Um quarto das escolas públicas brasileiras não fala sobre o racismo em sala de aula, segundo o Censo Escolar de 2015 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Das 52 mil respostas de diretores de escolas públicas de ensino fundamental e médio, 12 mil disseram não possuir projetos sobre questões raciais em suas unidades. A mesma pesquisa indica que, a cada dez escolas, quatro não abordam a desigualdade social em suas atividades pedagógicas, e cinco não tratam da diversidade religiosa. Em São Paulo, a cada cinco dias, há um caso de injúria racial nas instituições de ensino público e privado de todos os níveis, segundo a Secretaria de Segurança do Estado.
“A escola é hostil e não se constitui como um espaço democrático para as crianças negras se não considera o seu pertencimento racial e a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros”, afirma Waldete Tristão, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) que já atuou como professora, coordenadora pedagógica e diretora em escolas de educação infantil e creches na rede pública paulistana. Atualmente é consultora da Equipe de Educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), onde desenvolve projetos de formação com foco em educação e relações raciais.
Quando ela entrou na escola, aos sete anos, as professoras se referiam às pessoas negras como ela como descendentes de escravizados “generosamente libertos pela Princesa Isabel”. Mais tarde, quando se tornou professora, aprendeu no curso a continuar tratando a história negra com foco na escravidão, do povo emancipado por uma generosa princesa. “Sem dúvida, essas experiências não tratavam a diversidade étnico-racial de forma que eu pudesse construir uma identidade positiva sobre a minha descendência africana e afro-brasileira”, diz a autora de Conhecendo os orixás, uma coleção de 18 títulos infantis, especialmente criada para apresentar as divindades da umbanda e do candomblé e seus costumes às crianças.
Para refletir sobre a escola, o racismo e as africanidades, conversamos com a educadora, que destaca a importância de se discutir e reconhecer a “existência do racismo estrutural e seus efeitos também nos espaços educacionais”. Confira!
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Você teve contato com projetos escolares de diversidade étnico-racial quando criança? Como foi esse período da infância e juventude para você?
Waldete Tristão – Entrei na escola no 1° ano, aos sete anos de idade, em 1970. Lembro que durante vários dias 13 de maio [Dia da Abolição da Escravatura], as professoras se referiam às pessoas negras como descendentes de escravos generosamente libertos pela Princesa Isabel, sem nos informar dos verdadeiros interesses políticos daquele ato nem mesmo nos contando que existiam abolicionistas negros. Em 1981, tornei-me professora das séries iniciais e da pré-escola no curso que me formou para continuar tratando a história dos negros com foco na escravidão e na "generosa" princesa que a aboliu. Sem dúvida, essas experiências não tratavam a diversidade etno-racial de forma que eu pudesse construir uma identidade positiva sobre a minha descendência africana e afro-brasileira.
Até onde a diversidade étnico-racial compõe o programa das escolas? Para você, como seria uma participação ideal do assunto no currículo escolar?
Waldete Tristão – A Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDB) existe para regular a educação brasileira orientando os sistemas educacionais a respeito das modalidades de ensino, da formação de professores e da proposta pedagógica da escola, entre outros temas. Essa mesma LDB foi alterada pela Lei 10.639/03 determinando que as escolas insiram em suas propostas pedagógicas a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros. Entretanto, o que se observa é que a temática das relações etno-raciais ainda não é uma realidade, na grande maioria das escolas, públicas ou privadas, embora haja uma série de iniciativas de muitos professores, com ou sem o apoio da gestão escolar. Para que a temática das relações etno-raciais seja uma realidade nas escolas é fundamental o compromisso com a política de formação de gestores e profissionais da educação, de material didático e paradidático, entre outros, tanto no âmbito público quanto no privado. Tanto as escolas públicas quanto privadas, da região central ou periférica, deveriam garantir a temática das relações etno-raciais em seus projetos pedagógicos. Tratar esta temática não é uma escolha; é, no mínimo, o atendimento de uma exigência legal. Outra questão importante é o fato de garantir que crianças e jovens tenham acesso a outro paradigma que não só o eurocêntrico. É fundamental que todos os profissionais da educação estejam envolvidos e comprometidos para que o tema da diversidade etno-racial esteja presente no cotidiano das escolas.
Como você vê a formação e o preparo do professor para discutir esse assunto em sala de aula? Como o educador pode se preparar e como essa mediação pode ser feita?
Waldete Tristão – A formação inicial dos professores precisa se somar à formação continuada para que o marco legal se fortaleça e integre a cultura escolar em uma perspectiva transformadora e cidadã. É muito importante que os profissionais da educação conheçam os principais pontos da LDB alterada pela Lei 10.639/03, entre outros, alguns aspectos das histórias das lutas de resistência e reivindicações dos povos africanos e afro-brasileiros. Trata-se de um tipo de formação que permita aos profissionais identificar e compreender os limites e as contradições para a efetivação da lei nos espaços escolares. E, por fim, compreender a importância de abordar as perspectivas dessa implantação como ação afirmativa, numa visão que elege a escola como um espaço onde a diversidade deve ser considerada e respeitada para uma aprendizagem mais efetiva.
Como você vê hoje espaço no ambiente das escolas para o amparo das famílias dos alunos não brancos? Elas podem se inserir nessa cultura escolar?
Waldete Tristão – A escola é hostil e não se constitui como um espaço democrático para as crianças negras se não considera o seu pertencimento racial e a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros. A família das crianças pode se inserir na cultura escolar inicialmente a partir de suas próprias histórias.
Por fim, você considera que a inserção de projetos e temas que discutam a diversidade étnico-racial pode ajudar a transformar o racismo estrutural e histórico do país? Como? O que poderíamos esperar dos alunos com uma formação maior em culturas africanas e afro-brasileiras?
Waldete Tristão – O primeiro grande exercício é o reconhecimento da existência do racismo estrutural e de seus efeitos também nos espaços educacionais. A escola não cumpre seu papel social quando nela não estão presentes projetos e temas que pautem a diversidade ético-racial. No entanto, vale destacar a existência de projetos e propostas existentes em diversas escolas do Brasil. Merecem destaque aqueles que podem ser encontrados no site do Centro de Estudos para as Relações de Trabalho (CEERT). Trata-se de um projeto que surge para mapear as práticas escolares voltadas para o tratamento da temática étnico-raciais. Segundo informações presentes nesse site, a primeira edição ocorreu no ano de 2002, com o objetivo de identificar, difundir, reconhecer e apoiar práticas pedagógicas e de gestão escolar, vinculadas à temática étnico-racial, na perspectiva da garantia de uma educação de qualidade para todas e todos e, mais especificamente, de combate ao racismo e de valorização da diversidade étnico-racial.