Quando grávida, cuidando dos preparativos para a chegada de seu bebê, a psicóloga Vivian Karina da Silva sempre ouvia uma pergunta que os vendedores indicavam ser o ponto de partida para cada compra: “É menino ou menina?”. Essa simples questão, o começo da inserção em uma cultura de estereótipos, inaugura já na gestação uma importante discussão: a de gênero.
A psicóloga, que dedica seus estudos às questões de gênero, sexualidade e infância, combina seu repertório de pesquisa com as experiências vividas no dia a dia. Ela afirma que a estereotipagem de gênero é prévia ao nascimento. “Antes de nascer já se constrói a identidade de gênero. Quando fui comprar o enxoval do meu filho, não tinha opções que não fossem rosa ou azul. Também percebi que a divisão dos temas sempre indicava que o menino é mais aventureiro e a menina é mais delicada”, diz.
Essa divisão tem raízes sociais, históricas e culturais. A sociedade tem enraizada em sua cultura a diferenciação biológica para justificar diferenças de comportamento. Também identifica diferenças dos corpos feminino e masculino e as transforma em desigualdades, o que resulta na naturalização dos estereótipos de feminilidade e masculinidade.
Depois do nascimento, já nos primeiros meses de vida, outras questões de estereotipagem de gênero continuam emergindo no cotidiano das crianças e suas famílias. Em um dia em que a psicóloga e seu companheiro levaram o filho para vacinação no posto de saúde, a enfermeira olhou a chupeta rosa do pequeno e exclamou: “Nossa! Não acredito que seus pais fizeram isso com você!”. A mãe reagiu de pronto: “Sim, ele gosta de todas as cores, já teve chupeta roxa, verde, laranja e azul!”. A psicóloga comenta que poderia ter ficado calada, mas quis plantar ali uma sementinha de reflexão em uma pessoa que desconhece a discussão de gênero.
O maior instinto da infância é experimentar, conhecer e descobrir. Limitar as descobertas por conta dos estereótipos de gênero é frear inúmeras possibilidades de aprendizagem que poderiam delinear outro futuro para a criança, o que gera impactos em ambos os sexos. Assim, aponta a psicóloga, a menina pode se envolver com esportes e mecânica e o menino pode se familiarizar com o ambiente da cozinha e brincar com bonecas, temas que farão parte da realidade de ambos na vida adulta.
Essas experimentações se manifestam muito cedo. Na casa da pesquisadora, chegou uma hora que o fogão se tornou objeto de curiosidade do filho. “É perigoso para uma criança de dois anos estar em contato com o fogão. Para matar essa curiosidade, minha mãe quis dar um fogão de brinquedo de presente para meu filho. Ela disse que procurou muito e não encontrou um que não fosse rosa. Por que só tem rosa?”.
As dicotomias entre feminilidade e masculinidade criam diversas desigualdades, como repressões, discriminações, violências e desvalorização salarial. “Gostaria que os adultos pensassem muito neles enquanto homens e mulheres. Se eles não têm essas questões bem resolvidas, acabam passando para a criança os fantasmas e preconceitos de gênero. É importante deixar que elas escolham o que querem”, conta.
É por isso que ela chama a atenção para que essa questão esteja presente também no espaço escolar. Conversas, debates e mediações de conflito relacionados à temática da desigualdade de gênero na escola são ações que precisam constar do planejamento dos educadores. Na escola em que o filho de Vivian estuda, por exemplo, essas discussões levaram a algumas mudanças. Hoje, as meninas e os meninos se fantasiam de princesa, assim como ambos também brincam de super-herói.