Tatu não gosta de repetir casa, mas, em dia de exceção, lá foi o bicho de volta à toca da noite anterior. A surpresa foi encontrar por ali um visitante inusitado: era uma cobra que tinha se aproveitado do buraco já cavado, prontinho para o descanso. Do iminente combate pela provisória moradia fez-se a tensão: tatu, cobra, cobra, tatu. O que poderia surgir de tão estranha situação? Duvido alguém de pronto adivinhar.
Assim é a história de Cobra-tatu, com lançamento marcado para o dia 19 de maio, sábado. Seu autor, Rodrigo Naves, é conhecido no meio cultural: jornalista, professor e crítico de arte. Com dois livros de ficção publicados (O filantropo, de 1998, e A calma dos dias, de 2014), a aproximação com a literatura infantil não poderia ter acontecido de forma melhor: foi amigo do poeta José Paulo Paes. A relação com o autor de A revolta das palavras virou até um texto de perfil, publicado em seu segundo livro de ficção.
Até o filho de Rodrigo virou símbolo da amizade – ganhou nome de José Paulo, em homenagem ao poeta falecido em 1998. As conversas entre os dois visitavam muitos universos, mas tendiam naturalmente à literatura e às artes visuais. “Foi uma das pessoas mais importantes, se não a mais importante, da minha formação.” Ele lembra que José Paulo Paes acreditava muito no poder da literatura de entretenimento, assunto de discussão entre os dois amigos que tinham em comum o autodidatismo em suas carreiras.
O que o crítico de arte observa sobre o que é produzido hoje nas artes visuais gira em torno de uma certa impessoalidade, que ele considera por vezes exagerada. “Nessa espécie de reivindicação por fazer formas muito simples, acabou virando uma coisa simples demais”, opina sobre a crítica que a Arte Contemporânea faz à Arte Moderna.
Nesse ponto, elogia o trabalho de Luísa Amoroso, ilustradora de seu novo livro e de quem guarda grande admiração. Ela foi sua aluna no curso de História da Arte que ministra há 30 anos. Com carimbos e cores chapadas, recortes e colagens da mesma figura em diferentes contextos, capta o que há de melhor no moderno e no contemporâneo, mescla tudo em seu trabalho, contemplado neste livro, uma história de uma cobra e um tatu.
Confira a seguir nosso bate-papo com Rodrigo Naves.
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Você escreveu muitos livros teóricos, coletâneas de ensaios... Quando você começou a percorrer esse universo da literatura infantil?
Rodrigo Naves - Tive um amigo que já morreu, chamado José Paulo Paes, que tem muitos livros infantis em versos muito bonitos. Ele foi uma das pessoas mais importantes, se não a mais importante, da minha formação. Também dou aula de História da Arte, e tive uma aluna, que é a Luísa [Amoroso, ilustradora do livro], que eu notei que tinha muito talento para desenho. E daí que veio essa ideia. Fiz o primeiro livro e acabamos publicamos por uma outra editora. Então fiz esse segundo e mandei para a Júlia [Scwarcz]. Ela gostou mais, mas achou que o fim era um pouco abrupto e sugeriu que fizesse uma continuação. E eu concordei. A parte do tuíste foi uma coisa que nasceu muito na sugestão das editoras.
E como era a sua relação com o José Paulo Paes?
Rodrigo Naves – A Folha [de S.Paulo] fazia um suplemento cultural chamado Folhetim, que não existe mais. E eu editei esse suplemento por um ano e meio, algo assim. Isso nos anos 1980. Um jornalista conhecido, chamado Mário Sérgio Conti, me deu o contato do José Paulo Paes. Ele era muito disponível, o tempo foi passando, passamos a conviver. O José Paulo fez Química Industrial, trabalhou em indústria química por muitos anos e era muito angustiado por isso, porque gostava mais de escrever. Eu sou jornalista e dou aula de História da Arte, quer dizer, a formação que eu tenho é de autodidata. Tínhamos isso em comum. Eu aprendi muito com ele, não só do ponto de vista mais intelectual, mas ele era um homem extremamente ético, sereno. Foi uma pessoa muito importante para a minha formação de vida. Também acompanhei bastante essa realização dos textos infantojuvenis, inclusive um deles é dedicado para o meu filho, que se chama José Paulo. Nós fomos muito próximos e quase tudo que o José Paulo fez foi sem planejar. E eu não tinha nenhum plano [de escrever para crianças].
E o que ele te ensinou sobre literatura infantil? Vocês chegaram a ter conversas sobre esse tema?
