As maneiras plurais de ser pai nos dias de hoje

18/11/2021

Um pai troca a roupa do filho, outro dá o lanche, um deles acolhe o pequeno quando está triste, um diz “eu te amo”, outro cuida de um machucado no joelho da criança, outro ainda assiste às aventuras de seu garoto em uma bicicleta, um deles acompanha os passos de balé do menino. Em comum a todas essas cenas cotidianas e plurais de exercício da paternidade, há um banco - um lugar de amor, cuidado e vínculo entre pais e filhos.

 

Essas cenas aparecem no livro Seu banco, escrito como um poema por Meghan, a Duquesa de Sussex, em homenagem a seu marido, o príncipe Harry, quando nasceu o primeiro filho do casal. Ilustrado por Christian Robinson, o lançamento de novembro da Companhia das Letrinhas representa uma diversidade de ações que integram o exercício da paternidade nos nossos dias.

E ela é diversa, exercida em arranjos familiares variados e pautada pela participação ativa na vida da criança. Envolve uma forma de masculinidade que não é mais a tradicional, tóxica, que impede os homens, desde a infância, de falar de sentimentos, chorar, brincar de boneca e aprender a cuidar. O primeiro livro infantil de Meghan Markle aborda essa questão de maneira delicada e leve, ainda que ela envolva uma transformação cultural, social e política profunda, como analisa o terapeuta familiar Alexandre Coimbra Amaral.

“A transição dessa identidade está colada a como o mundo e a cultura dizem como a gente tem que ser. Essa nova cultura cobra o tempo inteiro desse cara que ele se coloque cada vez mais desconstruído, questionador das próprias atitudes, mesmo que a masculinidade, no Brasil, ainda seja hegemonicamente muito patriarcal. As manifestações de uma masculinidade não patriarcal ainda são mais urbanas, mais de classe média e estão começando a furar suas bolhas, a virar um questionamento mais universalizado”, explica Alexandre. “Então temos esses homens que já entenderam os prejuízos desse machismo, desse patriarcado, e que não vão retroceder. São homens que não querem viver dessa forma e que já perceberam o prejuízo que isso traz para eles, para as relações que estabelecem com as mulheres e para as relações afetivas com os filhos”.

Bem diferente daquele homem que era o provedor financeiro da família, que acumulava bens e era a figura da autoridade na casa. “Até a geração passada, e podemos pensar em todas as gerações que a antecederam, os homens eram basicamente os provedores financeiros e aqueles que apareciam para dar a lei, para dizer ‘aqui não vai poder’, ‘não vai’, para dizer o ‘não’”, descreve Alexandre.

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Ser pai é exercitar o amor

O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que tem dois filhos adotivos com seu marido, Rodrigo Grobério, conta que sua relação com o próprio pai foi muito mais baseada na autoridade e que hoje, como pai, faz de outra forma. “Nós somos seis filhos, eu sou o mais novo, e não tinha muita essa aproximação, esse afeto, esse amor. Eu procuro ser  totalmente diferente com meus filhos, eu digo a todo momento que amo, eu tento, na medida do possível, estar muito mais próximo dos atos do dia a dia. É a forma que eu encontro para dar mais amor, não só com palavras, mas com comportamento, exercitando o amor, que é pleno, na minha concepção”. 

Eu costumo falar que ser pai não tem orientação sexual ou cor da pele, é simplesmente você exercitar o amor, e isso Rodrigo e eu estamos fazendo e tentamos fazer diuturnamente. 

Fabiano Contarato, senador

O senador conta que procura estar com os filhos a todo momento que pode. “Claro que o desafio de exercer um mandato me priva de estar com eles com maior frequência, mas, sempre que posso e sempre que estou com eles, a dedicação é exclusiva. É um grande desafio exercer plenamente a paternidade. Eu e Rodrigo temos ainda outros dois grandes desafios. Um deles é passar para Mariana e Gabriel que fugimos do padrão heteronormativo e que somos um casal homoafetivo. Um outro aspecto é que nossos dois filhos são negros, então passar para eles o empoderamento e que todos somos iguais, que ninguém pode, em hipótese alguma, subjugá-los, é um grande desafio que nós temos pela frente, mas que tentamos fazer da melhor forma possível e, sempre que necessário, com a ajuda de um profissional”. 

 

Ilustração de Christian Robinson para o livro Seu banco, da Duquesa de Sussex

 

Provedores afetivos

Essa mudança que temos visto em relação ao que é ser pai, e que atravessa Seu banco, não acontece de uma hora para a outra, mas é resultado de uma transição, que envolve uma transformação na subjetividade dos homens. Alexandre pontua que há um desejo desse pai de ser mais do que um provedor: “É um desejo de ser provedor afetivo. Ele quer participar da vida do filho, quer acompanhar os vínculos dele, o jeito que ele se desenvolve, o processo de desenvolvimento dele. Quer deixar também sua marca afetiva na vida dessa criança. Outra característica é que ele também deseja ser transformado por esse afeto. É um homem que sabe, ou que pelo menos intui, que a paternidade tem essa capacidade de promover uma certa expansão da identidade. Assim, suas definições sobre ele mesmo ficam alteradas depois que ele é pai”.

