Tradutor é fazedor de pontes

30/05/2017

É a partir de uma constatação de Gustave Flaubert que o tradutor carioca Eduardo Brandão define seu fazer: “Há homens que têm como única missão entre os outros homens de servir de intermediário; passa-se por eles como por uma ponte, e vai-se mais longe”. É que o ofício da tradução, para Brandão, é conectar povos e culturas.

O gosto pelas línguas estrangeiras foi despertado quando menino, nem ler sabia ainda. Crescido numa casa rodeada de livros, filho, sobrinho e neto de tradutores, ele tem vivas lembranças de sua mãe recitando em voz alta poemas do espanhol Federico García Lorca. A sonoridade daqueles versos, ouvidos enquanto era acolhido no colo materno, cativaram o menino.

Especializado nas línguas espanhola e francesa, conta com 37 anos de profissão e um total de 180 traduções para a Companhia das Letras. É tradutor de autores como Roberto Bolaño e Javier Marías, além de clássicos do universo infantojuvenil, como o escritor britânico Robert Louis Stevenson e Hergé, cartunista e pai do repórter Tintim.

Para conhecer mais um universo cheio de pontes construídas por esse tradutor veterano, leia o bate-papo a seguir.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Ainda menino, você já tinha paixão em aprender línguas estrangeiras, não? Como foi sua primeira aproximação com esse universo?

Eduardo Brandão – A atração pela língua estrangeira surgiu primeiro em casa, quando minha mãe me punha no colo e recitava em voz alta poemas de García Lorca. É uma das poucas cenas infantis de que me lembro claramente, apesar das quase sete décadas que dela me separam. Verde que te quiero verde. Verde viento. Verdes ramas. El barco sobre la mar y el caballo en la montaña... A las cinco de la tarde. Eran las cinco en punto de la tarde... Aquele cavalo na montanha, a tragédia anunciada para as cinco da tarde pela entoação materna me cativaram.

 

Como era sua relação com o aprendizado de idiomas na infância e, em casa ou na escola, o que servia de estímulo nesse sentido?

Eduardo Brandão – A proximidade das duas línguas, a materna e a espanhola, sem dúvida contribuíram — e muito — para despertar meu interesse pelo mistério dos idiomas. Mais tarde, na primeira adolescência, tratei de conhecer esses poemas que nunca me saíram da cabeça, seu clima, sua beleza, mesmo que nunca os tenha sabido de cabo a rabo. Catei um dicionário de espanhol-português que havia em casa e, com ajuda dos familiares, eu me esforcei por entender Lorca. Por essa época, outro estímulo: meu avô materno (morávamos lado a lado; eu vivia socado na casa dele) assinava uma revista espanhola, cujo nome não me ocorre agora, que trazia as tirinhas de uma personagem que eu adorava: Madame Tremebunda. Levei tempo para descobrir que tremebunda não é o que parece, mas simplesmente madame tremenda, terrível ou, como diz o Houaiss, que na época estava longe de existir, “que provoca tremor, medo; formidanda, pavorosa”. Graças à vulcânica madame ganhei um pequeno vocabulário e um pouco de conhecimento da língua.

 

E você teve outras fontes de aprendizado de línguas?

Eduardo Brandão – Outro mistério veio no primário [atual ensino fundamental], que cursei numa escola ligada a umas religiosas francesas, o Externato Coração Eucarístico: o “currículo” compreendia aulas de francês, dadas por uma parisiense bravíssima, mas cujo falar me parecia música. Ao contrário de quase todos, que achavam as aulas chatérrimas, eu me apaixonei por mais aquele mistério. Continuei até o 2º ano do colegial [hoje, ensino médio] o estudo do francês, que era obrigatório, reforçado pelos cursos da Aliança Francesa. Aliás, também no colegial, nova curiosidade: o latim, também obrigatório, e pelo qual também me encantei. Consequência desses amores: virei tradutor.

