O lugar das crianças refugiadas no Brasil

27/09/2021

O que passa pela cabeça de uma criança que está em fuga de sua casa e de seu país? No posfácio do livro Barco de histórias, lançado pela Companhia das Letrinhas em setembro, Vivianne Reis faz essa pergunta aos leitores. Ela é a fundadora da ONG I Know My Rights, que se dedica exclusivamente a acolher, proteger e cuidar de crianças refugiadas no Brasil. A I Know My Rights é ligada ao Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e, de acordo com Vivianne, já atendeu mais de 5 mil crianças.

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Duas crianças refugiadas falam sobre a fuga sob o seu ponto de  vista

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“Eu me emocionei muito lendo Barco de histórias justamente por lembrar dos relatos feitos pelos pais que tentaram criar uma sensação de segurança para as crianças durante o deslocamento”, ela contou em entrevista ao Blog, que você pode ler abaixo. Vivianne falou sobre o trabalho da organização para garantir o bem-estar das crianças que acolhe, do papel da arte nesse processo e sobre a situação do Afeganistão, que voltou ao controle do Talibã depois de 20 anos.

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A fuga: um não lugar

Com texto da autora Kyo Maclear e ilustrações de Rashin Kheiriyeh, premiada autora e ilustradora iraniana, Barco de histórias é narrado por duas crianças em fuga, que mostram sua perspectiva diante do deslocamento forçado. E o que elas contam? Uma das referências mais impactantes do livro é ao “aqui” dessas crianças, um lugar-momento que muda a todo instante; um não lugar.

Qual é o lugar das crianças refugiadas?

Na ausência da segurança e da estabilidade do lar, o “aqui” dos pequenos narradores passa a ser os objetos de apego que as acompanham: uma xícara com bebida quentinha, um cobertor cor de pêssego que as aquece à noite, uma lanterna que ilumina a escuridão. E como as crianças reelaboram mesmo as situações mais difíceis por meio da fabulação e do faz de conta, esses objetos se transformam em recursos fantásticos que as permitem atravessar esse mar revolto. A xícara é um barco e um lar, o coberto é a sua vela, a lanterna vira um farol a guiá-las.

Além dos objetos que se tornam lugares de acolhimento, a cultura também acompanha essas crianças. Elas contam e ouvem histórias, escrevem, cantam músicas que todos conhecem. 

De acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), havia até 2020 cerca de 82 milhões de pessoas no mundo que foram forçadas a abandonar suas casas e seus países devido a conflitos armados, violência e violação de direitos humanos. E estima-se que metade dessa população refugiada seja composta por crianças, as mais vulneráveis e protagonistas de algumas das cenas mais chocantes dos últimos dez anos, na busca desesperada por um lugar seguro para viver. Para sensibilizar as pessoas para essa causa, a I Know My Rights criou o Dia de Solidariedade à Infância Refugiada, que é celebrado no dia 27 de todos os meses, com ações individuais e coletivas. Para saber mais e ajudar, acesse aqui.

Crianças refugiadas narram a jornada em busca de um lugar seguro para viver

 

Blog da Letrinhas: Como é o trabalho do IKMR?

VIVIANNE REIS: A IKMR é uma organização humanitária brasileira que atua no Brasil desde 2012, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em defesa dos direitos das crianças em situação de refúgio em nosso país.

 

Quantas crianças vocês já acolheram?

Em nove anos de trabalho já atendemos mais de 5 mil crianças e adolescentes, vindas de 16 países (América do Sul, África e Oriente Médio). Em 2021 estamos atendendo 800 crianças, com programas de arte, educação e assistência humanitária.

 

Como chegam essas crianças e como é possível fortalecê-las? Vocês também trabalham com as famílias?

As crianças podem chegar por terra (América do Sul) e de navio ou avião (África e Oriente Médio). Todas elas estão acompanhadas de seus familiares. Mesmo as que estão órfãs têm algum familiar que é legalmente responsável por elas.

O foco do nosso trabalho é o bem-estar das crianças e para isso fazemos um trabalho que considera as 4 dimensões indicadas pela Organização Mundial da Saúde: saúde física, saúde mental, saúde social e saúde espiritual.

