As cores mais do que vivas da menina-zumbi

02/05/2019

 

“A motivação que move meu desejo de fazer livros é o contar histórias e, assim, ‘responder’ à insistência que alguns personagens demonstram. Eu poderia dizer que eles pedem, por meio dos esboços no papel, para serem contados e ouvidos.” É o que diz a escritora-ilustradora italiana Barbara Cantini, autora de Mortina – Uma história que vai fazer você morrer... de rir!, obra recém-publicada pela Companhia das Letrinhas no Brasil.

Mortina, a protagonista que dá título à série, é uma garotinha diferente das outras: é uma menina-zumbi. No Palacete Decrépito, casa onde mora com sua tia Fafá Lecida e seu inseparável amigo, o cachorro Tristão, a protagonista sonha em fazer amigos de sua idade para brincar. Embora Mortina seja uma zumbi, seus sentimentos e medos são os mesmos das outras crianças de sua idade: tem que lidar com a auto-aceitação e a dificuldade de fazer novos amigos. “Mortina é, em primeiro lugar, uma criança, o fato de ser uma zumbi é sua peculiaridade, mas, quando penso nela, basicamente vejo uma criança”, diz a artista, que trabalhou em diferentes séries de animação para a RAI, a televisão pública italiana.

O livro traz uma atmosfera sombria e um humor no ponto, uma mistura criada por quem, desde pequena, curte histórias “creepy”. E conhecer melhor a criadora dessa protagonista tão popular na Itália é um jeito de entender melhor a obra. Em seu site, a autora revela sua personalidade: “Gosto de roupas vintage, chocolate, viajar (e voltar para casa), design de interiores, ovos, comédias americanas dos anos 50 e 60, jogos de tabuleiro e quebrar a crosta do crème brulée”. Hoje, está trabalhando no quarto livro da série Mortina, já traduzida para mais de vinte idiomas, ao mesmo tempo em que coleciona papéis decorados no interior da Toscana, onde mora com o marido, as filhas, os quatro gatos e um hamster, animal de estimação que ela brinca ter se transformado em um zumbi.

 

Booktrailer original do primeiro volume de Mortina

 

Inspirações diversas

“Ela nasceu de um esboço no meu sketchbook muitos anos atrás, quando eu ainda frequentava a escola de animação. Ao lado do desenho, anotei o nome Mortina, que lembrava um jogo de palavras. Na época, no desenho que fiz, ela tinha como amigo um morcego gago com óculos escuros”, diz Barbara, lembrando seus primeiros impulsos criativos. Seu processo criativo toma forma a partir de um desenho ou de um esboço – e assim também ocorreu com Mortina.

A brincadeira com as palavras do nome da personagem, no entanto, também impulsionou outra ideia. E essas conexões surgem a partir de uma chuva de ideias da autora, que pesquisa e registra tudo que surge à mente, como ela mesma explica: “Tomo nota de tudo: uma imagem, uma frase, uma palavra, uma fotografia”. Tais ideias ficam um tempo decantando, um tempo necessário para ver se vingam: “Então deixo que se acalmem um pouco para voltar mais tarde e ver se é uma pequena semente para cultivar e desenvolver em texto ou desenho”.

 

 

Depois de pensar sobre a personagem, Barbara desenvolve "cenas mentais" com as ações de suas criações. Esse processo também é fruto de pesquisa: “Vejo os detalhes dos personagens e faço muita pesquisa de imagens próximas ao mundo imaginário que tenho em mente para criar. Procuro [as referências] online e em vários livros no meu estúdio, e salvo tudo (fotos, desenhos, ilustrações, molduras de filmes) em uma pasta de ‘sugestões visuais’. Isso me ajuda a me concentrar melhor no que quero ilustrar. Olho para as imagens também do ponto de vista cromático, para definir a paleta de cores que gostaria de usar no livro”, conta.

Nessa pesquisa, a artista busca ampliar o repertório, com um “grande mix que contenha algo do meu personagem e minha experiência, combinados com diferentes inspirações que vão desde Wandinha Addams, até alguns personagens de Tim Burton, Edward Gorey e, em geral, influências oriundas desse tipo de imaginário, no cartum, no cinema, nos quadrinhos”.