Rodrigo Naves – Ele tem um artigo muito famoso que infelizmente não saiu na coletânea de ensaios dele. É um livro que fala da importância da literatura de entretenimento e da formação de leitores. Você ler Agatha Christie, Monteiro Lobato. Ele acha possível você entrar nessa via e por essa via criar interesse por literaturas mais complexas, mais elevadas. Sobre esse assunto, particularmente, nós conversamos muito. Porque eu que mexo mais com artes visuais, era um pouco cético. Hoje em dia mudou, tem uns gibis muito mais caretas. Naquela época era Super-Homem, Mandrake, Tio Patinhas. Agora tem umas coisas que têm uma certa região de convergência entre as artes visuais e a pop. Passando para a minha área, eu não sabia dizer, era muito cético de que, do ponto de vista visual, ler um gibi fosse o primeiro degrau para que você fosse depois gostar de Picasso, de Velázquez. Li muito gibi na vida, mas não teve nenhuma influência no meu gosto por artes visuais. Nenhuma. Talvez colabore mais para aprender a ler.
Como a arte pop aparece hoje nas artes visuais?
Rodrigo Naves – Nas artes visuais, passou a haver um interesse voluntário pela incorporação dos quadrinhos. O Andy Warhol teve um quadro leiloado há cinco anos que se chama "Acidente com carro prata" (Silver car crash). Ele comprava fotos tão violentas que os jornais se recusavam a publicar, copiava a imagem e a imprimia na tela. Não é uma pintura em seu sentido tradicional, é uma gravura sobre tela. Mas essa gravura custa 100 milhões de dólares. Não acho que ele estivesse preocupado com isso, o que ele quis foi se opor a uma certa tradição da pintura e a arte com uma dimensão mais trágica da vida, uma tensão muito maior.
Como você vê a arte contemporânea e seus maiores desafios hoje?
Rodrigo Naves – A arte contemporânea faz uma crítica muito forte à arte moderna, que seria aristocratizante, esnobe, que se afasta da vida, o que acho uma bobagem. Como se a alegria não tivesse nada a ver com a vida. Esse pessoal, voluntariamente, vai buscar fazer uma arte de menor tensão, de menor drama, que, de alguma maneira, é uma coisa real na nossa sociedade. Andy Warhol, por exemplo, comprou uma foto da Marilyn Monroe, um still de um filme. Ele tem a capacidade de escolher uma imagem em que parece que todas as facetas da Marilyn Monroe estão contidas ali. A mesma coisa com o Elvis Presley, com o Kennedy. Isso significa fazer um esforço para queimar todas as possibilidades de que a sua relação com o mundo seja expressiva. Se você tirar uma fotografia da Marilyn Monroe, isso revela algo de você, mas ele comprou uma foto de um filme, então isso não tem nada de pessoalidade, a não ser uma inteligência visual, de escolher aquela foto, muito mais significativa do que as outras milhares de fotos da Marilyn Monroe. Depois ele grava aquela tela. Já tem uma outra falta de expressividade que é o fato de não ter mais mão, não tem aquele drama dos expressionistas, aquele choque de cores. Em vez de ser uma forma complexa, como foram muitas obras modernas, muito da arte contemporânea é justamente a tentativa de esvaziar essa dimensão trágica, angustiada. Na sociedade contemporânea da produção de massa, do anonimato, da falta de opinião forte, a relação com o outro também é uma relação muito mais frágil. O que o Andy Warhol percebeu é que ele está como que nos explicando que a nossa relação com o mundo já é uma relação não-expressiva. Então você tem que encontrar uma maneira de fazer arte que também não tenha expressividade. Embora eu entenda a importância dos contemporâneos, tem alguns questões. Nessa espécie de reivindicação por fazer formas simples, acabou virando uma coisa simples demais, eu diria. Não acho que Andy Warhol seja banal, pelo contrário. A operação dele, que muitas vezes é vista como banal, é inteligentíssima e muito bem resolvida em todos os sentidos, de cor, de forma...
Como o trabalho da Luísa Amoroso dialoga com tudo isso?
Rodrigo Naves – O desenho da Luísa é uma coisa muito entre o moderno e o contemporâneo, ela usa muito carimbo. Efetivamente, carimbo não tem expressividade nenhuma. Ela usa as cores muito chapadas, que é uma coisa muito do moderno e também dos contemporâneos. Enfim, muitas vezes ela recorta a mesma figura e a coloca em muitas posições, portanto, em um contexto, ela adquire vários significados. Deve ser alguns dos aspectos porque eu goste tanto do trabalho dela.