Qual história você contaria para embalar o sono do seu pai? Uma lenda, a narrativa de um livro que leu na infância ou lida mais recentemente, uma história de boca, inventada, ou uma história vivida? Para comemorar o Dia dos Pais, perguntamos a autores, crianças, jornalistas e especialistas em literatura infantil qual é a história ideal para fazer pai dormir. Confira a seguir as respostas – algumas em forma de história ou até de poema.
Ilustração Marcelo Tolentino
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“Meu pai era um mineiro que adorava contar histórias mineiras, daquelas em que bichos se disfarçam para enganar animais mais fortes e poderosos. Então eu leria para ele O Bicho Folharal (editora Rocco), de Angela-Lago, que conta a história de um macaco que se cobre de folhas para enganar uma onça que não o deixava beber água. Para o final ser perfeito, eu teria que cantar uma musiquinha, porque as histórias dele sempre acabavam com uma musiquinha que tirava sarro do animal enganado. E eu ouvia as histórias várias vezes só para escutar a musiquinha de novo.”
José Roberto Torero, coautor de As belas adormecidas (e algumas acordadas) e Joões e Marias, entre outros.
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“O livro que eu escolhi para ninar o papai foi O vôo da Asa Branca (editora Prumo). Tem váaarios livros que fariam o papai dormir, mas esse é melhor porque é um livro de cantar. Quando eu viro as páginas, dá pra saber a parte da música mesmo sem eu saber ler. Quem me ensinou essa música foi a minha vó, que sempre cantava. Minha mãe disse que desde que eu tinha dois anos eu canto essa música e gosto dessa história. A gente achou esse livro na livraria e gostamos muito. Gosto muito dos desenhos. Posso ler esse livro para fazer meu pai dormir igual minha vó canta para mim.”
João Pedro Marconato Negrão, 4 anos
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“Eu leria para o meu pai a história Para onde vamos (editora Pulo do Gato), de Jairo Buitrago. A narrativa conta os momentos de uma menina que viaja com seu pai, mas não sabemos para onde eles vão. Durante a longa caminhada, ela vai contando os animais, as nuvens e as estrelas do céu. Também conta crianças e soldados. Às vezes, eles param em algum lugar durante uns dias, pois o pai precisa ganhar dinheiro para prosseguirem. Escolhi essa história porque, quando meu pai era menino, ele vivia numa aldeia e não havia nenhum desejo por parte de sua família de sair daquele lugar. Mas chegou um tempo de imposição e intolerância, e muitos foram obrigados a partir. Ao chegar no Brasil, ele foi ridicularizado pela forma como se vestia, pelo jeito como falava e pensava. Era uma travessia pra além da geografia dos mapas, ele era obrigado a viajar dentro de si, desapegando-se de suas referências mais caras para reaprender a viver com coragem e fé. Esse olhar para o menino que existiu antes do meu pai me ajudou a construir uma amizade entre a menina que eu fui – as crianças que ambos continuamos cuidando em memórias de afetos. Hoje a gente se reúne, meu pai e eu, e as histórias se misturam numa viagem por nossas existências. E é tão bom seguir viagem com um amigo por perto.”
Penélope Martins, escritora e narradora de histórias, autora de Quintalzinho e Poemas do jardim.
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“Contaria A Extraordinária Jornada de Edward Tulane (editora Martins Fontes), de Kate Dicamillo. A história é de Edward Tulane, um coelho de porcelana que tinha uma boa vida ao lado de sua dona, Abilene, na casa da Rua Egito. Edward era muito amado, porém não valorizava o amor e só se importava com ele mesmo. Até que um dia, durante um cruzeiro de navio em que acompanhava Abilene e sua família, ele é arremessado ao mar por um garoto arteiro. Durante os vinte e sete capítulos muita coisa acontece na existência do coelho Edward, ele se perde, mas também se reencontra. Vive aventuras únicas cheias de perdas e, no fundo, muitos ganhos. Assim como é a vida. Há surpresas, reviravoltas e um grande aprendizado sobre o amor. O livro diz muito do que eu gostaria de dizer ao meu pai, se ele ainda estivesse aqui, que de todas as coisas na vida, não há nada mais importante do que o amor e só quem enxerga isso, no final das contas, é realmente feliz.”