A inspiração para muitos membros da família Mortina também veio da família de Barbara, composta por seus pais, avós maternos e um tio-avô solteiro que, de acordo com a ilustradora, morreu centenário e muito parecido com o tio-avô Funesto do livro. “No personagem da tia há muito da minha avó materna, aparentemente severa e rígida, mas de bom coração. E em Mortina também há muito do meu caráter, mas também um pouco da minha mãe quando criança. Ela também morava em uma casa de campo em uma colina que fica a uns 2 quilômetros da vila, no topo de uma estrada repleta de poeira e pedregulhos na qual costumava caminhar para a escola todos os dias. E morando longe das outras crianças, ela era forçada a brincar sozinha com os animais do pátio e com os personagens imaginários dos muitos livros que lia”, revela a autora.

 


Rascunhos do Tio Funesto

 

Já no personagem do cão, Tristão, convergem várias figuras caninas da história dos filmes animados e dos quadrinhos. De acordo com a artista, Tristão é como um farol, um porto seguro onde a protagoista encontra ajuda e conforto. Ela explica: “Diria que é uma mistura entre um sábio, um mentor e uma figura parental”.

 

 

Para a caracterização visual, ela lançou mão de várias influências – mais ou menos evidentes – advindas do mundo da arte, do cinema, da literatura, da história em quadrinhos: Família Addams, Assassinato por morte (Robert Moore, 1976), Frankenstein Jr. (série animada da Hanna-Barbera), Este mundo é um hospício (Frank Capra, 1955), entre outras criações. A autora destaca nomes de referência mais clara em sua obra, como Tim Burton, Alfred Hitchcock e Edward Gorey, sem deixar de mencionar aqueles menos óbvios, como Toulouse Lautrec.

 


Família Addams, quadrinho de Charles Addams

 

Uma paleta de cores viva para a menina zumbi

A paleta do livro traz essa estética "creepy" do universo da história com a presença de cores como preto, violeta, roxo e outros tons sombrios, que contrastam com as cores mais brilhantes e saturadas, que também representam o componente irônico da história. No primeiro livro, a ilustradora falou dessa escolha: “Eu tinha bem claro que a linha de lápis preto teria sido a principal característica do livro. Inicialmente, também tinha pensado em deixá-lo apenas com um traço preto, talvez com apenas duas ou três cores para certos detalhes. No final, porém, optei pela escolha mais segura de cores, acompanhando os desenhos com uma paleta bastante dessaturada, exceto pelo laranja brilhante, que ‘ilumina’ o livro como as abóboras-lanterna do Halloween”. Depois, nos títulos subsequentes, houve uma escolha de outra cor-guia que caracterizasse a história. Já o violeta, embora menos brilhante do que a cor laranja ou das outras cores-guia, está sempre presente”.

 

 

As escolhas de técnica e composição

“Depois de uma fase manual a lápis para esboços e storyboards, vou direto ao trabalho em digital, utilizando vários tipos de pincéis que simulam lápis de cera, lápis, aquarelas.” Para Barbara, a escolha da técnica digital é ditada pelas múltiplas possibilidades que oferece e pela praticidade de quaisquer correções.

Sobre a composição, ao inserir os quadros pretos ou partes da composição preta, a artista pensa numa dupla função: enquadrar certas cenas e reforçar essa escolha visual mais assustadora, sublinhando o protagonismo da linha de lápis preto do estilo. “Mortina é muito rica em ilustrações completas, tanto na quantidade de detalhes como na cobertura de página. Assim, os quadros negros, por outro lado, também desempenham a função de criar um distanciamento visual em algumas cenas, onde, caso contrário, uma continuidade visual errônea seria criada entre as duas páginas lado a lado que não deveriam estar lá, porque elas devem ser "lidas" separadamente. O quadro preto permite isso”, explica.

 

 

É interessante notar que esse quadro, na última cena, adquire uma função adicional, aproximando-se do personagem da mesma forma com que os desenhos animados fazem nos encerramentos das séries infantis de televisão. “Na minha abordagem de trabalho para literatura infantil, há um pano de fundo que vem do mundo da animação. Não tanto pelo estilo ilustrativo, mas pelo aspecto visual e quase fílmico, com o qual as histórias se desenvolvem na minha cabeça. O mundo da animação me ajudou muito também em dar um certo ritmo às histórias e de certa forma visualizar os "planos" da página ilustrada”.

 

 

A autora também aponta que a escolha dá um aceno ao clássico desvanecimento circular ao preto do mundo do cinema, usado desde os tempos do cinema mudo, mas que hoje ela vê estar em desuso. “Para a Mortina, funcionou bem tanto para fechar a história com o foco sempre sobre ela quanto por ser uma história definida em outra época, para lembrar um tempo distante”, comenta a artista.

 

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