Luiz Schwarcz, fundador e CEO da Companhia das Letras. Crédito: Renato Parada
O fundador e CEO da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, recebeu nesta quinta-feira (17) o Premio Internazionale di Editoria Cesare De Michelis (Prêmio Internacional Cesare de Michelis para Publicação). A honraria foi anunciada durante a Feira de Frankfurt, maior congregação de profissionais do livro do mundo. Leia abaixo o discurso proferido por Luiz Schwarcz na ocasião.
O prêmio reconhece editores cuja trajetória tenha deixado uma marca significativa no cenário editorial internacional, demonstrando curiosidade, engenhosidade e o desejo de promover o diálogo entre culturas diversas. Essa distinção é, antes de tudo, destinada à obra de nossas autoras e autores. Seu talento e dedicação na produção de livros de alta qualidade faz com que a Companhia das Letras seja reconhecida pelo compromisso com a visão plural, pela busca da melhor expressão literária e pela densidade de obras de reflexão.
A cerimônia de premiação ocorrerá durante o festival literário Incroci di Civiltà, em Veneza, de 2 a 5 de abril de 2025.
Queridas Lili, Julia e Zizi, que aqui representam a minha família, e queridos colegas e amigos, que representam o meu mundo editorial, como se formassem a minha segunda família. Obrigado pela presença de todos, em meio a uma rotina tão atribulada.
Os meus colegas da Companhia das Letras merecem todos os agradecimentos, já que esse laurel também é para eles.
Não tenho outra forma de começar essa fala a não ser contando da surpresa que me tomou ao receber o e-mail de Francesca Varotto, editora da Marsilio e parte do júri do prêmio Cesare De Michelis, comunicando que a mim tinha sido outorgada essa mais que honrosa homenagem. Surpresa que aqui se transforma em alegria e gratidão. Gratidão à Luca De Michelis, filho de Cesare De Michelis, e a toda a família De Michelis. Eles criaram o prêmio como forma de reconhecer o trabalho dos editores e em reverência à memória de seu pai, um editor histórico que merece todas as honrarias.
Ao júri, que num momento de distração me escolheu como agraciado, estendo aqui, do fundo do meu coração, meus agradecimentos.
Agradeço também ao senhor Juergen Boos, presidente da Feira de Frankfurt, que se associou ao prêmio, trazendo o seu anúncio para o encontro mais importante dos profissionais do ramo.
Permitam-me continuar com um evento curioso. Ele envolve um dos premiados que me antecederam, meu amigo Michael Krüger, aqui presente, que foi agraciado há dois anos. Michael sempre foi um modelo e exemplo para mim.
Num ano, remoto o suficiente para que eu já não me lembre da data, Michael organizou um congresso sobre edição em Berlim. Outra grande amiga, Carol Brown Janeway — que tristemente já não está entre nós —, foi incumbida por ele de coordenar um debate sobre edição literária. Para a mesa foram convidados o escritor e editor Roberto Calasso e eu.
Eu não tinha ideia do que meu colega de painel iria apresentar. Tampouco ele sabia o que eu havia preparado. E afinal o que falamos não poderia ter sido mais antagônico.
Calasso contou a história de dois editores históricos: Kurt Wolff, nascido em Leipzig, e Aldo Manuzio, curiosamente oriundo de Bassiano mas que se estabeleceu em Veneza, cidade de onde parte este prêmio. Seu trabalho data do final do século XV e começo do XVI.
O meu colega de painel explicou que Manuzio foi o pioneiro do livro como o conhecemos hoje. Ele criou um novo formato para as edições, permitindo que os livros fossem portáteis — foi um tipo de precursor do que viriam a ser os nossos paperbacks.
Além disso, ele teria inventado as letras itálicas, entre outras inovações tipográficas. Encomendou traduções de inúmeros textos gregos e publicou grandes clássicos italianos. O livro em seu formato moderno deixa-nos em débito eterno com Manuzio.
O outro profissional citado era Kurt Wolff, um editor expressionista, como muitos o chamam, que criou uma editora tão especial e sofisticada que seria difícil compará-la com qualquer outra do seu tempo, e mesmo com as de tempos vindouros. Também a seu modo inventou a edição literária. Sua influência mudou o que se conhece por edição até os dias de hoje. A editora e ele se confundiam como se fossem uma só: uma editora que era uma pessoa, ou uma pessoa que era uma editora? Wolf tinha extremo bom gosto e a mais fina consciência cultural. Todos sabemos da sua importância ao publicar as obras Franz Kafka pela primeira vez.
