Paulo Freire (1921-1997) foi alfabetizado pelos pais em casa. Em uma relação de aprender a ler o mundo e as palavras ao mesmo tempo, o nome dos pássaros e das árvores do quintal ditavam o conteúdo das aulas. A mãe, sentada em uma cadeira de vime, e o pai, deitado na rede, entregavam aquilo que de melhor pode ser oferecido a uma criança que está aprendendo: o tempo. Na infância, não se mede tempo em chronos, a medida cronológica dos dias e das horas, de modo consecutivo, sucessivo e irreversível. Na infância, não impera o tempo do relógio, mas kairós, só existe presente. E naquele momento de aprendizado, Paulo Freire vivia intensamente isso.
Quem nos conta essa história é o filósofo argentino Walter Kohan, autor do recém-lançado Paulo Freire mais do que nunca: Uma biografia filosófica (Vestígio). Em roda de conversa sobre educação em São Paulo, no Sesc Ipiranga, o pensador traça as diferenças entre essa experiência de tempo da infância do educador pernambucano e a vivência da sala de aula, sem tempo de experimentação, a que muitas crianças brasileiras estão habituadas.
Ilustração por Marcelo Tolentino
Na ânsia de cumprir com datas de um cronograma, muitas vezes, a escola não proporciona um ambiente convidativo à infância e, assim, ao aprendizado. Meninas e meninos são submetidos a métodos avaliativos ineficazes que acabam por criar uma cultura de não aprendizado, na qual os estudantes apenas escrevem aquilo que o professor gostaria de ler em uma prova. Não se incentiva a pergunta, mas a reprodução de pensamento.
Kohan identifica alguns pontos de encontro entre a infância e a filosofia. Considerando a pergunta como a infância do pensamento, tanto a infância quanto a filosofia têm o questionamento como substrato. Ambas também soam como estrangeirismos, a infância, aos ouvidos pouco treinados, é um amontado de palavras sem sentido, não há fala, e a filosofia se comunica pela língua do saber, também pouco compreendida. "A filosofia é muito infantil e a infância é filosófica", coloca o escritor que em suas pesquisas para o livro revisitou a relação do patrono da educação com a infância.
Apesar de focar sua pedagogia em jovens e adultos, um público que já havia ultrapassado a infância cronológica, o educador pernambucano trata da infância como a dimensão principal de um educador ou educadora. Da mesma forma que o estudante, em um ato de gentileza consigo mesmo, deveria manter a infância viva para fomentar a curiosidade e a pergunta, o professor também deveria ser infantil. Para entender e respeitar o tempo do aluno e se deslocar para essa temporalidade kairós, que não tem passado ou futuro, mas apenas "o momento certo", o agora.
Paulo Freire, o menor, junto com os irmãos na década de 1920; foto retirada do Livro Fotobiográfico de Paulo Freire, desenvolvido pelo Projeto Memória, da Fundação BB
Professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Kohan diz concordar com a máxima de que não existem perguntas certas ou erradas. Para ele, há as mais elaboradas, as mais simples, as mais filosóficas, mas nenhuma errada. Quando provocado sobre "o que difere as pessoas que questionam se a Terra é plana de outros tipos de questionadores", então, ele se volta para a motivação de tal questionamento. “Qual a intenção dele?” Retomando a própria etimologia da palavra filosofia (philos = “que ama” + sophia = “sabedoria”), acredita que o que torna uma pergunta filosófica é a relação propriamente de afeto que, a partir dela, se estabelece com o saber.
Nesse cruzamento infância-filosofia, a pergunta aparece como conectivo. Para Paulo Freire, que da infância em Jaboatão se autodefiniu "menino conjunção" (por ficar no meio de duas classes sociais diferentes), a pergunta, um dos pensamentos mais infantis de seus estudos, aparece em um de seus escritos dialogados, Por uma pedagogia da pergunta (1985). Na busca por "preservar o menino que foi", já mais envelhecido, lançou um questionamento que não havia pensado mais jovem. Contrariando a infância cronológica, e virando mais menino à medida que o tempo passava. Não à toa, em 1990, recebeu o título de Bambino permanente, pela Biblioteca Comunale di Ponsacco, em Pisa, Itália.
Num diálogo que trava com o pensador chileno Antonio Faundez, o mestre pernambucano batiza como “menina” a revolução nicaraguense que pôs fim a uma ditadura de mais de 40 anos no país. É uma “revolução menina” porque, como desenvolve Kohan, "não apaga sua curiosidade, sua inquietação, seu gosto de perguntar, seu querer sonhar, seu desejo de crescer, criar, transformar". Assim, a revolução mais revolucionária seria a mais menina das revoluções. Por extensão, na perspectiva do educar, a educação mais revolucionária "é uma educação menina – alegre, curiosa, perguntadora". Parece exagero, mas como o próprio escritor argentino coloca: "A infância é, para Paulo Freire, uma força reinventora de mundo”.