Na Síria, a fotógrafa cearense Karine Garcêz recebeu um pedido especial enquanto fotografava crianças refugiadas. Um menino de olhar compenetrado queria um retrato em frente a uma parede, com uma frase em francês: “J’ai le droit de vivre dans un cadre agréable et popre” (“Eu tenho direito de viver em um ambiente agradável e limpo”). Depois de posar para a foto, ele perguntou se a imagem sairia em algum jornal.
O retrato do garoto virou parte da exposição Infância refugiada, que esteve em cartaz na Matilha Cultural, em São Paulo, durante o ano de 2017. A mostra trouxe registros de crianças que vivem nos campos de refugiados na Síria, na Turquia e no Líbano, feitos durante uma viagem de caráter humanitário da cearense com apoio da ONG Al Wafaa Campaign.
As imagens foram espalhadas pelas paredes de uma sala comprida, com uma mesa ao centro, coberta com esculturas em baixo relevo, em que pessoas com deficiência visual puderam também entrar em contato com esse universo. “Como falamos de pessoas excluídas, quis tornar a exposição o mais inclusiva possível”, explica Garcêz.
Ela viajou à Síria pela primeira vez em 2014, e começou a buscar recursos para realizar o projeto em 2015, já que sentiu uma necessidade de dar um retorno às pessoas que encontrou por lá. Achou a possibilidade de fotografar as crianças. "As crianças gostam de fotos. Os adultos, não, eles ficam mais receosos, pois muitos não conseguem registro, então estão irregulares ali. Se aparece alguma foto pode afetar a segurança deles, por isso são mais resistentes à fotografia”, conta.
Infância roubada
As histórias que conta a partir das fotografias são difíceis, de infâncias roubadas. Nessa realidade, ela diz que a preocupação das crianças maiores é de procurar sustento para a família ou cuidar dos irmãos para que os pais possam buscar esse sustento. A segurança é precária. Elas são as principais vítimas do tráfico de pessoas e de órgãos, da exploração sexual e do trabalho escravo. As que habitam a Síria ainda sofrem o estresse da iminência de bombardeios.
É comum que desenvolvam transtornos de sono, além de estarem sempre estressadas e chorarem muito, como relata a fotógrafa. “Quando eu fui para a Síria, levei uns brinquedos e um material de higiene, e eles queriam trocar por comida. A preocupação deles era com comida, não brincadeira."
A maior preocupação de Karine foi mais com a captura do olhar infantil, e menos em retratar o espaço em que vivem. É por isso que grande parte da exposição é composta por retratos, com algumas fotos que abrem o ângulo, evidenciando o contexto habitado pelas crianças.
A fotógrafa, que segue os preceitos do islamismo, conta que o preconceito contra a religião cresceu muito no Brasil nos últimos anos. “As reações [hoje] são bem diferentes. São bem de preconceito mesmo. Já ouvi gritos de pessoas durante uma palestra que estava dando: ‘Volta para o seu país, a gente não te quer aqui, vai embora’.”
Foram agressões desse tipo que a impulsionaram a criar o projeto Muslimah (muçulmana, em árabe), em que vai às escolas levar conhecimento sobre o islamismo, promovendo um discurso de respeito. Quando realizou a exposição, primeiro no Museu da Imagem e do Som do Ceará, em Fortaleza, fez questão de levar alunos de escolas públicas para conhecer as imagens. Conta que muitos faltaram porque os pais não os deixaram ir à mostra. “E aí você tem que tentar saber lidar com isso, porque é o que eles aprendem. No projeto do Muslimah, a primeira coisa que as crianças perguntam para os professores é se eu não vou explodir a escola.”
Ela conta, entretanto, que sente uma mudança na mentalidade dos estudantes, depois de amplas discussões sobre questões como direitos humanos, refugiados e conflitos. “Eles entenderam o que são direitos humanos, o que é violação de direitos humanos, mudaram esse discurso. Alguns relutam, mas a mudança é significativa.”
Na conversa, ela lembra de uma passagem do livro sagrado do Islã, o Alcorão: “Deus nos fez de formas, raça, língua e nacionalidade diferentes para que a gente possa se harmonizar entre si. O que Deus diz através de seus profetas? Ame o próximo como a ti mesmo. Só que amar o próximo que é igual a você é muito fácil: ame o diferente. Procure amar alguém diferente de você. É a tarefa mais difícil que tem”, conclui.
(Texto atualizado em 10/2/2023)