De acordo com o terapeuta, esses homens não se veem da mesma forma nem conseguem sentir as coisas da mesma maneira de antes de ser pais. Ele conta que, no grupo terapêutico de homens que coordena, ocorre com frequência o seguinte relato: “eu sou uma pessoa que hoje não reconheço como os meus afetos me atravessam, eu estou muito mais chorão, muito mais sensível”. Essa é uma transformação sentida na forma de lidar com as próprias emoções a partir da chegada do filho.

Diego Gama é médico e vive no Espírito Santo, onde atualmente é facilitador de outro grupo terapêutico de homens, mas também faz parte do grupo organizado por Alexandre. Ele  diz que essa experiência de conversa e troca de experiências com outros homens teve influências maravilhosas sobre seu funcionamento enquanto homem, negro, pai, companheiro, filho. E ele acredita que um dos papéis dos pais é também o de ajudar os filhos a nomear o que estão sentindo. "Por vezes, nós nos sentimos tão perdidos em meio a sentimentos, desejos, planos; essa base já fará muita diferença para todos das gerações que virão". 

Em sua casa, Diego é o responsável pela limpeza, organização, lavagem das roupas e louças e dos cuidados com o filho Dom durante o dia: banho, troca de roupa, café da manhã, ninar antes da soneca e antes de dormir à noite.

"É intenso, cansativo, gratificante, por vezes exaustivo e tantos outros adjetivos ambivalentes como esses. Estar tão perto da cria tanto tempo a fio tem bastante renúncia. Principalmente quando se pensa sobre o que aprendemos que um homem deve ser na sociedade atual (ou dos modelos de sociedade que nos antecederam e que ditam as regras hegemônicas), sobre os anseios e marcos, sobre o que devemos alcançar e em quanto tempo. Mas, ao mesmo tempo, é ótimo não seguir esse modelo que nos foi ensinado desde sempre e poder moldar um rumo diferente ou, ao menos, abrir caminhos para que nossos pequenos moldem suas próprias trajetórias, quem sabe de forma muito mais segura e com menos travas que nós", reflete o médico. 

 

O filho que se torna pai

O ator, apresentador e escritor Vinicius Campos, que vive em Buenos Aires e é pai de três filhos que adotou com seu companheiro, conta que seu pai foi muito diferente dos pais da maioria de seus amigos porque foi bastante presente em sua educação.

“Quando fui fazer terapia, na adolescência, eu lembro que o terapeuta falou: ‘caramba, você tem duas mães, você não tem um pai e uma mãe’. Então, ele era um pai realmente diferente. Ao mesmo tempo, a sociedade ensina que nós, meninos, temos que ser pais do jeito autoritário, o pai que diz ‘aqui mando eu’, ‘a última palavra é a minha’, ‘não gostou, sai daqui’. Não somos ensinados a amar incondicionalmente. Só da gente não ter a possibilidade de pegar uma boneca no colo, de lidar com esse carinho, de exercitar esse carinho, já nos torna pessoas diferentes na hora de educar, o que costuma trazer certos problemas e consequências, porque a gente não foi preparado para cuidar de um bebê, de um ser humano. Quando os nossos filhos chegaram, os três já com idades avançadas, foi aí que a gente percebeu que tínhamos muito poucas ferramentas para protegê-los e para educá-los”, analisa Vinicius. 

Depois de um momento intenso de crise quando a filha mais velha fez 16 anos, ele se deu conta de que faltava a ele e ao marido essa habilidade de oferecer um amor incondicional aos filhos, que, em geral, é relacionado na nossa sociedade à figura feminina. “Nem eu nem o Edu cumpríamos essa função de amá-los incondicionalmente, de abraçá-los apesar de qualquer coisa. Aí eu chamei o Edu e falei que a gente precisava parar de ser pai e começar a ser mãe. E aí a gente começou um processo de transformação”, relata o apresentador.

Para Alexandre, a necessidade de ser um provedor afetivo dos filhos também tem a ver com o aprendizado de um certo letramento emocional. “Muitos homens chegam à paternidade sem nem conseguir dizer o que sentem. E para socializar uma criança, é preciso falar com ela: ‘isso que você está sentindo é ciúme, é inveja, é tristeza, não tem problema sentir isso’. Normalmente as pessoas que fazem essas nomeações são as mulheres da família. Mas essa nova paternidade tem chamado esses homens para esse aprendizado sobre as próprias emoções”. 

Vinicius completa que, para ele, a sociedade deveria fomentar e educar os homens para que também saibam cuidar e amar, como já acontece, ainda que também com mudanças nas últimas décadas, com a educação das mulheres desde cedo. “Essa maneira de ver o mundo é uma maneira mais amorosa, mais amena e, a meu ver, mais feliz e com mais possibilidade de dar bons frutos”.

