Lilia Schwarcz: ‘Ninguém está alheio ao racismo’

08/12/2022

Na bagagem intelectual da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, a contínua reflexão sobre o tema branquitude é ao mesmo tempo peso e contrapeso, considerando que se trata de uma questão em movimento, acompanhando o fluxo contínuo da sociedade. Sua dedicação para as questões de raça no Brasil já somam uma vida, em produções que contemplam uma dissertação de mestrado, uma tese de doutorado, inúmeros e premiados livros teóricos. Faltava a ficção? Na vida de um pensador, a criação é mais soma que falta. Então, com a publicação de seu novo Óculos de cor, ilustrado por Suzane Lopes, mais esse universo também foi incluído no debate, o das crianças e sua capacidade de renovar nosso olhar sobre as coisas.

Esse é um tema da minha intimidade, e da minha preocupação, sobretudo. (Lilia Moritz Schwarcz, historiadora)

A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora do livro infantojuvenil Óculos de cor

Nesta entrevista, Lilia repassa décadas de atuação como profissional dedicada ao debate das contradições de raça no Brasil e, ao mesmo tempo, divide com o leitor uma novidade, o estranhamento presente no processo de escrita do primeiro livro em que ela conversa pela primeira vez com as crianças sobre algo que até aqui lhe parecia tão familiar.

Foi a primeira vez que eu passei essa questão de vida para a escrita infantojuvenil, com todas as subjetividades e complexidades desse processo. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

Para a pesquisadora, um dos pontos centrais do livro é trazer reflexões sobre branquitude e racismo estrutural a partir de um lugar de fala, natural e necessário, comum a muitas famílias que ainda não se veem como parte nem do problema nem da solução. “Eu começo o livro falando da urgência do tema. É uma posição confortável no Brasil, tão confortável que as pessoas brancas são desracializadas, como se elas não tivessem uma raça. Quando na verdade é o contrário, elas se dão ao direito de analisar a raça dos outros”, explica Lilia.

Em Óculos de cor, escrito por Lilia M. Schwarcz e ilustrado por Suzane Lopes, um personagem chamado Alvo percebe sua incapacidade de ver as cores.

 

Confira a entrevista completa!

Antes de escrever Óculos de cor, de que forma o tema da branquitude atravessou sua história de vida – como historiadora e como indivíduo? E depois, o que mudou na sua perspectiva?

Lilia Moritz Schwarcz - Esse tema me acompanha desde sempre. Eu fiz escola pública, escola vocacional. No ginásio, me deparei com uma professora muito preconceituosa. E nós, alunos, fizemos um movimento contra isso, o que gerou um debate entre os estudantes e os professores. Até hoje me lembro com muita emoção do que foi aquele diálogo. 

Depois, já na graduação em História, fiz uma pesquisa de iniciação científica sobre o sistema escravocrata em Ilhabela. No mestrado, escrevi também sobre o tema [que originou o livro Retrato em branco e negro, Companhia das Letras, 1987], que tratava do modo como os escravizados apareciam nos jornais paulistanos. Meu doutorado [que deu origem ao livro O espetáculo das raças, Companhia das Letras, 1993] também foi sobre a questão, e gira em torno da maneira como a branquitude construiu a noção do darwinismo racial, o racismo científico, a partir de finais do século XIX. Na minha titularidade, estudei o pintor francês Nicolas-Antoine Taunay [que deu origem aos livros O Sol do Brasil – Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João (Companhia das Letras, 2008) e As barbas do imperador (Companhia das Letras, 1998), também publicado em 2014 em versão HQ], e a questão central dele também era a escravidão. 

A partir de então, publiquei muitos outros livros que perpassam o tema, como a biografia do Lima Barreto [Lima Barreto: triste visionário, Companhia das Letras, 2017, Prêmio APCA de melhor biografia), e o Dicionário da escravidão e liberdade (Companhia das Letras, 2018), com o Flávio dos Santos Gomes, a Enciclopédia negra (Companhia das Letras, 2021), também com Flávio Gomes e o Jaime Lauriano (e que ganhou o prêmio Jabuti 2022, na categoria Ciências Humanas). Esse é um tema da minha intimidade, e da minha preocupação, sobretudo. Também atuei como curadora no MASP (Museu de Arte de São Paulo), na exposição Afroatlânticas

Então, essa é uma trajetória longa minha, mas escrever Óculos de cor foi muito importante, porque foi a primeira vez que eu passei essa questão de vida para a escrita infantojuvenil, com todas as subjetividades e complexidades desse processo. Então, mudei bastante. Quando comecei o livro, o imaginava de uma determinada maneira, mas fui aos poucos aprendendo com o processo.

Quando e como você se percebeu branca e entrou em contato com os privilégios dessa condição?