A partir desses dois exemplos, Calasso defendeu em sua fala que há arte na edição, deixando implícito que ele próprio seguia este caminho. O texto que leu era muito bem escrito, brilhante.
A minha explanação não podia ser mais oposta. Era simples no estilo e como narrativa literária. Visava explicar por que edição não é uma arte, devendo esse termo ser utilizado apenas para o trabalho dos escritores, a quem dedicamos nossas vidas. Publicar livros resume-se, em grandes linhas, a atos ininterruptos de entrega, entrega aos escritores e aos leitores.
Não achei meu antigo discurso antes de preparar este, portanto não sei como fui capaz de utilizar-me das palestras sobre literatura de Ivan Nabokov e de alguns poemas de Fernando Pessoa para defender o meu ponto de vista. Certamente procurava dar algum lustro à simples ideia com a qual viajei para Berlim, sem saber que por lá me esperava uma amigável contenda.
Lembrei-me daquela manhã em Berlim ao escrever essas linhas, para dizer que, mesmo com um estilo tosco, acho que a razão estava e permanece comigo. Edição não é uma arte mas sim devoção. E devoção no sentido literário, não religioso.
Com isso não quero dizer que os editores citados por Calasso, o próprio Calasso e os que me antecederam recebendo essa honraria não possam ser vistos como exceções à regra, mas são, como sempre, exceções que confirmam a regra. Há artistas trabalhando em edição, mas a edição em si não é uma arte. Estou certo também de que os colegas que me sucederão nessa galhardia possivelmente provarão, mais uma vez, que há casos singulares que minha vista não contempla, isto é, eles discordarão de mim, ou me provarão equivocado, antes mesmo de serem escolhidos.
Assim, ao receber esse prêmio, meu papel será o de ponte, entre esses poucos artistas editores — entre os quais está incluído também Cesare De Michelis — e os milhares de editoras e editores que aqui eu chamo de NÓS! Nesse papel, de editor-ponte, represento a partir deste púlpito as mulheres e os homens que entregam a vida à arte dos escritores e à imaginação dos leitores.
Somos os primeiros leitores de uma enormidade de emoções e de vulnerabilidades acumuladas no tempo da realização de um texto. Antes disso, o que escritor via à sua frente era uma tela sem nada ou uma página em branco. Ao iniciar nosso trabalho, voltamos para aquele momento, para o silêncio que antecede a escritura, silêncio este que marcará a criação de uma narrativa, por longos meses ou anos. Na compreensão desse silêncio inaugural se funda a nossa profissão.
O grande pensador Carlo Ginzburg — filho da escritora Natalia Ginzburg –, tentando dar sentido ao trabalho dos historiadores, escolheu três diferentes mestres, oriundos de outras profissões, como exemplos a serem seguidos. Para Ginzburg o historiador deveria amparar-se num método indiciário, isto é, fazer de sua profissão uma busca de indícios, como o fizeram, cada um à sua maneira, o grande especialista em arte do século XIX Giovanni Morelli, Sigmund Freud e Sherlock Holmes.
Morelli era constantemente chamado por museus para a verificação da autenticidade de quadros. Dizia que para o seu trabalho pouco ajudavam os sorrisos de Da Vinci ou os céus de Perugino. Para afirmar que um quadro era falso ou verdadeiro, o especialista deveria recorrer aos detalhes, às mãos e aos pés, aos dedos e às dobras nos vestidos. Por isso catalogou os vários tipos de lóbulos de orelhas dos quadros de Botticelli. Para ele, o detalhe é muito mais difícil de ser plagiado do que o que mais caracterizava uma obra de arte.
Ao criar a teoria psicanalítica, Freud — leitor de Morelli — concentrou-se nos sintomas para desvendar as doenças mentais, ou se aprofundar na alma dos homens e mulheres.
Sherlock Holmes, o filho dileto de Conan Doyle, aproximava-se da solução dos mistérios também pelos detalhes. Para ele, a orelha de um morto poderia ser muito mais indicativa do que a busca pela motivação de um crime. Orelhas marcam a descendência familiar mais que brasões. Ele desvendou um de seus famosos crimes só porque os traços das orelhas são fortemente hereditários.
Digo isto porque na minha opinião o método proposto pelo historiador serve perfeitamente ao editor, que precisa partir dos mínimos detalhes do texto durante a leitura e a confecção do livro para chegar à essência, ao todo.
