Por Januária Cristina Alves
Mal a invasão do Capitólio havia começado na última quarta-feira quando começaram a pipocar, nos meus grupos de WhatsApp, a pergunta que não queria calar: “Alguém confirma se é fato ou fake? Como assim, invasão ao templo da democracia americana?”.
E dá-lhe fact-checking, alguém confere a informação nas principais agências checadoras e confirma tudo, para o espanto de todos. Até que, depois de uma saraivada de mensagens, um outro escreveu: “Cansei. Que mundo é esse onde já não sabemos mais o que é verdade ou mentira? Que mundo é esse em que notícia de jornal parece ficção?”.
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O mundo da pós-verdade, disse eu. O mundo em que vivemos está emoldurado, mediado, obnubilado. Não à toa um dos livros do ano em 2020 foi Ensaio sobre a cegueira, do genial escritor português José Saramago. Tal como cegos, tateamos, nos labirintos da internet, em busca da verdade, que já nem sabemos mais se existe.
“A ‘pós-verdade’ como já diz o nome, nada tem a ver com a simples mentira. Na mentira ainda há uma preocupação com a verdade. A revelação da verdade desmonta a mentira. Na ‘pós-verdade’, verdade e contradição estão imobilizadas por um bombardeio de versões contraditórias e informações desencontradas. A verdade já não tem nenhum valor ou poder, está perdida entre tantos discursos improváveis que, ao contrário dela, dispensam os fatos”, diz o romancista Bernardo Carvalho, em um de seus artigos para o jornal Folha de S. Paulo.
Pareceu uma síntese muito pessimista ou amarga da questão? Creio que não, pois são justamente os fatos que nos mostram que “Não estamos vivendo uma crise sobre o que é verdade, estamos vivendo uma crise sobre como sabemos se algo é verdade”, como afirma o jornalista e escritor especializado em tecnologia, o americano Cory Doctorow.
O cenário que se apresenta para nós agora pode não ser o mais desanimador já visto pela raça humana, mas, sem dúvida, ele é muito desafiador, pois coloca em xeque nossas crenças e valores, os pilares que sustentaram a nossa história nesse planeta, como a ciência, a família, a imprensa e a religião.
Polarização: realistas x fantasistas
É como diz o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Ronaldo Lemos: “Dentre os efeitos da mudança brutal das mídias em que estamos vivendo, está a dissolução progressiva de conceitos que tínhamos como sólidos, como verdade e história. Dá até pra dizer que a polarização que realmente importa no mundo de hoje não é a da direita versus esquerda, mas sim aquelas entre realistas versus fantasistas. (...) Sem história e nem verdade, a realidade pode ser reconfigurada a todo momento”.
Isto posto, não é à toa que vemos a preocupação de pais e educadores que atuam na formação de crianças e jovens. Será que essa geração que está se (de)formando sob essa avalanche de mentiras saberá diferenciar mentiras de verdades? E mais ainda, será que estarão dispostos a buscar e reconhecer as evidências?
“Os adolescentes de hoje estão crescendo com as ‘fake news’. Eles não terão dificuldade em duvidar do que é mentira. Sua maior dificuldade será, justamente acreditar no que é verdadeiro. (...) Na dúvida, veremos uma geração que duvida de tudo. Inclusive do que é verdadeiro. O que ainda é mais perigoso do que acreditar no que é falso”, afirma a jornalista Alessandra Orofino.
Sabemos que um pouco de ceticismo faz bem ao espírito. Mas há que se ter cuidado para que ele não se transforme em cinismo. Sabemos que a boa democracia é aquela construída baseada nos céticos que buscam comprovar as verdades, adotando um comportamento de cientista e não de negacionista.
“... o dano social de acreditar falsamente que alguém é um mentiroso ou de exigir que todos provem tudo o que falam tende a ser menor do que o de acreditar eventualmente numa falsidade. Muito ceticismo não é bom para a vida social”, afirma o articulista da Folha de S. Paulo Hélio Schwartsman. Sendo assim, o que fazer para educar os nossos jovens para que saibam lidar com os desafios da pós-verdade?
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Para defender a verdade
Se há uma crise generalizada de confiança, aponta-se um caminho quando perguntamos em quem as pessoas confiam nos dias de hoje. Se a realidade pode ser “remixada”, ajustada e enquadrada sob o prisma de quem a edita, se as opiniões, as crenças e os valores estão tomando o lugar da ciência, cabe perguntar o que fazer para reconstruir essa credibilidade.
As pessoas vivem em suas “bolhas” e erguem sobre elas suas convicções, sentindo-se ameaçadas por todos os que estão de fora dela. O diferente é fonte de medo e, portanto, o discurso desse outro não é sequer levado em conta. “Temos de pensar em como desenhar instituições e comunicação para proteger as pessoas, fazê-las perceber como os autoritários manipulam as emoções, para que possam reconhecer quando elas estiverem sendo alvos”, adverte a cientista política e professora da Universidade de Dublin Jane Suiter.
E então voltamos agora a um dos grandes objetivos da educação: validar a experiência e reconhecer os valores de cada um e de todos. Fortalecer as crenças no diálogo, na inclusão das minorias, na aceitação dos desiguais. Pesquisas mostram que nada é mais crível do que a posição daqueles a quem respeitamos, com quem nos identificamos e temos empatia. Essa relação é mais forte do que cifras, gráficos ou evidências científicas. Favorecer o contato com as instituições que promovem o bem comum, que disseminam o conhecimento e o respeito pela diversidade pode ser um excelente ponto de partida.
Como afiança o historiador da Universidade Yale Timothy Snyder, em seu recente artigo para a revista dominical do New York Times: “Quando desistimos da verdade, damos poder àqueles com dinheiro e carisma que criam um espetáculo em seu lugar. Se não concordamos a respeito dos fatos mais básicos, cidadãos não formam uma sociedade civil que permite sua defesa. Se perdemos as instituições que produzem fatos pertinentes a nós, então nos emaranhamos em abstrações atraentes e ficções. A verdade se defende mal quando há pouco dela no entorno. (...) As mídias sociais não substituem (o jornalismo local): elas superestimulam os hábitos mentais pelos quais buscamos estímulo emocional e conforto, ou seja, perdemos a distinção entre o que sentimos ser a verdade e o que de fato é a verdade.”
Em síntese: para voltarmos a enxergar e a distinguir verdades de mentiras, precisamos treinar os olhos e afiar o pensamento. Se começarmos agora, a próxima geração será a da “pós-mentira”. E então talvez tenhamos algo de novo sob sol, ou melhor, sob as telas.
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Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, vencedora do Prêmio Vladimir Herzog e Direitos Humanos (1990) e coautora do livro Como não ser engando pelas Fake News (Editora Moderna).
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