No mês em que se celebra a diversidade étnica do país e se reforça a importância de engajar toda a sociedade na luta pela garantia de direitos das populações indígenas brasileiras, o escritor e professor Roni Wasiry Guará, do povo Maraguá, que vive em Nova Olinda do Norte, no Amazonas, problematiza a data e fala sobre o ensino das culturas indígenas em sala de aula.
O autor tem publicadas obras como Olhos d’água (editora Autêntica), Mondagará – Traição dos encantados (editora Formato) e A árvore da vida (editora Leya), sobre a presença dos povos indígenas na sala de aula, fomentada pela Lei 11.645, que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Formado em Pedagogia Intercultural, Roni Wasiry Guará entende que, apesar dos esforços, “o olhar sobre o indígena ainda é um olhar separado do tempo”. Por isso a importância de um ensino intercultural em um país tão diverso.
“Índio não me define”, ele diz. “Foi uma palavra que ao longo da história foi colocada. O que me define é o nome do povo de onde eu sou.” Essa ideia é uma das tantas que passa em seus livros, ao contar as suas histórias. A intenção é narrá-las com “um olhar de dentro para fora”, de alguém que realmente está imerso naquele universo, e não um observador.
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É a partir dessas histórias que busca humanizar a imagem que se tem dos indígenas. Histórias que no povo Maraguá têm um lugar especial. É a partir delas que aprendem a respeitar os demais, a registrar seus sentimentos, falá-los em voz alta. Mais do que isso: “São a nossa maior identidade. As histórias são o que nos diferencia, são as nossas verdades”, diz.
Confira, a seguir, bate-papo com o autor durante sua passagem por São Paulo, onde questionou: “O Dia do Índio não existe”.
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Como tem se dado a luta indígena nos últimos anos?
Roni Wasiry Guará – Há um avanço, sim. Há uma mudança de comportamento, até porque os próprios indígenas começaram a entender que existe esse mundão para se conhecer. Há uma mudança, porque muitos anseiam conhecer isso daqui também. Através de uma mudança de estudo, de formação, de investirmos nessa questão. Começamos a trabalhar isso, de poder ser um escritor, um professor, sem que eu tenha que deixar de ser algo. Hoje há muitos indígenas buscando o contexto da universidade e do estudo. Nós temos autores indígenas no Brasil, professores, enfermeiros, agentes de saúde. Os estudos têm sido uma busca constante dos povos indígenas até como forma de defesa. Hoje, eu, porque estudei, tenho uma formação, sei onde posso me amparar, sei quais são os meus direitos e os meus deveres.
Mas a sociedade não aceita o ser indígena. Coloca que precisamos ser gente, civilizado. E não entendemos dessa forma. Somos civilizados. É claro que vivemos de uma forma diferente do contexto cultural e social, vemos as mesmas coisas de formas diferentes, mas a sociedade não aceita. Tem muito indígena que não aceita a condição de ser indígena. Tem essa relação com esse mundo aqui fora, de que temos de ser iguais para andar juntos. O que tentamos trabalhar é que eu não preciso deixar de ser eu mesmo para andar com um amigo ou uma amiga paulista. E é interessante, porque, quando falo em palestras, muitos me dizem que querem conhecer o meu povo. Quando retorno para lá, conto as histórias, eles dizem que querem conhecer o povo de cá.
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Muitos ativistas da causa indígena usam dessa ferramenta da escrita, das histórias. Como você vê isso?
Roni Wasiry Guará – A escrita é transformadora. E uma das coisas que a escrita hoje nos coloca é que podemos hoje escrever, descrever o nosso contexto indígena da “forma verdadeira”. Não estou querendo dizer que tudo o que foi escrito sobre os povos indígenas é mentira, não é isso. Mas há muita fantasia. Há muita coisa escrita sobre nós que não são reais, porque, ao longo do tempo, as histórias foram escritas por alguém de fora, alguém que vai observar. Nós escrevemos não com um olhar de fora para dentro, mas com um olhar de dentro para fora. Colocamos realmente como é a nossa vida, como são as nossas histórias. Isso foi um choque na sociedade, até as expectativas. Temos evitado ir a uma escola usando um cocar para que as pessoas entendam que somos daquela forma no contexto da nossa sociedade. Já é uma história que contamos e as pessoas começam a entender. A escrita nos coloca uma outra forma de entender os povos indígenas.
No Brasil, não existem índios. Índio foi uma palavra que, ao longo da história, foi colocada. Índio não me define. O que me define é o nome do povo de onde eu sou. E a nossa escrita hoje traz essa informação. Se você for olhar a nossa escrita hoje, você não vai encontrar a palavra índio. Essa escrita de hoje traz essa informação, de que, não, eu sou um indígena de um povo chamado Maraguá e tenho uma reserva lá no Amazonas.
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Algo disso mudou com a Lei 11.645, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura indígena nas escolas brasileiras?