 

Você já citou um trecho de A educação sentimental, de Flaubert, para traduzir sua escolha pelo ofício da tradução: “Há homens que têm a missão entre os outros de servir de intermediário; a gente os atravessa, como uma ponte, e vai mais longe”. Poderia comentar como entende o ofício do tradutor, esse profissional que serve de ponte entre mundos?

Eduardo Brandão – Precisamente como diz Flaubert: ser o intermediário entre duas culturas, permitindo o acesso aos tesouros literários criados pelos autores de outras línguas, outras culturas. Sem o trabalho dos tradutores, quanta riqueza permaneceria inalcançável!

 

 

De modo geral, como você trata e pensa no público-alvo ao realizar uma tradução? Como é essa relação com o público infantojuvenil?

Eduardo Brandão – Começo pela segunda indagação. Só levo em conta o público-alvo no caso da literatura infantojuvenil, aliás, mais da infantil que da juvenil. Nesse caso tomo o cuidado de produzir um texto condizente com o vocabulário médio da faixa etária (uso meus netos como padrão), mas sempre costumo inserir aqui e ali alguma palavra fora do padrão, às vezes até fora do padrão adulto médio. Por uma dupla preocupação: contribuir para ampliar o vocabulário do leitor mirim (aqui vai uma contribuição) e tentar manter em circulação palavras que andam, infelizmente, meio esquecidas, o que prejudica, e muito, a leitura de nosso maravilhoso acervo literário mais antigo e empobrece lamentavelmente nosso patrimônio linguístico.

 

Ao traduzir a obra de As aventuras de Tintim, que tem várias peculiaridades culturais de um país e de outro período, você manteve um léxico mais apropriado àquela época. Como foi pensada essa tradução e como nesse caso fica o diálogo com o leitor de hoje?

Eduardo Brandão – No caso do Tintim, a ideia foi manter um vocabulário o mais próximo possível da época (anos 30 a 50), compatível com o traço do Hergé e com os cenários, personagens, carros, roupas etc. dos quadrinhos. De um modo geral, essa é uma preocupação constante no meu trabalho: manter o vocabulário da época, o que pode sem dúvida causar certo estranhamento no leitor atual, mas tanto quanto um leitor francófono de hoje sente ao ler Tintim, ou Victor Hugo, ou Racine, ou...

 

Até onde vai a fidelidade do tradutor ao autor? No caso das obras voltadas aos públicos infantil e juvenil, cabe mais a adaptação do que a tradução? Por quê? E quais são os limites que fazem com que a tradução passe a ser uma adaptação?

Eduardo Brandão – Depende do tradutor. Sou dos que consideram que o tradutor deve ser o mais fiel possível ao autor, o que implica reproduzir seu estilo, suas peculiaridades, sua linguagem — formal ou popular, mais ou menos rebuscada, os traços de época, como já vimos... —, suas construções, imagens, às vezes até mesmo sua pontuação, principalmente quando pouco usual. Adaptação ou tradução fiel é uma questão que se coloca muitas vezes. O pirata e o farmacêutico, por exemplo, é uma adaptação, pois optamos por manter as características dos versos originais — cadência, rimas —, para sermos fiéis a como o autor narra, em vez de traduzir em versos brancos, o que permitiria ser fiel ao que o autor diz. Também em textos em prosa pode-se optar por uma adaptação, por exemplo ao dar a um texto mais antigo uma linguagem atual, ao recontar a história a seu modo, o do adaptador. Esse tipo de adaptação pode cumprir uma missão importante, a de tornar a obra mais acessível ao leitorado, como fizeram os irmãos Lamb com Shakespeare. Aí, no entanto, perde-se muito do que é característico do estilo do autor.

 

Considerando que diferentes culturas são repletas de símbolos característicos, qual é o processo para a reconstrução de uma imagem em sua língua original na língua portuguesa?

Eduardo Brandão – Essa é uma das dificuldades da tradução: reproduzir as imagens criadas pelo autor, quando ela não funciona em nossa língua. O processo é, de certo modo, o mesmo que embasa a tradução de um modo geral: entender o que o autor diz e encontrar como dizê-lo em nossa língua, com a maior fidelidade possível ao espírito deste.

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