Quando criança, o sonho de Guilherme Karsten, autor e ilustrador de Se eu tivesse asas… (Brinque-Book) e do premiado Carona (Companhia das Letrinhas), era - adivinhe só - ter asas. Ele pensava em poder voar, para, entre outras coisas, conseguir pegar as maiores goiabas, que eram aquelas que ficavam bem no alto das goiabeiras que ele tinha em casa. Agora, pai de dois filhos, alguns sonhos permanecem e outros mudaram um pouquinho: ele queria mesmo é dar asas para os seus meninos, Lucca, 9 anos, e Vicente, 5. “Mas quero que eles também saibam que sempre terão um ninho para voltar”, explica. E é essa relação delicada de liberdade e acolhimento, de sonho e realidade, de pais e filhos, que o novo livro de Guilherme traz - e que vai criar identificação com muitos pais.
Em um bate-papo com o Blog da Letrinhas, ele falou de tudo isso e contou como ser pai impacta em suas criações, de como inspira os filhos a voarem longe, de sua carreira, os prêmios e muito mais. Guilherme também contou a curiosa história sobre como o livro Se eu tivesse asas… foi lançado antes na China e só depois aqui no Brasil. Confira!
Blog da Letrinhas - O livro Se eu tivesse asas… foi lançado primeiro fora do Brasil? Como isso aconteceu?
Guilherme Karsten - O livro foi lançado primeiro na China porque uma editora chinesa me chamou para um projeto, no qual artistas ao redor do mundo fariam uma coleção. São cinco artistas com livros sobre o tema “sonhos”. Pela primeira vez na vida, recebi um tema para criar uma história. É um pouco difícil, mas, ao mesmo tempo, foi interessante porque você tem uma limitação, sua cabeça já não fica tão aberta para qualquer ideia que vier. Gostei bastante.
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Qual foi sua inspiração para criar essa história?
A inspiração tem duas vertentes. Eu pensei tanto nos sonhos, de quando a gente dorme, mas também nos sonhos que você tem quando almeja ou espera por alguma coisa. Juntei dois momentos. O primeiro era sobre os meus sonhos de infância, especificamente um deles, que era o de ter asas e poder voar. Eu gostaria de voar, de ir para lugares altos, pegar as maiores goiabas do pé de goiaba lá de casa, já que elas sempre estavam no lugar mais alto… E o segundo momento é sobre paternidade. É o que eu vivo com os meus filhos. Eles gostam muito da nossa cama, gostam de aparecer lá durante a noite. Eu estava vivendo muito isso naquele momento - e ainda vivo, o tempo inteiro. Então, foi basicamente isso que me levou a criar essa história.
Como ser pai impacta seu trabalho como autor e ilustrador?
Ser pai de crianças, enquanto escrevo livros para crianças, para mim, é como se fosse uma vantagem. É como se eu estivesse ‘roubando no jogo’, porque eu tenho o público dos meus livros dentro da minha casa. Então, eu tento entender a mente deles, como eles processam alguns pensamentos, como enxergam algumas situações. É tão diferente do jeito que a gente enxerga… Para nós, algumas coisas são tão óbvias e para eles, não. E não ser óbvio em algumas coisas é a magia, é o olhar diferente, é aquilo que causa a surpresa, que causa a grandiosidade, a mágica da coisa. Não sei como vai ser quando eles forem mais velhos porque a criança vai crescendo e se tornando um adulto que tem todas as respostas certas. O problema são essas ‘respostas certas’, as convenções. E as crianças não são nada convencionais. Cada uma tem uma opinião e elas conseguem imaginar muito além. Para mim, por enquanto, é poder ‘roubar no jogo’ sem culpa. Mais tarde, não sei como vai ser (risos).
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As asas e a criação de filhos têm uma relação simbólica, não é? Eles vão crescendo, “criando asas” e temos que deixá-los voar em algum momento. Como ajudar os filhos a criarem essas asas e saber deixá-los voar quando chega a hora? Você reflete sobre isso?