Também somos os primeiros responsáveis pela integridade de um livro. Integridade em português tem dois sentidos. Em inglês também. Quer dizer que algo está completo, inteiro, e ao mesmo tempo que é digno, honesto. Uma narrativa escrita durante muitos meses ou anos precisa de alguém que a leia no presente e sinta se o tempo a afetou positiva ou negativamente, se tudo o que precisava ser dito está lá, e se o resultado honra a dignidade da literatura e o espírito de um trabalho artístico.
“Deus está nos detalhes” é uma frase que conhecemos bem, atribuída ao grande crítico de arte Aby Warburg e também ao arquiteto anglo-alemão Ludwig Mies van der Rohe. Embora um seja especialista em arte e o outro em arquitetura, tenho certeza de que o enunciado poderia ter sido cunhado por um escritor ou editor ou atribuído ao trabalho literário que define as nossas vidas: Deus está nos detalhes!
Se mudássemos um pouco a frase para “Deus está no que é singular” ou “Deus está no que é único”, o enunciado se aplicaria apenas aos artistas, entre eles os escritores. Portanto, se somos caçadores de detalhes que nos levam ao todo, os escritores, além disso, buscam a todo momento uma narrativa e uma forma de pensar inéditos, distantes do cotidiano, criando uma linguagem verdadeiramente original.
Não quero com isso dizer que a nossa missão se resume a cuidar de aspectos menores do texto, mas que é através deles que chegamos à essência da literatura, ao âmago de um romance, de um conto ou de um poema. A partir de simples sugestões que fiz a autores, alguns tiveram poucas horas de trabalho a mais. Um deles reescreveu seu livro no prazo de nove anos!
Mas não há só os detalhes em nossa vida. Além deles nós editores devemos saber operar com algo fundamental à literatura: a espera. Ela se encontra nos livros, criada pelos escritores, que manipulam o tempo, abrem parágrafos como se fossem janelas, para depois fechá-las, ou mesmo para deixá-las abertas para sempre, delegando como prêmio aos leitores a suspensão do tempo real e o deleite da espera. E a espera é hoje um bem político, um artigo raro, num mundo de radicalismos, de ideias e soluções apressadas. Em geral não esperamos pelas más notícias ou tragédias, ou mesmo pela agressividade imediata das mídias sociais. Elas surgem, indesejadas. Por isso quem espera tem de certa forma algum tipo de otimismo, de fé. A literatura é, pois, um exercício das esperas, criadas pelos escritores, para a suspensão do tempo presente no momento da leitura, para uma utopia silenciosa, onde nada além da pura imaginação acontece.
Intitulei um livro que estou escrevendo sobre minha profissão de O primeiro leitor. Nele, como aqui, defendo que nós editores somos principalmente os primeiros leitores de um texto literário, somos aqueles que trabalham para garantir que o diálogo futuro entre escritor e leitor flua com leveza.
Ao comentar o título do meu possível livro com um colega ele me perguntou: “Você está fazendo uma homenagem ao Ricardo Piglia?”.
Eu havia me esquecido completamente de um dos livros que mais me orgulhei de ter publicado, chamado de O último leitor. Nele, Piglia — um dos mais importantes escritores argentinos de todos os tempos e grande amigo — narra histórias de escritores enquanto leitores. A denominação “O último leitor” aparece, entre outros, para falar de Jorge Luis Borges, que tentava ler já cego, grudando os olhos nas páginas, inclinando a cabeça em direção ao livro, encostando o nariz no papel.
Remonta também à famosa foto de Che Guevara lendo livro em cima da árvore, durante uma guerrilha, suspendendo o tempo de um conflito armado para ler. Este mesmo guerrilheiro viria a ser baleado numa sala de aula, em cuja lousa havia a inscrição “eu sei ler”.
O último exemplo que coleto do livro de Piglia é o de Dom Quixote, leitor ávido que recolhia em seu caminho restos de papel pedidos pelo chão para formar um último livro. Quixote leu e viveu tudo. Nunca leu, no entanto, romances de cavalaria, gênero no qual se enquadra como personagem. Com uma exceção: um romance sobre um falso Quixote.
Termino lembrando que os perfis dos últimos leitores, Borges, Quixote e Che Guevara, feitos por um magnífico escritor, servem para dar uma dimensão épica à leitura. O último leitor é assim um herói. Já o primeiro leitor é apenas um homem comum.
Muito obrigado.
Assista ao discurso no canal da Feira de Frankfurt no YouTube:
LEIA MAIS: "Luiz Schwarcz ganha prêmio em Frankfurt e defende que editores não são artistas", matéria de Walter Porto na Folha de S.Paulo