Christiane Angelotti, editora de literatura infantil e infantojuvenil e do site Para Educar
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“Minha relação com meu pai e a literatura é de amor sem fim. Para embalar seu sono, com certeza, leria Indez (editora Global), de Bartolomeu Campos de Queirós, livro de que ele gostava tanto e que fazia com que se lembrasse de seus tempos de criança. A história de Bartô sempre abria uma clareira na qual cabiam as histórias do meu pai menino, na Fazenda Água Limpa. E como um anzol encantado, suas lembranças e causos me puxavam para este lugar secreto, onde eu podia saborear com ele a manga no pé e ouvir o tô fraco, tô fraco, gritado pela galinha d’angola lá longe.”
Silvia Oberg, doutora em Ciência da Informação e Educação, especialista em literatura para crianças e jovens. Autora de O presente de Manzandaba e outras aventuras.
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“Eu inventaria uma história completamente aleatória ou não contaria nenhuma, porque meu pai dorme bem rápido. Se tivesse que ser uma que já existisse, ixi, eu já li tantos livros! Mas acho que seria O gênio do crime (Global Editora) ou Os meninos da rua Paulo, porque este é um clássico húngaro de muita tradição.”
Antonio Duarte, 11 anos
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“Meu pai não é do tipo que inventa histórias, também não conhece muito sobre lendas brasileiras ou mitologia grega. Ele não sabe detalhes das aventuras do Sítio do Pica Pau Amarelo e não me lembro de ter visto ele lendo pra mim. Mas ele lê o tempo todo, por isso fica sabido e gosta de dividir com a gente o que aprendeu. Ele é daquelas pessoas que, pra explicar qualquer desimportancia, conta toda uma história e recheia os fatos com exemplos saborosos de um jeito que às vezes a gente acaba até esquecendo qual era a pergunta inicial. Para ele, eu dedicaria o livro Se…, de David J. Smith, porque os dois explicam o mundo de um jeito gostoso.”
Patricia Auerbach, autora de Direitos do pequeno leitor e Histórias de antigamente, entre outros.
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“A história que eu contaria para embalar meu pai é a de Pedro Malasartes. Assim como meu avô, meu pai foi criado na roça. Minha melhor lembrança da infância era de ouvir histórias dos dois. Eles adoravam contar causos com personagens astutos, que viviam aventuras em universos rurais. Em todas as histórias havia um certo exagero nos acontecimentos, algo fantasioso que me atraia. Sempre no final, o matuto, com muita graça, triunfava como um grande herói. Meu pai me dizia que a gente tinha que estudar, ser esperto para poder ter inteligência para as adversidades, nem que fosse para contar uma boa história. Por essas e outras, Pedro Malasartes é o personagem perfeito para embalar meu pai que me inspirou com suas histórias que eu sabia serem inventadas mas queria acreditar que eram reais.”
Weberson Santiago ilustrou a edição especial de O futuro de Horácio, de Mauricio de Sousa.
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“Eu contaria a história de Os três porquinhos, porque ele sempre contava para mim, então eu ia retribuir, assim é a vida.”
Pedro Moretti, 9 anos
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“Eu leria pra ele o Livro das perguntas (editora Cosac Naify), do Pablo Neruda, ilustrado pelo Isidro Ferrer. Meu pai dormiria embalado por perguntas absurdas, imaginando respostas poéticas, e eu dormiria junto, embalada por suas respostas que sempre foram as mais lindas do mundo.”
Blandina Franco, autora de Eu não acho de jeito nenhum e Ernesto, entre outros.