Roni Wasiry Guará – Alguma coisa mudou. Acho que tudo começa pequeno, e aí vai aumentando. A lei veio como um elemento para fortificar um pensamento e estreitar os nossos relacionamentos. As escolas se organizam, há uma abertura maior para chamar certas pessoas para falar dessa questão cultural. Há uma abertura maior entre as sociedades, tanto a da cidade quanto a da floresta. Tem governo que usou muito essa lei para apoiar os povos indígenas. Apesar disso, o Brasil não está em um momento muito esperançoso para os povos indígenas. Há um retrocesso. Parece que nós andamos para a frente e agora estamos dando longos passos para trás. Ainda não sentimos isso nas escolas. Até porque estamos na primeira temporada. Onde mais sentimos isso foi na mídia em geral. Já vi apresentador de jornal dizer que “tem que acabar mesmo com esse negócio de índio”. Quem ele pensa que nós somos? Será que ele não nos pensa como seres? Mas olhamos essa questão das ameaças como forma de mostrar resistência.
O que o Dia do Índio significa para você?
Roni Wasiry Guará – Para mim, o Dia do Índio não existe. É até uma visão minha, você pode encontrar autores indígenas que elogiem esse dia. O Dia do Índio é até agressivo. Para que escolher um dia do ano e, no restante dele, esquecer esses povos? Em determinadas escolas, quando fazemos uma palestra, os professores falam: “Puxa, que bom que o Amazonas está cheio de povos indígenas”. Vamos conversando, questionando: “Mas você já pesquisou os povos indígenas aqui em São Paulo?. Você não precisa ir lá no Amazonas. Você procura aqui que você vai encontrar”. A informação é desconhecida, e aí entra essa questão de fazer cocar no Dia do Índio. Foi o que as pessoas aprenderam nos livros didáticos, ainda trabalhando o indígena parado no tempo, o indígena do encontro [com os portugueses]. E o português, o espanhol daquela época, ele continua usando do mesmo instrumento de navegação? Eles encontraram os indígenas e mudaram. Por que os indígenas têm que ficar congelados no tempo? O Dia do Índio hoje reforça esse estereótipo.
Se você quer comemorar esse dia, faça de forma diferente. Escolha um povo, busque pesquisar sobre ele, de que estado é, qual o tipo de cultura que ele tem ali na sua aldeia para que as crianças possam conhecer a diversidade. Para nós, o Dia do Índio não acrescenta nada de bom. Mas pode-se utilizar isso para uma coisa boa. Já que está aí registrado, convide um indígena para ir a sua escola. Quando você traz a informação correta, as pessoas passam a entender de forma diferente. O dia 19 de abril precisa de um novo contexto, uma nova roupagem. Até porque não dá para trabalhar o 19 de abril como o Dia do Índio. Teria que ser trabalhado como o Dia dos Povos Indígenas, porque nós temos mais de 300 povos registrados no Brasil, com nome próprio, catalogados, falando mais de 200 línguas diferentes. O 19 de abril tinha que ser isso.
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Quais são boas estratégias para trabalhar o tema em sala de aula?
Roni Wasiry Guará – Há muita informação. Tem que se buscar aquela informação que tenha uma boa base. Se eu quero falar sobre determinado povo, tenho que saber quem eles são, ir a fundo naquilo. E ter a clareza que aquele povo não representa todos os povos indígenas do Brasil. Ele é um. Tem de se olhar pela diversidade, quantos povos existem em tantos estados. E, às vezes, ir além dessa questão da própria internet. Se você for procurar cursos que trabalham com indígenas aqui em São Paulo, tem um monte. Busque as informações para ter uma visão diferenciada. Os livros escritos por indígenas seriam um ótimo elemento para se trabalhar. Tem uma fonte em São Paulo bem confiável. É uma livraria chamada Maracá. Ela é nova e está iniciando com uma identidade muito legal. Ela faz apresentação dos livros, trabalha as idas dos autores às escolas.
Para finalizar, poderia nos contar como é a relação do seu povo, o Maraguá, com as histórias?
Roni Wasiry Guará – Costumamos dizer que as histórias são a nossa maior identidade. As histórias são o que nos diferencia, são as nossas verdades. Elas estão presentes no nosso dia a dia. Por exemplo, eu sou da família dos pescadores. Aprendi a pescar com o meu pai, ouvindo as histórias. Ele dizia: “Olha, meu filho, nessa época a gente pesca em tal lugar, porque é lá que os peixes estão. Nessa época, nós não podemos usar tal tipo de isca, temos que usar tal tipo, não pegamos tal tipo de peixe.” A partir das histórias, aprendemos o respeito. Acreditamos que tudo tem que ser falado. Se você está alegre, conte de sua alegria. Se você está triste, conte de sua tristeza. E ali é o momento de você contar. Atuamos como registradores.
Temos uma festa que é a festa de contar as estrelas. A data é sempre nos últimos meses do ano. Preparamos o terreiro, quem pesca vai pescar, quem colhe vai colher. Assim, quando chega o horário, o local está pronto. Os milhos e os peixes vão ser assados, as esteiras são espalhadas no terreiro que foi varrido durante o dia, para que à noite você tenha fartura e companhia no momento em que põe a sua esteira ali para ver o céu e contar as estrelas. Não que você vá saber quantas estrelas tem no céu, mas acreditamos que, quando contamos as estrelas, os dias de nosso povo serão como elas: infinitos.
(texto atualizado em 19/04/2021)