Eu penso que foi sobretudo quando entrei no colégio vocacional, uma escola em que os estudantes eram selecionados em função da sua condição social. Então, quanto mais rica a pessoa era, menos vagas ela teria. Entrei numa classe de colegas que tinham uma condição social muito diferente da minha. Eu vinha de uma escola privada no primário, e fiz todo meu ginásio conhecendo pessoas muito diferentes, entendendo como minha situação era privilegiada. Essa questão se aprimorou na USP (Universidade de São Paulo), onde minha situação era por demais privilegiada. Venho de uma família judia também. É na confluência desses marcadores de diferenças sociais que eu passei a estudar as questões raciais como a grande contradição da sociedade brasileira.

Falar de branquitude com as crianças é algo que recai sobre a responsabilidade dos adultos. Como engajar as famílias no assunto, considerando que muitas pessoas podem ver a discussão sobre privilégios como algo desconfortável?

Eu começo o livro falando da urgência do tema da branquitude. É uma posição confortável no Brasil, tão confortável que as pessoas brancas são desracializadas, como se elas não tivessem uma raça. Quando na verdade é o contrário, elas se dão ao direito de analisar a raça dos outros. A branquitude cria também um padrão estético confortável, em que as pessoas brancas é que são valorizadas como o bonito, o bem-sucedido, etc. A melhor maneira de falar dessa questão é na infância, para que a gente produza gerações diferentes da minha, mais impactadas pela questão racial e prontas para compreender que a questão racial passa pelo protagonismo das pessoas negras, mas que é também um problema de todos nós.

Há muitos livros – sobretudo recentemente, nessa boa onda de literaturas afrocentradas – sobre ser negro, que exaltam culturas e referências afrobrasileiras. Mas ainda há pouco material infantil e infantojuvenil sobre branquitude. Qual a importância de Óculos de cor nesse sentido, e por que você acha que essa lacuna ainda existe?

Acho que essa lacuna ainda existe porque as pessoas brancas não acham que têm problemas, estudam a escravidão como se fosse um problema só das pessoas negras.

É preciso que nós pensemos nos impactos da escravidão para as pessoas brancas. O que significa viver em um país tão desigual? O que significa defender mérito em um país onde não existe universalidade, em que as pessoas partem de posições sociais, econômicas, culturais e políticas muito distintas? (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

Eu penso que não existem muitos livros sobre branquitude porque as pessoas brancas não se racializam e não veem a questão racial como um problema. A importância do Óculos de cor é principalmente porque ele parte de um lugar de fala, que é da branquitude. Não há acusação nenhuma. Os personagens não são más pessoas, são pessoas comuns, mas que têm essa incapacidade cultural de ver outras cores. A ideia é trazer à tona um tema que resta transparente, uma questão que é um trauma coletivo que só produz silêncios na nossa nacionalidade. E silêncios também para as crianças. Então, se há algum mérito em Óculos de cor, é não deixar o incômodo no silêncio, e sim trazer as questões nebulosas à baila.

Onde você buscou referências para criar o enredo e os personagens? Cada elemento do livro está ali por um propósito, como por exemplo a escolha dos nomes. Pode falar um pouco sobre esse pensamento por trás de cada detalhe da obra?

Na minha infância, eu vi um filme de que eu gosto muito, chamado Um dia um gato [1963, direção de Vojtech Jasny], em que um gato usa óculos capazes de ver as pessoas como elas realmente são. Também gosto muito de um livro do José Saramago, Memorial do Convento, em que uma personagem chamada Blimunda tem que comer o pão para ver as pessoas de outra maneira. Em Óculos de cor, eu inverti a ideia, coloquei os óculos como formas de enxergar. Mas, ao longo da história, o Alvo percebe que ele não precisa dos óculos, que eles são uma espécie de bengala, de “pena do Dumbo”, porque impedem que ele note que o grande trajeto tem que ser feito internamente. 

Cada vez mais, nós, brancos, temos que nos pensar como aliados, mostrando também as várias histórias de protagonismo negro. No livro, a família da Ebony é isso, eles têm orgulho do seu passado, conhecem a sua cultura e os seus heróis. Cada personagem tem uma posição relevante. Mas, ao mesmo tempo, também não dava para criar uma Ebony sem nenhuma contradição, só para responder às perguntas do Alvo. E saiu essa menina plena, que tem muito orgulho da sua família e traz essa política de orgulho da ancestralidade.

Há 30 anos, a reflexão e consciência social sobre racismo estavam em um outro lugar. Considerando esse contexto, como as questões de raça fizeram parte da sua experiência de maternidade e da educação dos filhos? 

A questão do racismo no Brasil tomou uma proporção que não tinha, sobretudo para nós brancos, porque é claro que para as pessoas negras sempre existiu. Eu dou aula na USP sobre as teorias raciais produzidas pelas pessoas brancas, faço uma crítica muito forte sobre como as questões raciais são tratadas no Brasil, a quantidade de oclusões e silêncios em torno dessa questão. Sou uma pessoa que advogo por cotas e ações afirmativas, e sempre trouxe isso para o convívio da minha família, dos meus filhos e das minhas duas netas. 

Se o racismo é estrutural, é porque ele estrutura as nossas vidas, ninguém está alheio ao racismo. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

Por outro lado, o que nós podemos fazer? É trazer esse tema para casa como um exercício de cidadania, cada um do seu lugar. Porque a cidadania é isso: uma fresta da democracia em que cada um participa.