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“Há uma linha que liga eu e meu pai, mesmo ele tendo partido há quase 20 anos. É como a linha a de um telefone sem fio que amarra a lembrança ao presente que sempre o traz de volta. O pai de meu pai era um senhor muito severo. Tenho certeza que o vô nunca lhe contou uma história. Meu pai, ao contrário, acho que ele foi feliz enquanto fazia brinquedos para mim e meu irmão. Lembro de um caleidoscópio mágico que ele criou. Também virava marceneiro confeccionando mesinhas e cadeirinhas perfeitas para nossa altura. E o amor se revelava nas fotos da gente, um jeito de ilustrar nossa história. Mas, hoje, eu perguntaria se ele conhece a história da Ananse, a aranha mais sabida de toda a África. Eu contaria que o animalzinho andou pelos mais distantes cantos do continente recolhendo histórias de sabedoria, guardando todas num pote que ficou cheio até a boca. Pois o aranhudo, sentindo-se poderoso, passou a procurar a árvore mais alta entre todas. Ele pretendia esconder o precioso tesouro de algum ladrão atrevido. Mas, ao tentar escalar o tronco, não avançava, por conta do peso da carga amarrada na cintura. Foi quando seu filho menor apareceu e foi logo dizendo: ‘Pai, por que você não coloca o pote nas costas? Ficará com as mãos livres e poderá subir com mais facilidade’. Ananse assim fez e em pouco tempo alcançou a copa. Em pouco tempo também entrou em crise. Ficou pensando como, apesar de possuir tanta sabedoria, uma criança havia sido muito mais sábia que ele. Ananse ficou em silêncio até entender que ninguém é dono de nenhum conhecimento. Passou a chamar, então, os ventos. Depois, atirou o pote lá do alto. E foi assim que as histórias de sabedoria se espalharam, novamente, entre os povos. Acho que meu pai gostaria dessa história, pois é uma forma delicada de mostrar que o que liga um pai aos seus filhos é o aprendizado de um com o outro, o que nunca acaba. Pode até o pai ser invisível, mas a linha forte entre esses dois sabidos não será. Meu amor ao meu e aos pais Ananse espalhados por esse mundo.”
Heloisa Pires Lima é autora de Histórias da Preta, entre outros.
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“A primeira história que me veio à mente foi Ribamar (editora Bertrand Brasil), do José Castello. Um livro que traz muito forte a relação entre pai e filho. Mas a história que eu leria mesmo é uma que nunca me saiu da cabeça, desde que li. Um conto muito simples – e por isso muito inteiro – do Domingos Pellegrini Jr., chamado Domingo. Além de domingos em geral me lembrarem muito meu pai, a história traz uma consciência bonita de que o pai não consegue estar junto sempre, de que os “voos solos” são a consequência de uma vida bem cuidada. Na história, um pai leva um filho para nadar no rio pela primeira vez. O menino não sabe o que fazer com tanta alegria e liberdade, até que, inesperadamente, se afoga. E o pai não vê. Só lendo, mesmo:
‘O pai estava olhando e ele nadou, nadou e parou pra descansar, os pés desceram na água fria e se debateu, perdeu fôlego e logo estava afundando e debatendo, os pés já na água gelada - mas bracejou pra cima, saiu, viu o pai distraído olhando pra outro lado. Então estava sozinho! Bracejou mais, enfiando a cabeça na água até o corpo nivelar, e voltou nadando, nem acreditou quando trombou com o pai. Era a primeira vez que afogava, e a primeira vez que se salvava, sozinho. Mas o pai nem tinha percebido.’
O conto é longo e não acaba aí. Nem acho que o autor tenha pensado nesse trecho como um clímax ou qualquer coisa assim, mas pra mim foi. Demorei para passar desse trecho quando li pela primeira vez. E ele continua: “o pai garante que toda coisa gostosa é assim mesmo: a gente sempre quer que a primeira vez seja a última, até a próxima vez. Pra mim, simboliza a calma de um pai que entende que, por mais que prepare o filho para as coisas, no fim das contas, é sempre sozinho que ele vai vivê-las.”
Renata Penzani, jornalista e autora do blog Garimpo Miúdo.
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“Meu pai, Luiz Felippe Prieto, adorava aventuras míticas, fantásticas, com dragões, cavalos alados, guerreiros, muita ação e suspense. Quanto mais intrigante a história, melhor, pois ele apreciava finais inesperados. Por isso, eu contaria a história A pérola do dragão:
Na Antiga China, um garoto vivia com a mãe, viúva, ao lado de um grande rio. Para ajudá-la, ele cultivava um pomar. Certo dia de verão, encontrou uma pérola brilhante, no meio das raízes de uma árvore. Logo ele se lembrou das pinturas dos grandes dragões com pérolas nas bocas que ele vira no templo. Como as outras crianças de sua região, ele acreditava que os dragões eram figuras protetoras, portadoras de sabedoria e prosperidade. Feliz, ele correu e mostrou a pérola a sua mãe. Ela também ficou alegre e lhe disse que a vendesse no mercado. A mãe a guardou na vasilha vazia de arroz. Naquele verão a seca era devastadora e a comida e escassa. Na manha seguinte, a mesma vasilha amanheceu repleta de arroz.
