A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie publicou em 2017 Para educar crianças feministas: Um manifesto. O livro, inicialmente escrito para responder à carta de uma amiga de infância, que pedia conselhos sobre como criar uma filha feminista, sofreu poucas alterações, como a própria escritora conta na introdução. Dividido em quinze sugestões, aponta para ideias como ensinar a garota a questionar a linguagem, tida como “repositório de preconceitos”, a não se preocupar em agradar e a “questionar o uso seletivo da biologia como ‘razão’ para normas sociais em nossa cultura”. À época, Chimamanda ainda não tinha filhos e admite: “Percebo como é fácil dar conselhos para os outros criarem seus filhos, sem enfrentar na pele essa realidade tremendamente complexa”.
Pensando em elucidar alguns pontos dessa realidade complexa que é a maternidade, conversamos com quatro mães sobre a difícil tarefa de criar crianças feministas hoje, na prática. As jornalistas Silvia Faro e Fabiane Atallah, a co-deputada da Bancada Ativista Anne Rammi, e a skatista tetracampeã mundial Karen Jonz compartilharam um pouco de suas experiências.
A começar pela premissa do livro e o que levou a escritora a se justificar nas primeiras páginas dele, um fato é dado: as pessoas avalia, julgam ou opinam sobre os papéis das mães o tempo todo. No caso de Chimamanda, especificamente, a escritora havia respondido a uma pergunta, mas nem sempre é o que acontece com muitas mães, que são costumeiramente interpeladas e julgadas em suas ações. Fabiane, mãe de duas meninas (Rayane, 20, e Laura, 12 ) e dois meninos (Felipe, 5, e Breno, 4), por exemplo, relembra um episódio: “Somos cobradas sempre, a todo momento. Uma senhora me deu uma lição de moral em frente a uma loja, uma vez, porque eu ia levar copos com tom de rosa para a escola dos meus meninos. Sei o bem que estou fazendo para os meus filhos. O quão livres e felizes eles serão”.
Ilustração Marcelo Tolentino
Ainda sobre essa cobrança, Anne, mãe de dois meninos (Joaquim, 9, e Tomás, 7) e de uma menina (Iolanda, 3), completa: “Como a esmagadora maioria das mulheres do mundo, eu fui socializada não para a maternidade, mas para a maternidade servil. Esse é o termo que eu uso para definir o comportamento subserviente que se espera das mulheres com filhos [...] Quando alguém cobra, dirige, questiona ou me subestima como mãe, eu sei que essa pessoa está a serviço do patriarcado, minha reação é apenas mudar essa lógica mental. Não me abalo, apenas reconheço que é sempre uma tentativa de silenciar, diminuir e idiotizar as mães”.
Nesse sentido, fica clara a pressão colocada em cima das mães para realizar atividades que deveriam ser papel dois pais. Para contrariar essa lógica e explicar noções a respeito de papéis de gênero, as quatros mães concordam em mostrar exemplos práticos. Silvia, mãe da Lis, de 9 anos, e que desde de 2010 também gerencia um canal sobre maternidade no YouTube (Mãe de Primeira Viagem), comenta: “Procuro passar valores de força, competência, igualdade e justiça. Esses valores só são passados pelas atitudes. Palavras pouco ajudam. Criança aprende pela atitude e não pelo discurso. [...] Talvez o único papel de gênero que ela vê por aqui é que o pai é fisicamente mais forte que a mãe e que, por conta disso, ele realiza as tarefas que exigem mais força. Mas acredito que ela saiba que isso não seja uma regra, pois ela vê que existem meninas que são mais fortes do que meninos!”.
Karen, mãe da Sky, de 3 anos, também autora do canal no YouTube Garagem de Unicórnio, no qual ela divide o dia a dia de sua família, sustenta esse pensamento: “Ela é filha de uma mãe skatista, o que não é convencional, isso já me dá uma certa tranquilidade, pois um dos maiores exemplos está nessa vivência. Ela ama bailarina e princesas e quase sempre pede para usar saia e vestido. Procuramos desconstruir e mostrar que bailarina pode usar qualquer roupa, por exemplo. [...] Minha maior questão é que ela se sinta forte e capaz. Para isso, estimulamos o desenvolvimento e a independência dela, mesmo que dê um pouco mais de trabalho. Acho que quanto mais conquistas com a própria capacidade ela tiver, como colocar a própria meia ou preparar o lanche, mais segura ela vai se sentir”.
