“Não há melhor palco
para um pensamento que dança
do que o lado de dentro
da cabeça das crianças.”
É com esses versos que o compositor, rapper e escritor Emicida inaugura seu primeiro livro infantil, Amoras, inspirado na canção homônima que integra o álbum Sobre quadris, pesadelos e lições de casa (2015). Segundo o poeta Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), ela “rega as crianças com o olhar cristalino de quem sonha plantar primaveras para colher o fruto doce da humanidade”.
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A poesia das palavras que agora compõem as páginas do livro ilustrado por Aldo Fabrini não poderia ter origem mais certa que a África, continente que inspirou as músicas presentes no álbum, como "Mãe e casa". Foram viagens a países como Cabo Verde, Angola, Madagascar, África do Sul e Marrocos que promoveram no autor algumas das experiências mais marcantes na vida.
“A parada que mais me impressionou foi uma norma completamente diferente da que orbitamos em volta aqui na realidade do Brasil. Pra começar, pela primeira vez, não éramos pessoas pretas ou pardas, como quiser chamar; pela primeira vez, éramos apenas pessoas. Isso, para quem não vive sendo marcado pela cor de sua pele durante uma vida pode parecer insignificante, mas, para mim, foi libertador de uma forma absurda”, diz.
O disco que surgiu dessa incursão não poderia ser diferente. “Encontrar esse lugar foi tão mágico que nasceu o disco como um convite para todos que ouvem buscar esse lugar em si, essa África que não nos foi roubada completamente, mas foi no mínimo muito bem escondida em conceitos que hoje nem quem praticou esse mal sabe justificar.”
Mas Amoras não foi gestado apenas nessa viagem. Nasceu também das memórias de infância do poeta, das aulas da dona Rita de Cássia na quarta série, quando aprendeu o significado da palavra possibilidade. “Definitivamente Amoras é a música mais pesada no que diz respeito a revelar seu lugar no mundo. Vencer as batalhas é importante em um mundo que vive em guerra, mas, se conseguirmos correr e chegar antes, talvez consigamos ensinar sobre o valor da paz. Amoras chega antes.”
Chega a tempo de disseminar a paz para todos os filhos dos primeiros fãs de Emicida, que hoje já acompanham os shows com os pais. “É uma honra ver a vida recomeçando assim e ser um elo de ligação entre pais e filhos, a música é algo mágico por isso também. Ao ver isso, impossível não abrir uma porta que receba com muito afeto também os pequeninos e pequeninas”, diz o cantor, que já percorre os palcos do Brasil e do mundo há 15 anos.
É também um presente a Estela, filha de Emicida. Foi ela a primeira pessoa que ele viu salvar o mundo e a quem ele dedica o livro. É a fonte de inspiração de Amoras, com uma singela conversa. Isso porque é a pequena quem mais questiona o pai, mesmo sem perceber, sobre as “fraquezas viciadas que compramos como sinônimo de força”, quem o convida para se conectar a essa humanidade do mundo e, assim, armar-se com as palavras para enfrentar os pesadelos que o assombram.
Ele quis retribuir. “Quando você se torna adulto e tem filhos ou filhas, você se esforça para dar aos seus pequenos coisas que você não teve. Eu infelizmente não tive um livrinho que fosse meu companheiro e me fizesse me sentir grande, bonito, inteligente, importante e o resultado disso foram momentos de questionamentos muito tristes, visões impregnadas em mim que me machucavam muito.”
Por isso, faz questão de celebrar o pensamento das crianças, que sempre o surpreendem com suas linhas de raciocínio. Foi essa imaginação presente na infância que o salvou, “aqueles pensamentos que dançavam em mim encontraram palco e aplausos dentro do meu ser”. Afinal, Emicida concorda com o escritor uruguaio Eduardo Galeano, que acreditava no poder exclusivo das crianças em olhar o mundo e realmente enxergá-lo. Para o cantor, esses seres recém-chegados ao planeta Terra são bússolas que podem nos ajudar a percorrer os nossos caminhos.