Como é ser professora de educação infantil na pandemia?

24/05/2021

Por Lilith Neiman

Trabalho na rede pública de São Paulo, em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) no bairro da Pompeia. É a partir desse contexto que compartilho algumas palavras sobre o que tem sido ser professora na pandemia que fechou as escolas para encontros presenciais.

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Nesses dias, um ano depois do começo de tudo isso, conhecei pela telinha do celular algumas crianças da minha turma de 2021. "Oi, eu sou sua professora". Trocamos uns sorrisos desajeitados e tímidos, tentando começar uma relação que se dá normalmente num espaço muito específico e que envolve nosso corpo todo. Desde março de 2020 venho às voltas com esse problemão. Como ser professora de educação infantil num tempo em que espaço e corpos estão em suspensão?

 

Uma professora da educação infantil fala sobre os desafios que enfrentou na pandemia

Ilustração: Bicho Coletivo

Nosso trabalho com as crianças é marcado não por nossa fala ou pelos conteúdos que apresentamos em formato de aula. Mas justamente pelos não-ditos que dizem o mais importante: nos fazemos presentes na organização dos espaços, na seleção dos materiais, nas observações silenciosas das brincadeiras, nos pequenos e sutis gestos. Nosso corpo presente e inteiro tem uma importância gigante. É com ele que nos agachamos, sentamos, mostramos as coisas para as quais queremos chamar atenção, damos as mãos para uma brincadeira. Como fazer a partir de agora?

Que desafio enorme e como foi difícil!

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O que é qualidade na educação infantil? 

Não era o caso de ficar passando tarefas para as crianças fazerem em casa, porque não é isso que fazemos na escola também. No começo, explicamos para as famílias que o importante seria engajar as crianças em experiências cotidianas, da rotina da casa: estar junto preparando a comida da hora do jantar, participar dos momentos de limpeza e organização da casa. Com essas experiências, pensamos que aconteceriam interações importantes entre adultos e crianças. Queríamos manter essa interação, a conversa, o aprender fazendo e vendo um adulto fazer junto. Nosso objetivo era manter acesa, num cenário desafiador como esse, a ideia de que a educação infantil se dá a partir dos encontros.

Esbarramos então em um segundo desafio: estamos ainda dando os primeiros passos para construir um consenso sobre o que significa qualidade na educação infantil brasileira, e as expectativas de família e escola muitas vezes são conflitantes. Havia uma espera que enviássemos atividades, principalmente de alfabetização no modelo de cartilhas, e nós estávamos propondo observar o céu, ouvir músicas junto, dançar na sala.

 

Expectativa das famílias x proposta dos educadores

Escutar e acolher essas expectativas para construir um trabalho de parceria, em que as escolhas dos caminhos sejam compartilhados entre professoras e famílias, pareceu mais urgente do que nunca. E as escolas que não vinham de um processo de cuidado com essa relação sofreram demais para iniciar esse trabalho bem no momento em que estávamos distantes e isoladas. Esses conflitos de concepções sobre a educação infantil acontecem muitas vezes entre professoras de uma mesma escola, e diante da necessidade de reorganização pelo ensino remoto, as discrepâncias apareceram com força dentro da minha equipe.

Replanejar ações sem poder contar com os encontros, comunicar às famílias como seria nosso trabalho, refletir e discutir com minhas colegas o que nos define como professoras de crianças e como poderíamos avançar juntas… Tudo isso foi vivido com muita intensidade, misturando-se ao medo da doença e às confusões de comunicação sobre a abertura das escolas. Abre ou fecha? Contra ou a favor? Que desgaste, que debate esquisito!

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As contradições de ser professora na pandemia

Sempre sonhei com o momento em que a importância do meu trabalho fizesse parte dos debates públicos. Mas foi difícil demais ouvir de todos os lados o quão essencial é minha profissão e, ao mesmo tempo, defender com as minhas colegas que a escola estivesse fechada. Nós, que escolhemos esse trabalho, que estudamos, que pesquisamos, que nos dedicamos dia a dia, sabemos mais que ninguém da tragédia que é a escola fechar.

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Nós defendemos há anos e anos que a arquitetura da escola seja outra. Que as janelas sejam maiores (ou que pelo menos abram!), que tenhamos mais gente na equipe da limpeza e apoio. Dizemos há muito tempo como a rede de proteção para a infância é frágil e inexistente. Insistimos todo ano que só a escola não dá conta e que somos sobrecarregadas. E, de repente, parecia que estávamos em uma posição de sermos "convencidas" sobre tudo isso que nós sempre denunciamos.

Ouvir das pessoas de "fora" a exigência de que arrisquemos nossas vidas trabalhando em condições que buscamos há tanto tempo transformar foi muito doloroso. Ao mesmo tempo que dizem que somos importantes, ninguém comenta sobre termos nosso salário congelado, ou sobre pagarmos do nosso bolso, todo ano, material para conseguir trabalhar com as crianças… Então, viver todas essas contradições sobre a representação social da nossa profissão foi (é!) bem difícil para mim.

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Reinvenção para fazer a escola presente

Pensando agora em um âmbito mais pessoal, esse tempo todo trabalhando "virtualmente" provocou um grande vazio existencial. É o encontro diário com as crianças que dá sentido para a minha profissão, que é muito do que sou. Em tempos de disputa sobre os sentidos da escola e na ausência desse encontro que amenizava essas angústias, tenho buscado olhar a minha volta e me alimentar com as inspirações que vêm de outras professoras da rede pública municipal. Me emocionei em ver equipes que enviaram saquinhos com um punhado de areia do parque para a casa das crianças, ou que organizaram kits de papéis coloridos, tesoura, canetinha e livros, numa demonstração sensível do desejo de fazer a escola presente.

Vi colegas que conseguiram criar histórias através de troca de mensagens de Whatsapp com as crianças. Que organizaram transmissão de leitura ou "lives" de oficina de desenho semanais. Fomos arriscando, criando, inventando um novo jeito de fazer nossa profissão, tentando desviar das demandas burocráticas que triplicaram durante a pandemia sobre nós. Assim vamos nos mantendo vivas, enquanto vamos mantendo viva também uma ideia de escola para a infância em que bons encontros permaneçam sendo aquilo que mais importa.

 

Lilith Neiman é professora da educação infantil da rede pública municipal de São Paulo e doutoranda em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

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