Imagine uma escola localizada no entorno de uma árvore. Quais as regras para o seu funcionamento? 1) Professores não sabem que são professores e alunos não sabem que são alunos, com papéis a variar o tempo todo; 2) deve haver na tal escola uma sombra sob a qual todos podem se sentar e compartilhar experiências. Reflexão coletiva e prática da escuta são ações que permeiam o fazer e o pensar tal escola.
Essa foi a ideia da Árvore-Escola, criada em 2014 pelo coletivo de educadores Grupo Contrafilé, que existe desde 2000 e é conhecido pelo Programa para a Descatracalização da Própria Vida, realizado em 2004. A ação consistiu em uma catraca enferrujada colocada no Largo do Arouche. Na época, a ação ganhou ampla repercussão na mídia e foi tema de redação do vestibular da Fuvest.
Monumento à Catraca Invisível, parte do Programa para a Descatracalização da própria vida, 2004. Foto: acervo do grupo
A Árvore-Escola foi gestada por muitas vozes. Nasceu dos diálogos entre os integrantes do movimento – Cibele Lucena (educadora e artista), Joana Zatz Mussi (jornalista e cientista social), Jerusa Messina (educadora e artista) e Rafael Leona (artista) – e também do diálogo com outros grupos, como quilombolas e ativistas do MST. “Fomos juntos percebendo que ‘escola’ não é apenas um espaço cercado por quatro paredes, escola não é um conjunto de carteiras ou tudo que fica mediando os processos de ensino-aprendizagem”, diz Joana Zatz, uma das integrantes do Contrafilé.
O grupo transforma e extrapola a dimensão física da escola. “Pessoas são escolas, árvores são escolas, os encontros e as alianças entre distintas pessoas e grupos, com todos os seus conflitos, descobertas e invenções, são escolas”, complementam Joana e Cibele. Para elas, escolas são espaços de encontro, em que predomina a possibilidade de tatear ideias. “Nos interessa menos a escola como categoria e mais a escola como desvio de rota, linha de fuga – o que só é possível quando existe potência, vitalidade.”
Essa ideia expandiu-se ainda mais quando o coletivo teve contato com o conceito de direito à cidade do geógrafo David Harvey, que afirma, em A liberdade da cidade: “A liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações. [...] A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos”.
A definição abriu ainda mais os horizontes do grupo que se dedica a pensar a educação, dimensão que ganha aqui um novo sentido: de invenção e imaginação de uma cidade atravessada por outros modos de pensar, significar, existir. É também o que inspirou os educadores a realizarem ações em espaços públicos. “Nossas ações públicas são também a experiência de instaurar na cidade nossas vozes, outras vozes. Podemos inventar, a partir da elaboração coletiva do que atravessa nosso corpo, outras formas de estar no mundo, de pensar, de nos relacionar.”
Foto: Ciranda de Filmes
Um exemplo é A batalha do vivo, de 2015, ação com a proposta de explorar objetos comuns à sala de aula. A tradicional lousa, que costuma ocupar o espaço da parede, foi horizontalizada, virou um tampo de mesa, o que lhe garantiu o nome de “mesa-lousa”. A ferramenta de escrita deixou de obrigar o professor a dar as costas para o mundo e tornou-se acessível e colaborativa. “Assim, a escola deixa de ser muro e vira um verdadeiro ser, composto pelas relações entre coisas e pessoas, pessoas e pessoas. Só assim a escola pode se conectar com o mundo, enquanto ser vivo. Senão, o que conecta com o quê?”, questionam.
A inspiração aos movimentos de estudantes secundaristas, ocorridos também em 2015, é declarada. Foi a partir desse “rasgo, um grito vital” que muitos questionamentos surgiram, como o lugar do corpo humano nos processos educativos. Corpo este que parece escondido por detrás de uma carteira, mas que mostrou-se como gesto vivo na insurreição dos jovens.
Cartaz criado em oficina realizada com estudantes secundaristas na ocupação da Diretoria de Ensino Centro-Oeste, 2016. Foto: Grupo Contrafilé
“[Eles] nos contaram que ‘ocupar’, no seu caso, teve muito a ver com estar de uma outra forma naquele mesmo espaço onde passaram e passam quase a vida inteira. Uma jovem chegou a dizer algo como: ‘Pode parecer até um contrassenso ocuparmos aquilo que aparentemente já estávamos ocupando’. Essa nova ideia de presença no ambiente educativo pressupõe entender o corpo como um “território real e legítimo”, sem negar as questões que o perpassam a ancestralidade, as lutas, os traumas, as dores e as alegrias, a cor, o gênero, as histórias, as vergonhas.”
Daí também a compreensão de que o corpo é uma escola – que pode nascer e que, ao mesmo tempo, já é nascida. É um espaço de consciência e ruptura constantemente gestado e combatido. “Onde estão os conhecimentos a não ser aí, em todos e em cada um de nossos corpos, em todas e em cada uma das situações e seres no/do mundo?”