Eu sempre quis morar fora do país, passar um tempo conhecendo coisas novas e isso nunca me foi permitido, por algumas situações da vida. Uma delas foi o fato de o meu pai ter morrido muito cedo, quando eu tinha 15 anos. Então, para ajudar lá em casa, eu precisava trabalhar, eu tinha meus irmãos menores, minha mãe. Senti que ali era um momento em que eu não poderia pensar mais nisso. E, claro, acabei conhecendo minha esposa, ficamos por aqui, nossos filhos são criados aqui, então, ‘amarramos’ muito a nossa vida. Minha mãe mora muito perto de nós, meus sogros também, convivemos muito tempo juntos, tem meus sobrinhos também. Estruturamos uma vida aqui, o que não permitiu ir para fora tão facilmente. Mas, às vezes, projeto essa minha vontade nos meus filhos.
Eu falo para eles que quero que pensem no mundo, quando quiserem estudar, entrar em uma faculdade, descobrir alguma coisa. ‘Não pensem em estudar aqui em Blumenau ou em Santa Catarina. Vão conhecer o mundo!’. Eu os ‘empurro’ assim, sempre falo isso. Queria que eles tivessem essas oportunidades. Mas, esses dias, meus filhos foram passar o fim de semana na casa de amigos e dos avós e eu e minha esposa ficamos sozinhos. Deu um buraco, uma tristeza. Pensei: ‘poxa, imagina o dia em que meus filhos forem embora’. Mas, mesmo com o coração partido, acho que eles precisam conhecer o mundo. Uma hora dessas, eles voltam para o ninho. Ou não. Ou nós é que vamos morar lá no ninho deles, mais tarde (risos).
Ilustração do livro Se eu tivesse asas..., que fala mistura sonhos e noites de acolhida na cama dos pais
No final do livro, o personagem, depois de ter voado, feito as coisas mais incríveis, realizado sonhos, volta para o “ninho”. Como ser esse ninho para os filhos, na sua visão?
O ninho é muito importante. Como falei, se meus filhos puderem voltar para o ninho, puderem vir para nos visitar ou morar conosco um tempo mais tarde, depois que eles conhecerem o mundo… Voltar para o ninho é sempre uma felicidade. Mas eu acho que voltar para o ninho é todo dia; é ter, na verdade, a experiência do ninho todo dia. O ninho não é uma casa.
O ninho são braços abertos. É acolher os filhos o tempo inteiro, seja quando eles tiverem um mau dia na escola, quando se machucarem, quando tiverem uma desilusão. Eles precisam ter essa percepção de que nós somos o ninho deles. (Guilherme Karsten)
É um esforço todos os dias para que eles compreendam isso na convivência, no dia a dia, nas risadas, na brincadeira, no rir e chorar junto, passar tempo junto…Eles têm que saber que está tudo bem e que, se alguma coisa acontecer, eles têm o ninho sempre para voltar.
Você sempre quis escrever e ilustrar para crianças? Como isso aconteceu?
Eu nunca quis escrever. Ilustrar para crianças, talvez. Quando eu era menor, queria trabalhar com desenho. Meu sonho inicial era trabalhar na Disney. Por alguns anos, trabalhei com animação, aqui em Blumenau mesmo, e, não sei… A animação não me chama tanta atenção como os livros ilustrados, pelos quais acabei me apaixonando. Mais tarde, já adulto, quis me tornar ilustrador de livros, mas nunca pensei em escrever. Para mim, o escritor era um outro cara, alguém que tinha uma capacidade mágica. De verdade! Eu achava isso, nem considerava. Só que, depois de um tempo, de tanto ler livros dos outros, às vezes eu via alguns e queria mudar o final da história ou tinha vontade de mudar algumas partes de que eu não gostava muito. Então, achei que era a hora de escrever minhas próprias histórias.
A princípio, surgiram algumas ideias que não deram certo, até que o primeiro livro foi escrito, que era o Carona. Foi onde eu me realizei, mas, mesmo assim, achava que não poderia escrever outras histórias. Continuei. Acho que é um ‘bichinho da história’. Agora, adoro escrever minhas ideias. Não me considero um bom escritor, alguém que tem as palavras certas na hora certa. Mexo muito nos meus textos por estar inseguro, insatisfeito. Fico lapidando o tempo inteiro, mas gosto da história, de como ela ocorre.
Como é o seu processo criativo?
