Por Renata Penzani
O escritor e ensaísta francês Daniel Pennac, no livro “Como um romance”, dizia que “existem trinta e seis mil razões para abandonar um livro antes do fim”. Difícil não abrir um sorriso de canto de boca ao ler algo assim. É fácil se identificar com esse gesto quase transgressor de fechar um livro sem saber como ele vai continuar - veja só, o poder quase luxuoso de negar um livro! Muito menos preocupado com qualquer tipo de precisão estatística do que em brincar com as relações de diálogo ou não diálogo que se estabelecem entre o livro e o leitor, Pennac provoca a pensar. Por que damos alguns livros como terminados nas primeiras páginas, e outros, ao contrário, precisamos percorrer diversas vezes para considerarmos lidos?
(Ilustração: Bicho Coletivo)
Mas por que a conversa entre os livros e seus leitores às vezes demora para acontecer? E aqui o pronome “seu” não aparece por acaso. Há um quê de afeto quando nos referimos a um livro como coisa nossa - alguns mais, outros menos. É como se atestássemos que ele fala a nossa língua, comunga dos nossos medos, partilha dúvidas comuns e, se não resolve todas as nossas interrogações mais profundas, ao menos coloca ao redor delas dois braços quentes, em um abraço que sussurra: “Tá tudo bem”.
Afinal de contas, o que isso tem a ver com as crianças?
Diante dessas perguntas sem resposta, é um desafio pensar onde cabe hoje o tal direito de reler. Observar as crianças em sua sede de repetição é um jeito de começar. Mal o livro (ou o filme, o desenho, a música, a brincadeira) termina e elas já pedem: “De novo! De novo!”. As crianças são aquelas que sempre querem mais, não só porque elas podem, mas porque estão em pleno processo de assimilação e familiaridade com as coisas. O caminho do aprendizado é polvilhado de repetições, e é bem-vindo que seja assim. Mas quando deixa de ser permitido reivindicar por essa reprodução do prazer vivido? Espécie de “mímica da fruição”, com a qual as crianças ainda estão muito mais familiarizadas do que nós, adultos.
Então, se há tantas e inumeráveis motivações para não ler nem sequer uma vez, qual seriam, por outro lado, as razões para não só ler, mas reler? É disso que quero falar aqui: o direito de reler em um tempo que parece cada vez mais valorizar somente as experiências inéditas, exclusivas e hiperestimulantes, principalmente as mais rápidas.
Por que dar-se a esse luxo da repetição, que para todos os efeitos usa o nosso tempo duas vezes com a mesma coisa? Por que fazer isso, enquanto a lei invisível que rege a sociedade parece defender essa espécie de “racionamento de tempo” que acontece quando encurtamos distâncias, facilitamos tarefas e aceleramos os processos?
Tempos de aceleração e "otimização"
Há tempos que já se fala em aceleração de filmes e séries para um melhor aproveitamento do tempo. Por exemplo: por demanda dos clientes, em outubro de 2019, a Netflix anunciou que está testando uma ferramenta que permitirá ao usuário alterar a velocidade de reprodução de vídeos - 1,25 ou 1,5 vezes mais rápido. Um jeito de a plataforma institucionalizar uma prática que já é comum no YouTube.
Algumas plataformas de podcasts também oferecem a opção de consumir vídeos com até três vezes mais velocidade. Nos navegadores mais usados, o Chrome e o Firefox, também existe a alternativa de acelerar os vídeos online. A tendência de maratonar mais em menos tempo é comum à sociedade da eficiência. Pensar em como ela alcança o universo dos livros, é refletir sobre as referências de consumo de conteúdo que as crianças recebem ao verem os adultos optando pela quantidade.
“Relemos pelo prazer do repetição, pela alegria dos reencontros” (Daniel Pennac)
Quem defende essa alternativa alega que assim fica mais fácil maratonar conteúdos sem precisar despender tanto tempo. Eu me pergunto: o que essas pessoas fazem com o tempo que sobra dessa conta? Varrem a sala, organizam os potes da cozinha, consomem mais?
Há muitas veredas nessa possibilidade de maleabilidade do tempo: como em quase toda ferramenta tecnológica, o resultado pode depender mais do humano por trás dela do que da técnica oferecida. Até porque a mesma tecnologia também permite diminuir a velocidade. Uma cena preferida pode se dilatar não só na memória de quem a assistir, mas também na tela, e assim ganhar novos contornos, enriquecendo a experiência com novas percepções, pontos de vista, emoções.