– Meu filho – ela disse – essa deve ser uma pérola mágica que algum dragão deve ter perdido. Ela multiplicará tudo o que tocar.
De noite, eles a colocaram dentro do cofre e, ao despertar, viram que estavam com muito dinheiro. Assim, o menino e sua mãe passaram a viver bem. Mas, nisso, as pessoas começaram a reparar que algo diferente acontecia em sua casa. De onde viera tanta fartura repentina? Inocente, o menino acabou contando que ambos haviam encontrado uma pérola mágica. Pronto! Começou a confusão! Todos na vila queriam pegar a pérola de dragão para si! Assustado, o menino a enfiou na boca e a engoliu. Na mesma hora, sua barriga começou a queimar.
– Corra, vá até o rio e beba muita água, meu filho!
O menino saltou dentro do rio. O vento subitamente soprou, uma chuva forte caiu, e a seca terminou. Todos os agricultores riram, celebrando a chuva, desviando o olhar do menino. Inesperadamente, ouviram um grande silvo, um bater das águas e viram quando o corpo do menino se alongou, asas imensas cresceram em suas costas: agora ele era um belo dragão voando nos céus.
Muitos saudaram esse poderoso guardião, mas a mãe não se conformou e começou a chamá-lo de volta. O dragão sabia que não voltaria a ser criança, pois ele se tornara o grande patriarca, protetor de toda a região. Feliz pela honra, mas, ao mesmo tempo, triste de saudades da mãe, o dragão chorou e suas belas lágrimas formaram lagoas cintilantes. Depois ele mergulhou no fundo do rio, deslizando feliz para os reinos mágicos onde passou a viver eternamente.”
Heloisa Prieto, autora de Divinas travessuras e Esconderijo, entre outros.
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“A um grande guarda-livros
Você amava os livros, saiu em busca de novos ares. O seu país oprimia a cultura, produzia analfabetos para colher carneirinhos. Você me deixava remexer na sua gaveta de livros quando ainda não tinha estantes. Antes de entrar na escola, eu já sabia a história da Roma e da Grécia antigas graças aos seus livros guardados. Também sabia os países do mundo e as bandeiras, pelo seu atlas que veio de Portugal, e você me perguntava sobre as ruas e itinerários de ônibus de São Paulo que eu decorava no guia da cidade (este não veio de Portugal). Você estudou tudo de novo para conseguir mais uma vez o diploma de guarda-livros: o de lá, aqui não era validado. Quando lancei meu primeiro livro, você não aceitou o exemplar que quis lhe dar de presente. Fez questão de comprá-lo na noite do lançamento – para dar sorte, disse você.
Hoje guardo o Livro da Sua Vida em mim, Pai.”
Fernando Nuno, autor de O livro que não queria saber de rimas, entre outros.
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“Segundo o Tomás, ‘o amarelo sabe a mostarda, mas é macio como as penas dos pintaínhos’. ‘O castanho estala debaixo dos pés quando as folhas estão secas. Às vezes, cheira a chocolate, outras vezes cheira muito mal’. Ontem à noite li para meu filho Tomás O livro negro das cores (editora Pallas). Pensei que o Tomás podia contar essa história para seu avô ou juntos para meu pai. É o personagem Tomás que, nesse livro, nos leva a conhecer um mundo através de sons, sabores e cheiros. Memórias além das memórias visuais. Somos convidados também a experimentar texturas.
