A ética da responsabilidade na escrita para crianças

29/07/2019

 

Por Cláudia Maria de Vasconcellos

 

É preciso toda uma aldeia

para educar uma criança.

(provérbio africano)

 

Escrever para crianças e jovens é uma tarefa desafiadora, talvez mais complicada e exigente do que a escrita para o público adulto. Crianças e jovens estão em processo de formação. Há, portanto, um cuidado extra implicado na escrita para esse público. Penso, por exemplo, no cuidado de não transmitirmos preconceitos de épocas, de conseguirmos apresentar-lhes um mundo humanamente habitável (mas sem falseamento) e os meios de lidar criativamente com sua complexidade.

Nesse caso, um niilista não deveria se aventurar por essas sendas, pois é preciso abrir para as novas gerações espaços de acolhimento e de sentido. 

Muitas vezes, cumpre-se a tarefa – a escrita para crianças – intuitivamente, e, de fato, intuitivamente foi que comecei a escrever para os mais novos há exatos 25 anos. Desde o começo, no entanto, intrigava-me discernir sobre os dispositivos que norteavam o desenvolvimento dos enredos e, por que não?, a escolha de uma mensagem. Foi preciso muitos anos de carreira, um mestrado, um doutorado e dois pós-doutorados nas áreas de ética, política e literatura, para eu começar a decifrar a questão. 

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

O que irei expor a seguir, é apenas um começo de decifração que se abre no momento ao diálogo com meus pares – colegas neste universo da infância e juventude -, para que, por meio desta relação, possamos avançar um pouco mais a investigação.

O que me pareceu, desde o começo, ponto pacífico, foi o fato de que apesar dos discursos pedagógicos ou psicológico-psicanalíticos ou mesmo sociológicos serem de grande interesse para quem estuda a figura da criança, era no âmbito da  Filosofia que eu poderia encontrar a visada mais abrangente sobre o assunto, o modo mais fundamental e prévio de abordá-lo.

Os filósofos medievais afirmavam poder ver mais longe do que os antigos, não por serem melhores do que aqueles, mas porque eram anões sentados sobre os ombros de gigantes (Platão e Aristóteles). Meu gigante é a filósofa Hannah Arendt, e se meu panorama não se estende conceitualmente para além do que ela divisou, alcança, no entanto, uma época que ela não experienciou, ainda que a tenha pressentido muito bem. 

Hannah Arendt dizia-se uma fenomenóloga, porém não ao modo de Hegel ou de Husserl. Ela o era num sentido mais literal,  ao valer-se, por exemplo, da filologia para rastrear conceitos (políticos) até a sua origem e entender seus desdobramentos históricos. Mas o era também à medida que deixava aflorar o fenômeno investigado, recebendo-o sem antepor-lhe a malha rígida de uma escola filosófica. É desse modo que depara com o fato incontestável de que seres humanos nascem e deriva dele uma série de conceitos políticos e éticos bastante potentes no cerne do qual está o conceito de Natalidade. 

O conceito de Natalidade e seus derivados podem nos orientar na investigação presente, qual seja, iniciar um diálogo que estabeleça um ponto de partida estável e factual, um ponto de partida que sustente de modo inegável e verossímil a criação de um enredo pertinente ao jovem e a criança, um enredo e seus desdobramentos.

Diferentemente do seu conterrâneo e mestre, Martin Heidegger, que alicerçou seu pensamento sobre a realidade da morte ou finitude do homem, Hannah Arendt pensa-nos a partir do fato do nascimento. 

Para Heidegger, ao sermos lançados na existência herdamos um mundo histórico e socialmente configurado, alicerçado por preconceitos e opiniões comuns. Ser autêntico é poder afastar-se desse mundo herdado, assumindo aquilo que nos é mais próprio, ou seja, nossa possibilidade fundamental e irredutível, a morte. 

Muito diferente é a visão arendtiana que enfatiza as potencialidades do nascimento como determinante do que é propriamente humano. Visão em que serhumano pressupõe o estar no mundo; em que se revela uma abertura para o outro; na qual o cuidado se manifesta como responsabilidade; e o senso comum, como baliza para o convívio e para as ações.

Pode-se afirmar que, para Arendt, o começo estrutura o ser humano ontologicamente. Não apenas temos a capacidade de começar, mas somos este começar. Esta dupla qualidade direciona o fato do nascimento para o mundo, é "a garantia de sua durabilidade e futuro"[1]. O mundo, pode-se dizer, confere sentido à natalidade. Por isso o cuidado com a criança implica conjuntamente o cuidado pelo mundo. 

Eis a dupla responsabilidade exigida pelo evento natal, que convoca, por um lado, a cuidarmos das crianças, garantindo o florescimento de sua singularidade, protegendo-as das forças niveladoras e retrógradas do mundo; e por outro lado, a cuidarmos para que o mundo não seja destruído "pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração"[2]. O mundo deve ser salvaguardado da ruína a que estaria naturalmente destinado, por meio do acolhimento do elemento revolucionário dos recém-chegados; mas o mundo deve também ser prevenido de que o novo não evolua como destruição, mas sim como renovação. Para tanto, as crianças precisam ser acolhidas e não devem ser abandonadas "a seus próprios recursos"[3]: "é preciso que se garanta a elas a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista"[4], e renovar o mundo comum.

Note-se que não só os pedagogos são provocados por essa responsabilidade dupla. Segundo Arendt, a necessária relação "entre adultos e crianças em geral"[5]emana do simples fato da natalidade. A educação nesse registro mais largo fica a cargo de todos os que amam o mundo e as crianças.

Tomar essas ideias como ponto de partida para uma discussão séria a respeito da criação artística para crianças e jovens, é fazer-se responsável por um tema inadiável. A arte voltada para crianças é parte de sua formação, incentivo a sua liberdade, elo necessário de sua conexão com o mundo comum, e garantia de seu e de nosso futuro. 

[O tema aqui abordado pela autora será aprofundado no curso A ética na escrita para crianças e jovens – cuidado e renovação, ministrado no Lugar de Ler, de 8 de agosto e a 5 de setembro, das 19h às 21h, sempre às quintas. Valor: R$ 300. Para se inscrever, clique aqui.]

***

Cláudia Maria de Vasconcellos é mestre em Filosofia e doutora em Letras pela USP. Escritora, dramaturga e ensaísta, atuando desde 1994 na literatura infantil e adulta. Atestam o reconhecimento por sua obra os prêmios acumulados nestes anos, como Prêmio Biblioteca Nacional 2017 por Samuel Beckett e seus duplos (Iluminuras);Prêmio Brasília de Literatura 2014 por A fome do Lobo (Iluminuras); Prêmio Femsa de melhor autorteatral 2007 e 2005 por O tesouro de Balacobaco Assembleia dos bichos, entre outros. Sua obra está publicada por editoras como Iluminuras, Companhia das Letrinhas, Rocco, Global, SM, Nova Alexandria, Terracota, Ateliê Editorial e Masterbooks.

 

[1]Bowen-Moore, Patricia; Hannah Arendt's Philosophy of Natality, Columbia: Macmillan, 2017, p. 2.

[2]"A Crise na Educação" in Entre o Passado e o Futuro; São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 235.

[3]Idem, Ibidem, p. 247.

[4]Idem.

[5]Idem.

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