Leitura rápida como competição
Na seara dos livros, essa tendência pela aceleração também está presente, afinal, seria ingenuidade achar que o tempo do livro pode ficar apartado do tempo social/ político/ econômico. Ter tempo é um direito de poucos, daí a urgência de lutarmos por ele todos os dias. Desafios como “1 um livro por semana” e o impressionante “1 livro por dia” são comuns em fanpages e perfis de resenhas literárias. Há diversas webcelebridades do livro que utilizam a internet como pódio em potencial, onde chega melhor quem chega mais rápido. É a lógica do desempenho aplicada à leitura, neste caso, usando como ponte as estratégias de marketing digital.
“A leitura superficial é como caminhar por uma paisagem de olhos vendados” (Herman Hesse)
Essa cobrança pela quantidade aparece nas centenas de posts que surgem todos os dias em páginas de Instagram, Facebook e nos inumeráveis blogs dedicados à divulgação de livros. Nas fotos, é comum ver pilhas de livros aguardando leitores eficientes para maratoná-los a tempo de ganhar o próximo like. Mas a pergunta que fica é: quem leu mais leu melhor?
Como humanizar o tempo
Há muitas formas de começar a falar sobre ritmo de vida nos tempos de hoje. Muitos filósofos, antropólogos e estudiosos já se debruçaram sobre esse maquinário algo misterioso que dita o tempo das nossas relações com as coisas, as pessoas e o mundo em si, incluindo a nossa própria, refletida no espelho todas manhãs com um lembrete inevitável: estamos passando.
Dentre todas as inumeráveis definições que existem sobre o tempo, eis uma das que eu mais gosto, a definição de Antonio Candido quando ele sugere que o tempo é o próprio “tecido da nossa vida, é este minuto que está passando”. Diz ele: “O tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo”. Então, como usar o tempo para nos humanizarmos, no lugar de nos colocamos como reféns de uma tendência por abreviações?
E como humanizar também o tempo de experiência da literatura, essa que nos coloca em contato direto com a nossa consciência? Dar o tempo de uma leitura nos arrebatar antes de passar para a próxima pode ser um desses exercícios. O mesmo vale para a releitura, uma escolha consciente de ganhar intimidade e aproximação com aquela história e tudo o que ela tem para nos dizer.
Em “Como um romance”, em que Pennac enumera dez “direitos do leitor” criados por ele, consta uma saborosa definição da releitura: “Relemos sobretudo gratuitamente, pelo prazer da repetição, pela alegria dos reencontros, para pôr à prova a intimidade”.
O desafio de ler devagar
Para os pais, educadores, mediadores de leitura e todos os que acompanham as crianças em seus processos formativos, fica o desafio de cuidar do tempo de fruição de leitura, o que significa muitas vezes ter que lutar por um direito negado: o de ler devagar, ler absorvendo, ler identificando e entendendo, e, principalmente, ler de novo, de novo e de novo - como pedem as crianças.
“Estou lendo para chegar logo à última página, ou para chegar em mim mesmo?” (María Teresa Andruetto)
María Teresa Andruetto, no livro “Leitura: outra revolução”, defende a lentidão como um direito e também uma lupa de aumento não só da história que se lê, mas principalmente de quem lê. Resgatando o pensamento do filósofo colombiano Estanislao Zuleta, Andruetto pontua que ler bem é sinônimo de ler devagar. “Embora ler seja transitar de um livro para outro ou encontrar os próprios caminhos em meio a um bosque, não se trata de nos treinarmos em sistemas velozes de leitura, e sim numa apropriação do que lemos.” Em uma provocação sadia, ela nos lembra de levantar a cabeça do livro e perguntar: “Estou lendo para chegar logo à última página, ou para chegar em mim mesmo?” E é aí que Andruetto traz uma reflexão poderosa do escritor Herman Hesse, em “Escritos sobre literatura”: “A leitura superficial, distraída, é como caminhar por uma paisagem de olhos vendados”.
A escritora Anaïs Nin dizia que nós escrevemos para sentir o gosto da vida duas vezes. Será que lemos pelo mesmo motivo? Como se fosse um brigadeiro, um pedaço de pizza ou uma torta de maçã, saboreamos cada fatia do que colocamos nessa boca metafórica dos nossos sentidos cognitivos? Lemos e mastigamos vinte e duas vezes? Lemos e deglutimos - que é mais do que engolir? Lemos e nos nutrimos? Lemos e nos saciamos, gulosos do próximo banquete? Como na fábula da lebre e da tartaruga, em que uma pode chegar mais rápido e outra pode chegar melhor, qual das duas nos permitimos ser?
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Renata Penzani é jornalista, pesquisadora do livro para a infância e autora do blog Garimpo Miúdo, espaço em que compartilha achados da literatura infantil e juvenil.
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