Num Natal do passado, fizemos um amigo secreto (essa história contei para meu filho Tomás à noite também) e tirei meu avô, pai do meu pai. Quis escrever uma carta, mas ele não podia ler com os olhos. Fomos juntos, eu e meu pai, procurar uma maneira de traduzi-la para o Braille. Não tenho memória se as letras em Braile na época ficaram grandes ou pequenas demais para que meu avô pudesse ler com os dedos. Mas eu me lembro da alegria de poder me conectar com ele. Meu pai sempre me fez experimentar o mundo. Lembro-me de meu pai com a gente na piscina gelada, no mar forte, andando de bicicleta. Lembro-me de recolher folhas secas no chão enquanto meu avô empinava a pipa que meu pai levava pra ele. Meu pai cozinha escagot e, naqueles potinhos com furinhos, vamos retirando um a um e sentindo na língua o tempero quentinho. Meu pai andava comigo na praia, acordávamos cedinho e era uma hora nossa, podíamos conversar sentindo um ventinho no rosto e a areia nos pés. Um dia ainda vamos fazer isso de novo.
O Tomás ontem conheceu o Braille e um pouco mais de minha relação com meu pai, com meu avô. Acho que uma pessoa de baixa visão terá muita dificuldade para perceber as nuances do brilho do verniz nas páginas pretas ilustradas nesse livro. Pode ser que o Braile esteja impresso muito pequeno também para um cego. Mas despertar para esse tema, pensar que a fantasia deve estar ao alcance de todos, é meu interesse e sei que compartilho isso com meu pai.
‘Tomás gosta de todas as cores porque as ouve, cheira, toca e saboreia’, assim como o meu Tomás, que experimenta a vida com todos os sentidos.
Para meu pai que, neste Dia dos Pais, não vou poder dar um abraço apertado, mas, de longe, estarei pensando nele.”
Renata Bueno, autora de O que é a liberdade? e Monstro que é monstro, entre outros.
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“Herança
Picolé, praia, chorinho,
Ópera, tango, sambinha...
e comida da boa.
Muitos livros, boas histórias,
e uma deliciosa herança
de Veríssimo a Proust e Balzac.”
Silvana Salerno, autora de Qual é seu norte? e Viagem pelo Brasil em 52 histórias, entre outros.
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“A história que eu contaria para fazer meu pai dormir teria que ter uma canção porque a primeira ou uma das primeiras lembranças da minha vida é ver meu pai andando pelo quarto onde eu dormia cantando com a Lia, minha irmã menor, no colo. Poderia ser a da Chapeuzinho Vermelho, que tem a canção em que ela diz que vai 'pela estrada fora, bem sozinha, levar doces para a vovozinha'. Tem também a do Lobo, em que ele diz que é 'o Lobo Mau, que pega as crianças pra fazer mingau'.
Mas acho que o Cláudio não ia gostar de ouvir essa história, porque ele é um menino que neste domingo teria 89 anos, e meninos com mais de sete anos não fazem a menor questão de ouvir histórias sobre princesa e meninas bobas que se deixam enganar facilmente. A história que eu contaria para meu pai chama 'O brinquedo que se perdeu na noite de Natal', sobre um cachorro de brinquedo que cai do trenó do Papai Noel e precisa descobrir como chegar na casa da criança que pediu um cachorro de brinquedo. Quem lia essa história ficava muito feliz porque o cachorro consegue chegar a tempo de fazer a criança muito feliz. Eu contaria essa história para o Cláudio, sem saber se ele ouviria, porque faz cinco anos que está no céu. Eu não sei também se ele reconheceria essa história, que foi ele que inventou e escreveu. Eu não sei se as pessoas, depois que chegam no céu, lembram do que aconteceu quando estavam na Terra.
Talvez essa não fosse a melhor história para embalar meu pai. Talvez ele reconhecesse e perdesse o sono pela animação de estar ouvindo a única história dele que virou livro. Talvez a melhor coisa era eu contar essa história, mas contar em seguida outra que tivesse uma canção. Ou talvez fosse melhor eu usar a melodia da canção do Lobo Mau, com uma letra improvisada, que começaria assim:
Quem foi que se perdeu.
Se perdeu no Natal?
Foi um, foi um brinquedo
Olha só, que tal?
Talvez, com essa canção meu pai pegasse no sono. OU talvez ele ficasse muito animado com uma canção sobre a história dele. Aí o jeito era cantar a do Sapo cururu ou a Boi, boi, boi...”
Flavio de Souza é autor de Antes e depois e Nove Chapeuzinhos, entre outros.