restantes para campos de extermínio. A visita e sua apreciação da resistência heroica [dos habitantes de lá] influenciaram significativamente o pensamento de Du Bois sobre a luta por justiça racial nos Estados Unidos e em todos os outros lugares. Isto o levou a reavaliar sua então famosa declaração de 1903, na obra clássica As almas do povo negro, em que afirmava: “o problema do século XX é o problema da linha de cor”. Em seu artigo, The negro and the Warsaw Guetto (em tradução livre: “O negro e o Gueto de Varsóvia”), sua definição de racismo e sua prevalência tóxica – mas também sua visão de como o combater – consistentemente incluiu o antissemitismo.”

 

Christina Vital da Cunha, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)

“Meu olhar de pesquisa se construiu no âmbito das Ciências Sociais da Religião e, no Brasil, os estudos nesta área pouco se dedicaram aos judeus. Daí a minha baixa familiaridade com os debates sobre essa forma cultural e espiritual de experiência. A religião judaica está ausente, por exemplo, de todos os balanços decenais publicados desde 1950 no âmbito da Sociologia e Antropologia. Mas a vida social é dinâmica e a pesquisa científica busca acompanhar esses movimentos. Em 1990, quando comecei a estudar religiões em favelas cariocas, a temática racial ainda não era onipresente nos estudos sobre esses territórios, assim como não se falava sobre judeidade ou sobre Israel e judeus imaginários nos estudos nessas e sobre essas áreas. Com o passar das décadas, o debate racial que nunca foi ausente em igrejas evangélicas, mas sempre foi muito relegado a segundo plano, ganhou relevo pela ação de diferentes atores coletivos e individuais afirmando a urgência da Teologia Negra como forma de experiência religiosa e espiritual. Concomitante a este processo, observamos o crescimento de símbolos judaicos em igrejas pentecostais e neopentecostais valorizando o povo judeu, valorizando a Terra Santa de Israel servindo ambos, nesse contexto, como representação da verdade da palavra de Deus presente na Bíblia. Não só pastores, missionários e membros de igrejas valorizavam uma combinação singular do cristianismo com judaísmo, mas também traficantes que imprimiam em muros nas favelas o encontro dessas culturas, povos e formas de espiritualidade em grafites retratando passagens do Antigo Testamento. Desde 2017 via-se também bandeiras de Israel pintadas ao lado da bandeira brasileira como retratos da união em parte espiritual e ideológica entre essas nações. Os sentidos que os diferentes atores imprimem aos símbolos gravitam entre significados de força (bélica, espiritual, comunitária) e prosperidade. Mas a questão racial é bastante ressignificada nesta aproximação entre judeu e Israel imaginária e pessoas negras residentes em favelas e periferias. Um sentido de pertencimento racial que valoriza a raiz africana, mas não aquela sustentada pelo movimento negro próximo ao candomblé. Uma outra lógica civilizatória é defendida. Observamos neste contexto judeus e Israel imaginárias ao lado de negros e negras também produzidos socialmente conforme valores morais de referências que os animam. O ponto de contato entre judeus e negros, entre judeidade e negritude não formou meu olhar sociológico na graduação e pós-graduação em Ciências Sociais nos anos 1990 e início dos anos 2000. Mas hoje marcam minha percepção de modo indelével. Finalmente, de diferentes formas e com variados arranjos, negros, judeus, cristianismo e judaísmo se nutriram e cresce a consciência em torno da resiliência desses povos, de suas histórias de luta, conquistas, competências. A despeito de resistências de segmentos políticos conservadores, a relação desses atores em periferias, favelas, no movimento social vem crescendo e abastecendo lutas políticas pela democracia e combate ao racismo estrutural que os encontram.”

 

Luanda Carneiro Jacoel, artista e mestranda em Performance, pela Norwegian Theatre Academy

“Os ciclos de debates acerca de Judeidade e Negritude são espaços de diálogo, aproximação e reflexão entre grupos que historicamente e sistematicamente vem experienciando violência e perseguição. E como esses processos são determinantes na construção de identidade e o direito à memória. Reconhecendo as especificidades e contexto histórico de cada grupo, sem minimizar as suas diferenças, mas encontrando pontos de intersecção, com o compromisso de lutar e combater todas as formas de discriminação.”

 

Iara Rolnik, socióloga e diretora de programas do Instituto Ibirapitanga

“A experiência comum de genocídio entre judeus e negros — ainda que completamente distinta em suas origens, momento histórico, estrutura étnica, social e, sobretudo, em suas consequências (desiguais em absoluto) — abre agendas importantes sobre formas de resistência e reparação em relação ao racismo. Se a luta contra o antissemitismo é também uma luta antirracista — no que acredito com afinco — essa ponte nos ajuda a pensar sobre a luta contra a discriminação e barbárie em suas diferentes formas e naturezas.”

 

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No dia 30 de setembro de 2024 (segunda-feira), às 14h30, o professor e historiador Leo Spitzer ministra a palestra “Photography, racism, and antisemitism in the life trajectories of Stefan Zweig, André Rebouças, and Joseph May” na Sala Villa-Lobos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindin (BBM), na Universidade do Estado de São Paulo (USP). O evento terá participação de Lilia Moritz Schwarcz, professora, antropóloga, autora e imortal da ABL, e mediação da professora e historiadora Esther Hamburger.

A palestra será feita em inglês, com projeção da tradução.

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