Nós, tradutores, somos coisos estranhos

04/01/2017

Por Julia Tomasini

“A ideia é traduzir ‘ao vivo’ com as crianças”, disseram-me as organizadoras, Carla e Victoria, da Fundación Typa, e eu aceitei na hora! O livro escolhido era o engraçado, belo e esdrúxulo O coiso estranho, escrito por Blandina Franco e divertidamente ilustrado por José Carlos Lollo. O coiso é tão estranho que, para descrevê-lo, a autora usa as palavras mais estranhas que você jamais ouviu: o coiso era espiclondrífico, estrambólico, pantalifúsio... Humm, como seria traduzir isso para o espanhol, e ao vivo e com as crianças?

Traduzir ao vivo e em conjunto ia um pouco na contramão da ideia que eu tinha da tradução: uma atividade que uma pessoa faz sozinha, em precioso (e não sempre possível!) silêncio, entre dicionários e janelas abertas no computador.

Mas a verdade é que a tradução também é coletiva. Para traduzir, precisamos das vozes dos outros, daqueles que temos sempre por perto e também dos que conversam no metrô e nem imaginam que estão dando a palavra certa que irá parar em alguma tradução. Também trabalhamos com as vozes das nossas leituras, ou seja, de outros escritores, e com a memória da língua, a pessoal e a de mais antigamente, que, além de viver nos relatos dos mais velhos, está ali na literatura e nos dicionários. Traduzir ao vivo seria trazer à tona essa dinâmica meio oculta. Pensei, então, que ia ser bem divertido.

Para me inspirar (porque tradutor, como escritor, precisa também de inspiração), voltei às minhas leituras de criança, abri os livros da nossa grande María Elena Walsh à procura de palavras estranhas, porque coisa estranha e engraçada é com ela mesmo. Ia precisar de muitas palavras esquisitas e extravagantes.

Então, lembrei a primeira vez que li a palavra “extravagante”. Não sei vocês, mas eu não me esqueço dos momentos que aprendi muitas das palavras que conheço e uso agora (e acho que eu gosto de línguas e de traduzir justamente para criar ou reviver esses momentos).

A leitura tratava de duas crianças que tinham uma tia muito particular. Ela chega um dia e os convida para um passeio de bicicleta diferente: todos tinham que andar do jeito mais estranho possível. Algumas pessoas, vendo os peculiares ciclistas, ficam chocadas e torcendo o nariz, mas outras riem e se unem ao “extravagante desfile”. Levei sempre comigo aquela imagem alegre do extravagante. E achei que tinha tudo a ver com esse querido e pouco compreendido coiso estranho, tão macavenco e inusitado, como nos diz Blandina.

Estava tudo pronto: iria munida de dicionários e livros inspiradores e até levava a imagem do passeio de bicicleta para contar para as crianças as coisas que passam pela cabeça desta tradutora e como começo a trabalhar. Por isso levei também algumas palavras do português: queria compartilhar com os futuros tradutores questões próprias da tradução do português para o espanhol que sempre reflito.

A relativa (e por vezes enganosa) pouca opacidade na intercompreensão entre o português e o espanhol fazia possível uma atividade de tradução com crianças que não tinham um contato fluido com a língua portuguesa. Mas sabia que haveria dificuldades na nossa tarefa, muito além das chatíssimas questões éticas dos que nós chamamos “falsos amigos”.

Em espanhol e português, há palavras que se parecem muito, como “lua” e “luna”, mas em português há o “luar” e em espanhol não. Há palavras que não se parecem com nada na outra língua e há outras que parecem iguais, mas significam outra coisa. E há palavras que parecem iguais, iguais, como “casa”, mas não o são. Não somente porque a pronúncia é diferente... É que a ideia de casa para um brasileiro não é a mesma ideia de casa para um argentino! E um tradutor tem que ter a sensibilidade para saber e trabalhar com essas diferenças.

Falei de todas essas coisas que escrevi aqui para as crianças e para os adultos que estavam lá querendo participar também. E como acham que foi? Que saíram correndo? A coisa foi tão legal que repeti a atividade durante a homenagem a Clarice Lispector no último dia 10 de dezembro na Biblioteca Nacional – e obtive a mesma resposta.

Nas duas ocasiões, trabalhamos primeiro um pouco com as palavras em português e espanhol. Daí partimos para a tradução. Começamos então a tecer nosso texto em espanhol. Todos estávamos adorando o coiso estranho. A cada nova página do livro, caras de assombro. “¡El coso parece un dragón!”, dizia um. “No, ¡ahora es una mariposa!”, dizia outro.  E eu: “¿Qué título le ponemos?” “¡El coso extraño!” “¡No! ¡La cosa extraña!” “¿Por qué uno? ¿Por qué el otro?”  “¡Vamos a votar!”

Com as crianças, concentradíssimas, líamos o texto em português, pensávamos e checávamos o significado em espanhol (quando apareceu “esquisito”, eu perguntei se o coiso era saboroso mesmo, se alguém tinha experimentado!), procurávamos no dicionário possíveis sinônimos. Eles chutavam palavras, consultavam entre eles, defendiam sua versão e eu ia escrevendo a tradução depois de chegarmos a um acordo. E a atividade já estava passando da hora e meia...

Quase no final, a mãe de um menino disse: “A gente tem que ir embora, tá tarde”. Mas o menino: “Eu não vou até saber como é que ficou a tradução!”. Nas duas apresentações, nenhuma das crianças foi embora sem ler a tradução inteira! Fiquei impressionada com o compromisso e o orgulho que eles sentiam pela sua criação e pelo nada fácil trabalho intelectual. Parecem futuros tradutores, pensei.  

Sobre o final do livro, as crianças ficaram com pena porque o livro nos conta que o coiso não era convidado às berzundelas (festas, em vocabulário do esquisito) por ser assim tão estranho. Então mostrei a imagem daquele desfile de bicicletas e disse: “Vejam bem, as pessoas de bicicleta sorriem, felizes da vida de serem estranhas, enquanto os outros não entendem e criticam”. Pobre coiso estranho? Nada! Todos ali éramos muito estranhos e muito felizes como o coiso.

***

Julia Tomasini é tradutora argentina e estudante de doutorado da UERJ. Vive entre Buenos Aires e Rio de Janeiro. Traduz sobretudo literatura brasileira contemporânea e edita o site de traducão Papeles sueltos. Traduziu para o espanhol, entre outros autores, Carola Saavedra, Laura Erber e José Miguel Wisnik. Neste ano tem vários projetos de tradução de literatura infantil.

 

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