Anne e Fabiane, que também são mães de meninos, enfrentam os desafios de educar crianças dos dois sexos. “Quando falamos em criação feminista, logo pensamos em empoderar meninas, mas é importante educar meninos de forma a não perpetuar machismo e misoginia. De nada adianta eu educar minhas filhas para serem feministas e contribuir com dois machistas nesse mundo. Aí que está. Não tem diferenciação. O valor que é passado para um também deve ser ensinado ao outro. Aqui em casa as meninas lavam a louça, arrumam as camas e varrem, e os meninos também. Eles aprendem desde pequenos que não existem coisas de meninos e meninas. As tarefas da casa todos estão aptos a fazer. Aqui em casa não existe novos valores, ensinamos meninos a questionar e rejeitar o papel de privilégio que a eles é dado em nossa cultura”, explica a jornalista.
Incisiva no ponto em que teoria e prática por vezes se distanciam, Anne elabora: “Eu tendo a não querer que meus filhos sejam laboratórios das minhas convicções. Tento manter o grau de liberdade possível (no limite de proteger os meninos da masculinidade tóxica e a menina da subserviência) para uma família como a minha na contemporaneidade. Eles obedecem a vários padrões estereotipados por gênero. Por exemplo, minha menina ama brincar de bonecas, e não será em nome de uma suposta educação feminista que eu a proibiria de curtir a brincadeira de que gosta. O que eu faço é observar e promover contato com várias outras coisas. Então ela tem acesso ao universo de brinquedos e brincadeiras sem gênero, mas pode escolher brincar do que quiser e bem entender. A gente não pode transformar as crianças em nossos objetos de atuação. Elas estão nesse mundo agora, têm toda a incidência do mundo inteiro em suas vidas, nos cabe zelar para que estejam saudáveis e crescendo com a mente aberta”.
Embora Lis, filha de Silvia, atualmente, estude em uma escola Waldorf, onde as tarefas são iguais para todos – “meninos também fazem crochê e meninas também carpem o jardim” –, o contato com o mundo não a isentou de questionar algumas situações em relação aos papéis de gênero no começo da infância: “Aos 3 anos, minha filha me perguntou: ‘Mas, mãe, a Pantera Cor de Rosa é Menino?’. E eu respondi naturalmente: ‘Sim, os meninos também podem usar rosa’. Ela sorriu satisfeita com a resposta e continuou brincando. Não sei onde ela aprendeu esse ‘pré conceito’ das cores de menino ou de menina, pois em casa jamais falamos ou sugerimos tal coisa. Mas os filhos estão em contato com outras pessoas, outros lugares, então é normal e natural que assuntos não tratados em casa venham como questionamentos. O que difere é a forma como você responde a isso”.
“Meninas são ensinadas a ficarem quietas e meninos incentivados a demonstrar agressividade (às vezes até chamados de ‘terríveis’, ‘pestinhas’). Muitas vezes ouço pessoas falando: ‘Ah, menino é mais agitado, né?’ E eu respondo: ‘Não, menina também é agitada', eu era muito agitada e achava inclusive que tinha algo de errado comigo. Muitas vezes não tinha paciência com as atividades propostas para as meninas, queria correr e trepar em árvore. E era chamada de maria-moleque. As pessoas precisam entender que cada ser humano é único e respeitar essas características sem tentar colocar tudo num pacote. Me pego várias vezes observando se ela [Sky] está exteriorizando a raiva dela o suficiente. Incentivo a brincar de gritar, cantar muito alto, brincar de luta e soltar ‘poder’”.
O pensamento anterior, de Karen, dialoga com o que Chimamanda aponta no oitavo tópico do livro, parte em que sugere a sua amiga Ijeawele a ensinar a sua filha Chizalum a não se preocupar em agradar: “Ensine-a a defender o que é seu. Se outra criança pegar o brinquedo dela sem permissão, diga-lhe para pegar de volta, porque seu consentimento é importante. Diga-lhe para falar, para se manifestar, para gritar sempre que se sentir incomodada com alguma coisa”. Talvez, então, seja essa potência a que Anne se refere: “Há muito mais gente no mundo a serviço do patriarcado do que contra ele, exatamente porque o patriarcado irá às ruínas no dia que as mães, enquanto grupo, se reconhecerem potentes”.