Para que uma criança se fortaleça, ela precisa receber cuidados que considerem tudo isso. Está entre nossas prioridades ajudar no fortalecimento do seu núcleo familiar e de sua comunidade, e dessa forma, seus familiares também são beneficiados. O que muda é que entendemos que é importante colocarmos a criança no centro dos cuidados e isso tem uma relevância na dinâmica da integração da família. Nossa pergunta sempre é: do que essa criança precisa? E muitas vezes o que ela precisa não está ligado diretamente a ela... o que ela precisa, muitas vezes, é que a mãe aprenda o português, que o pai consiga um emprego, que a avó consiga um medicamento...

Os objetos se tornam uma permanência na vida das crianças refugiadas

 

Você fala no posfácio do livro sobre o acolhimento das crianças refugiadas por meio da arte. Pode contar como se dá esse processo e como funciona a questão da língua?

Nós utilizamos a arte como uma das nossas principais ferramentas para cura e resistência das crianças, neste processo de integração. Por meio de pinturas, desenhos e textos que elas produzem é possível que nossa equipe pedagógica, que também possui psicólogos e psiquiatras, façam diagnósticos... mas também debates que promovemos por meio dos livros que elas leem ou filmes a que assistem. Temos um projeto incrível de canto coral, em que trabalhamos também o resgate ou a preservação da cultura das crianças por meio da música..

Indo para a escola, geralmente em seis meses a criança já fala o nosso idioma fluentemente.

 

É muito forte no livro essa questão do não lugar da fuga, desse presente intenso e sofrido que encontra acolhida em objetos que permanecem e se transformam em sonhos de uma realidade melhor. É comum isso acontecer com as crianças que vocês acolhem? 

É mais comum que os pais tentem incentivar as crianças a acreditarem nisso. Já ouvi muitas histórias sobre pais que tentaram fazer as crianças acreditarem que eles estavam vivendo uma aventura e não uma fuga... ou que era uma escolha deles saírem, porque iriam se mudar para um lugar incrível. Eu me emocionei muito lendo esse livro justamente por lembrar dos relatos feitos pelos pais que tentaram criar uma sensação de segurança para as crianças durante o deslocamento. E também, por meio da arte, já vimos as crianças expressando o quanto elas entenderam de tudo que tinha realmente acontecido.

Duas crianças refugiadas narra a trajetória da fuga a partir de seu não lugar

 

O lançamento do livro coincide tragicamente com a tomada de poder pelo Talibã no Afeganistão, o que gerou as cenas aterradoras que vimos nas últimas semanas. O que você espera a partir de agora em relação às crianças que conseguiram sair de lá?

É muito importante que as pessoas tenham a sensibilidade de entender que todas as crianças afegãs estão neste momento muito abaladas, em qualquer lugar do mundo que estiverem. O bem-estar delas está comprometido. Elas só não estão fisicamente ameaçadas, como estão as que ainda se encontram no Afeganistão.

Quando aconteceu o massacre em Aleppo, era fim do ano e nós fomos com um menininho sírio pro show da virada, no palco de Copacabana, no Rio de Janeiro, para que ele falasse uma mensagem, já que dia 01/01 é o dia mundial da paz. E ele disse: 'eu quero muito agradecer ao Brasil por ter me acolhido, por não ter me deixado sem um lugar no mundo, mas eu quero pedir pra todos vocês que não se esqueçam das crianças que ainda não conseguiram fugir... porque toda vez que morre uma criança síria na guerra, morre um pedacinho de mim aqui.."

Então é muito importante que estejam mais atentos ainda sobre o que pode acontecer com as crianças que não vão conseguir sair, porque elas certamente serão a maioria. E para as que conseguirem, esperamos que elas realmente consigam ser acolhidas com dignidade humana. As afegãs e qualquer criança de qualquer país que precisem de refúgio. Geralmente as pessoas tendem a se acostumar com os horrores das guerras e dos conflitos e param de dar atenção. O Afeganistão mesmo teve uma grande comoção com as imagens que foram divulgadas do aeroporto, das mães entregando seus bebês para os soldados, mas agora a atenção da maior parte das pessoas já se dispersou.

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