Eu tenho um processo criativo que é basicamente o mesmo para todos os livros que escrevi. Primeiro, penso numa ideia e, quando acho algo muito interessante, preciso amarrar bem, com um bom início e um bom fim. Principalmente, um que não seja aquele esperado, mas um fim diferente, um pouco surpreendente. Feito e idealizado isso na minha cabeça, aí, eu consigo trazer para o papel. Papel, não… Bloco de notas do celular ou do computador. Eu lembro bem de Se eu tivesse asas… porque eu descia com as crianças para brincar no prédio. Enquanto eles brincavam com os amigos, eu ficava sentado e, às vezes, pegava o bloco de notas e ficava escrevendo as ideias do meu livro. Nesse caso, como era para uma editora aprovar o texto, mandei antes e, só depois, comecei as ilustrações. Mas quando eu faço por mim também sigo mais ou menos essa ordem: escrevo o texto e, aí, crio as cenas bem rabiscadas. Depois de tudo bem amarrado, vou para as ilustrações finais. Com certeza, mudo muitas coisas no meio do processo, mas é basicamente isso.
No livro, o menino sonha ter asas para conhecer novos lugares, numa metáfora que pode ser aplicada ao crescimento
Quais autores/ilustradores inspiram seu trabalho?
Tenho inúmeros autores como referência. Um deles é o Roald Dahl. Gosto muito dos livros dele, apesar de serem histórias maiores, com uma centena de páginas, e todas escritas, não têm muita ilustração, salvo vez ou outra. Mas gosto muito das histórias, da estrutura delas, dos diálogos. Ele viaja um monte, não cria limites. Tem outro escritor de que gosto bastante, li algumas coisas dele recentemente, que é o norte-americano Jon Scieszka. É engraçado, com non sense, que é algo que curto bastante. Gosto muito do Mac Barnett também, que é um cara muito divertido. Ele me lembra o Ilan Brenman. E tem muitos artistas que são autores e ilustradores que eu gosto, acabo notando a semelhança com o meu trabalho, em que o texto conversa muito com a ilustração. Eu me espelho muito nessas pessoas, como Oliver Jeffers, Jon Klassen, Beatrice Alemagna… O Renato Moriconi é muito sagaz nisso também. Gosto demais dos livros da Blandina Franco e Lollo. São vários. Estou esquecendo de alguns aqui, mas tem muita gente boa.
Você já foi premiado no Brasil e em outros países. Como é ter esse reconhecimento do seu talento em diferentes partes do mundo?
Sobre os prêmios, todos são especiais. O da China [Golden Pinwheel, 2019] é muito interessante, o de Bratislava [BIB 2019, Eslováquia] também. Se não me engano, foi por causa do prêmio de Bratislava que a editora da China me chamou para escrever esse livro. Mas os dois foram incríveis. E agora receber o Jabuti [categoria ‘Ilustração’, pelo livro Carona, em 2021], aqui no Brasil, também, né? O Jabuti é o nosso “prêmio Caldecott [Prêmio de ilustração de livros infantis dos Estados Unidos]”. É basicamente a versão brasileira desse prêmio, que todo grande artista lá fora quer. Então, fico muito contente por isso. Recebi esses dias o prêmio AEILIJ também, com o Carona como melhor texto. Imagina! Eu que achava que não sabia escrever, ganho um prêmio de melhor texto. É um baita degrau que consegui subir.
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Você imaginou que poderia ficar famoso fora do Brasil um dia?
Eu sempre quis avançar, não só no Brasil, mas ter livros lá fora. Isso sempre foi um planejamento por achar que, bem, se existem autores lá de fora publicando aqui, no Brasil, por que eu, sendo daqui, não posso publicar lá fora? E aí acho que os prêmios seriam sempre uma boa chance de me medir lá fora e ver se eu conseguiria alguma colocação. Esse reconhecimento como autor e ilustrador acaba vindo desses prêmios. E é incrível o contato que você tem com pessoas ao redor do mundo. Depois que ganhei o prêmio de Bratislava, por exemplo, minhas ilustrações foram para uma exposição itinerária no Japão, que ficaram mais ou menos um ano sendo expostas por lá, com alguns outros ilustradores também. Isso é incrível!
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