Em relação à escola e à educação, como você vê a branquitude nos ambientes de ensino e aprendizado no Brasil? Você observa que as crianças brasileiras estão tendo contato com essa discussão nas escolas?

Temos uma historiografia e uma ciência ainda profundamente marcadas por cânones europeus, coloniais e masculinos. A escola e o ensino vêm passando por modificações que são muito recentes no Brasil, mas, se compararmos à entrada dessa discussão que eu fazia no meu tempo ou mesmo no período escolar dos meus filhos, mudou muito. 

Mudou o suficiente? Ainda não. Eu sempre digo que educação é mais. Então, não acredito que devemos tirar o ensino da História dos Estados Unidos ou da Europa, até porque fomos colonizados por portugueses, mas temos que incluir as várias Áfricas que compuseram nosso país. Hoje, nós sabemos que nos tumbeiros (o termo vem de “tumba”, que são os navios negreiros) vieram mais que pessoas, vieram religiões, filosofias, cosmologias, técnicas, formas culinárias, musicais e todo tipo de concepções e ensinamentos, e é disso que precisamos falar com as crianças. Tudo isso para construir uma educação para a diversidade.

O cuidado com a criança, como previsto pela Constituição e pelo ECA, é uma responsabilidade compartilhada por Estado, família e sociedade. Como garantir que a reflexão crítica sobre branquitude esteja presente de forma transversal na vida social?

Penso que essa questão é muito importante, porque Óculos de cor pensa justamente nessas diretrizes dadas pela Constituição. Por isso é que este é um livro também para as crianças e os adultos. O glossário no final da obra funciona para os pais conversarem com os filhos sobre História não como algo perdido no passado, mas sim como uma coisa que se faz no presente, e na maneira como todos nós fazemos novas perguntas à própria História. 

O livro tem essa imensa preocupação de fazer com que a reflexão crítica em relação à branquitude entre de forma transversal na vida das pessoas, essa é uma obrigação de todas, de todos e de todes nós, trazer esse debate para dentro de casa, como uma forma intestinal de discussão, e não como uma questão externa. 

Branquitude é um tema que nos demanda e nos impele à diferença, à alteridade e à mudança. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

O caminho de um livro depois de alcançar o leitor é sempre imprevisto, mas, falando em desejos, como você gostaria de Óculos de cor fosse lido e recebido pelas crianças?

Também entendo esse caminho do leitor como algo imprevisto, mas desejo que ele seja lido como uma utopia afetiva. E eu gostaria que as crianças se amarrassem no Alvo, na Ebony e nos outros personagens do livro, e o lessem como uma aventura. Desejo que as crianças possam se sentir como o Alvo se sente, mas que também as crianças negras de escolas privadas ou públicas possam se ver na Ebony, quando ela se sente preconceituada. Gostaria que as crianças adotassem o Alvo e a Ebony, cada uma da sua maneira.

A questão racial é complexa e difícil, mas temos que ter urgência nas coisas que são fundamentais. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

Como você definiria em poucas palavras o que é branquitude, se estivesse agora diante de uma criança?

Eu coloquei uma bibliografia no final de Óculos de cor para que as pessoas possam acompanhar os livros que me formaram nessa área. Um deles que eu destaco é o livro da Cida Bento, O pacto da branquitude (Companhia das Letras, 2022). Eu mesma escrevi um livro que vale a pena, O espetáculo das raças, que fala como se deu o surgimento das teorias do racismo científico no Brasil. Acho o livro da Djamila Ribeiro fundamental (Pequeno manual antirracista, Companhia das Letras, 2019), porque ela explica conceitos profundos com grande naturalidade. O livro do Silvio Almeida (Racismo estrutural, Jandaíra, 2019) também vale muito a leitura. E gosto muito do Amoras (Companhia das Letrinhas, 2018), do Emicida, vejo como um jeito bonito de entrar nas questões de raça com as crianças, me emociona muito. E também do Angola Janga (Veneta, 2017), do Marcelo D’Salete. A Bianca Santana tem um livro comovente chamado Quando me descobri negra (Sesi-SP, 2015). Há uma autora brasileira que também indico, a Lia Vainer Schucman, que chama a atenção para a branquitude como um lugar de privilégio.

Para as crianças, eu diria que branquitude é uma forma de não enxergar. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

Eu explicaria para a criança que estamos muito enganados quando achamos que conseguimos ver tudo, porque vivemos em lugares muito fechados, e por isso não conseguimos enxergar os “problemas dos outros”, que na verdade não são outros, porque vivemos no mesmo país. E eu diria também que a branquitude é um lugar muito confortável, porque somos nós, brancos, que fazemos as regras. Um conselho importante para crescer na vida é que a gente saia do nosso lugar de conforto. 

O desconforto pode ser ruim, mas pode também produzir muitas novas realidades, compreensões e experiências. (Lilia M. Schwarcz, historiadora)

 

(Texto de Renata Penzani)

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