Alexandre comenta que esse tipo de transformação nasce de uma abertura voluntária desses pais para se vincular aos filhos como mais do que provedores materiais. “Quando um homem contemporâneo se torna pai, ele quer ser um pai presente no que hoje a gente entende como pai presente. A imensa maioria desses homens, mesmo que tenham tido pai que participaram da vida deles, esse tipo de participação não corresponde ao tipo de presença que eles querem ter na vida dos filhos. Então a gente tem sempre uma quantidade de invenção nessa transição, do filho que eu fui para o pai que eu sou. E essa geração está construindo bastante invenção nessa transição”, explica o psicoterapeuta.

É nesse sentido o relato do escritor e editor Estevão Azevedo, que tem duas filhas. “Eu tive uma experiência bem diferente com meu pai, sim. Além de ter se separado da minha mãe muito cedo, no trabalho dele como jornalista, ele sempre viajou muito e passou longos períodos fora. Ele cobria algumas viagens do papa João Paulo II, por exemplo, no exterior. Ele sempre foi um pai afetuoso, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, também sempre teve uma certa distância, ele passava períodos longe, depois períodos perto, então eu me acostumei desde cedo a estar um pouco distante dele em muitos momentos”, conta.

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Hoje, ele tenta construir uma relação diferente com as filhas, sendo presente e participativo não só na hora da diversão, mas também nos cuidados. “Eu me separei da mãe da minha primeira filha, da mãe da Iolanda, quando ela tinha 3 anos. Então isso implicou, claro, uma diminuição no tempo de convivência. Eu fico com ela metade do tempo, mais ou menos. Mas a convivência ficou muito mais intensa; eu perdi no tempo, mas ganhei na intensidade. Como passamos a ser eu e ela, a convivência se intensificou em todos os aspectos, tanto nos cuidados para dar banho, pôr para dormir, fazer comida, quanto na diversão, na brincadeira”.

A filha mais nova de Estevão, Clarice, que hoje tem 1 ano e 2 meses, de seu casamento atual, nasceu em meio à pandemia, em 2020. “Foi muito diferente, porque nesse primeiro ano e dois meses, eu estive 24 horas com ela praticamente todo o tempo, o que também propicia outra experiência de cuidado e de paternidade”.

 

Eu gosto dessa parte essa parte de colocar para dormir, dar comida, fazer comida, dar remédio, dar banho, e eu tive a sorte de poder fazer isso com as minhas filhas. É óbvio que é cansativo, que é muito fatigante, mas isso constrói vínculos também.

Estevão Azevedo

 

É preciso uma aldeia

Edson Kayapó é professor, pesquisador, ativista e pai do pequeno Yupanki, de seis meses. Ele conta que, em seu povo, os pais se envolvem na vida das crianças com o que chama de pedagogia do exemplo, em que as ações e a conduta do pai é observada de perto pela criança, que começa a fazer igual. “Os homens e os pais estão o tempo todo na articulação das atividades tradicionais, da pescaria, da caça, do ato de semear, do ato de colher, do ato de coletar castanhas na floresta, e as crianças estão o tempo todo observando. Com o tempo, a criança vai acompanhá-los nessas atividades”, explica Edson.

Nas sociedades indígenas, as crianças são reverenciadas como sujeitos especiais e até sagrados e há uma responsabilidade coletiva nos cuidados com elas. Edson explica que, ainda que pai e mãe estejam sempre próximos dos filhos, para que se sintam seguros, quem toma conta da criança é quem está por perto e sempre tem pessoas por perto. “Eu aprendi que a criança tem essa importância, ela é merecedora de uma atenção especial. É a realidade dos povos indígenas; os adultos estão sempre próximos das crianças. Próximos e cuidando”, ele relata.

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Ao mesmo tempo, ele diz que os pais não dialogam tanto com os filhos e que o processo de ensinar a língua e os saberes ancestrais é mais uma responsabilidade da mulher. “O pai educa muito mais pelo exemplo, pelo que ele faz, pelo que ele é. Comigo foi exatamente assim, o meu pai nunca foi muito de diálogo comigo, mas era sempre um grande exemplo, uma pessoa corajosa, trabalhadora, que fazia coisas boas. Ele era um lutador pelos nossos direitos, e eu aprendi muito isso tudo com ele. Eu via como ele fazia, meu pai era muito carismático, era muito respeitado, uma liderança, e eu via tudo aquilo com muito bons olhos”, reflete o professor.

Mesmo também adotando a pedagogia do exemplo com seu filho, Edson também se esforça para estar próximo do bebê por meio do diálogo e das narrativas. “Eu pretendo fazer esse movimento de chamar para o diálogo, conversar, explicar, narrar as histórias, ensinar sobre necessidade do ativismo, do fortalecimento da nossa ancestralidade, sobre o respeito à natureza, sobre o respeito à vida humana. E eu quero que isso aconteça tanto no diálogo quanto no exemplo prático que dou para ele. Quero que ele observe a minha conduta como exemplo, mas não a conduta, também as narrativas”.

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