Por Lourdes Atié
Chegamos ao fim de mais um ano atípico na nossa experiência de vida. Ainda um ano pandêmico, mas com avanços em relação a 2020: nos vacinamos e as escolas abriram, em sua maioria. Agora é hora de fazermos um balanço reflexivo sobre o que aprendemos, para desenharmos utopias possíveis para a educação dos próximos anos.
Para mim, uma necessidade como educadora para refletir a respeito do vivido e convivido, para que possamos pensar com coragem o que significa educar em tempos tão confusos e acelerados. E a partir daqui responder: e agora?
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Ilustração: Bicho Coletivo
No meio do caminho tem muitas pedras
Bem, depois da pandemia ou aprendendo a conviver a cada cepa descoberta do novo coronavírus, em meio ao caos instituído pela precariedade de políticas públicas que assegurem às crianças e aos jovens o direito à educação de qualidade, precisamos recuperar nossas esperanças na educação, mesmo estando em um país em que o atual governo cultiva a barbárie nas diversas instâncias sociais, culturais, econômicas e políticas. Mas é justamente por isso que acredito que a escola seja o antídoto contra a barbárie.
Porém, essa luta não se faz sozinha. Para chegarmos aos nossos desejos para 2022, é preciso refletir sobre as pedras que temos no meio do nosso caminho, que não podem servir para nos deter, mas para saber contorná-las para seguir caminhando.
Estamos numa guerra contra o tempo em que o presente está em suspensão, dominado pelo imediatismo de resultados, com o discurso recentemente instalado no Brasil de que os alunos apresentam “déficits de aprendizagem” depois de retornar aos prédios das escolas, numa abordagem reducionista do que significa aprender, restringindo a aprendizagem a entornos formais.
Não sabemos o que os estudantes viveram no isolamento da pandemia. Somando-se a isso, em uma sociedade digital altamente conectada, a aprendizagem acontece em tempos e espaços variados. Da mesma forma, aqueles que foram excluídos de novas aprendizagens por não terem acesso ao universo digital também aprenderam muito, principalmente a sobreviver em uma sociedade desigual e excludente.
Então, afirmar que os estudantes apresentam o tal “déficit de aprendizagem” representa trazer de volta do túnel do tempo os testes de QI, criados por Alfred Binet, no século XIX, que media a inteligência pelo coeficiente intelectual. Significa ignorar a revolução cognitiva de Piaget, complementada pelos estudos de Vygotsky sobre a importância fundamental do contexto social para explicar o desenvolvimento dos seres humanos. Além das contribuições do cientista norte-americano Howard Gardner, que revolucionou o estudo sobre inteligência, questionando a sua identificação exclusiva com o raciocínio lógico, ampliando esses conceitos a outros campos do comportamento humano e apontando para a existência de múltiplas inteligências. Foram importantes contribuições do século XX que não podemos desconsiderar.
E nós agora, na segunda década do século XXI, ainda temos que lidar com tamanho retrocesso, diante da afirmação de que os alunos apresentam “déficits de aprendizagem” pós-pandêmicos. Ora, estudantes não são números e muito menos resultados. Essa abordagem é reducionista porque tenta explorar um fenômeno complexo, mutável e instável, que é a aprendizagem, através de instrumentos de medição que minimizam a complexidade do que significa aprender.
Estudos dessa natureza, que geram tais afirmativas -do meu ponto de vista, bastante equivocadas-, apenas servem para penalizar os estudantes e culpabilizar os professores. Depois de tudo o que vivemos na pandemia, em que os professores brasileiros salvaram a escola, muitas vezes sem qualquer apoio institucional, precisamos aprender a interpretar o contexto e analisar criticamente, buscando entender a quem interessa ou que interesses defendem quando disseminam tal declaração, gerando frustração e perda da energia e do foco que precisamos para seguir confiando no valor do trabalho docente.
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Telas
Uma outra pedra que é pesada e de difícil contorno diz respeito ao tempo de permanência cada vez maior e mais cedo das crianças diante das telas, sejam elas celular, tablet, computadores ou TV. Na pandemia, esse quadro se agravou. Até os bebês ficam diante das telas, que funcionam como um calmante poderoso para desconectá-los da vida.
Antes da pandemia, já era excessiva a permanência das crianças e jovens diante das telas. Com as aulas remotas, esse quadro se agravou consideravelmente para quem teve acesso a elas e gerou muita frustração para quem estava impossibilitado de acessá-las. O ensino híbrido virou a panaceia da vez, desconsiderando todos os estudos produzidos pelos neurocientistas, que hoje já têm mapeado o comprometimento das capacidades cognitivas de crianças e jovens causado pelas muitas horas em frente às telas.
O excesso de permanência diante das telas tem afetado o desenvolvimento intelectual das crianças. Existem hoje diversos estudos sobre as consequências graves desse excesso, e a escola segue ignorando. No entanto, é bom lembrar que os grandes gurus do Vale do Silício, que inventaram toda essa parafernália tecnológica, proíbem seus filhos de acessar as telas.
Por menos imediatismo
Outra pedra que temos que contornar é a abordagem do ofício de educar reduzido ao imediatismo, em que se cobra que tudo seja ensinado em tempos cada vez mais curtos, frente à imensidão de conteúdos que se consideram necessários de serem trabalhados com os estudantes.
Tal reducionismo gera um imediatismo de resultados para combater a “perda de tempo”. A consequência é a substituição da experiência, que é um processo em transformação, por uma sucessão de instantes, de etapas, nem sempre conectadas e que, na maioria das vezes, se cancelam uma na outra, em que cada instante apresenta uma evidência de seus resultados, transformando a “disrupção” em pedagogia. Isso significa não parar nunca, ir para lugar nenhum. Faz com que crianças, desde muito cedo, passem a experimentar a falta de tempo para viver a vida. Precisamos resgatar as crianças e os jovens deste cenário sem futuro, porque o tempo nunca é perdido.
É preciso ter tempo para mudar a escola de uma estrutura fabril para uma comunidade de aprendizes. Para isso, torna-se necessário abandonar o discurso fácil de desenvolvimento de fórmulas de sucesso, que só servem para reforçar o modelo consumista como a sociedade brasileira se relaciona com a educação, para aprendermos a essencializar seu funcionamento, entendendo que a escola é a oficina do tempo compartilhado, em que os aprendizes precisam de tempo para despertar e ensaiar a imaginação.
A imaginação não é um dom. É uma prática que se aprende. Por ser uma atividade inquietante, que se desenvolve em tempos diversos, por meio da experiência que nos coloca entre o saber e o não saber, ela prepara para o conhecimento e organiza os desejos. Por isso tem um papel estético e ético. É imprescindível praticá-la o tempo todo na escola. Porém, é preciso tempo.
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Como será a escola depois da pandemia?
A escola, como a conhecíamos antes da pandemia, já não dava conta daquilo que a sociedade esperava dela: fazer com que todos os estudantes fossem capazes de aprender, se encantando pelo conhecimento, para seguir aprendendo ao longo da vida.
Já sabíamos que o conhecimento não se restringe às disciplinas categorizadas pela escola e nem a projetos pontuais. Tudo está conectado num movimento centrífugo que rompe o estabelecido e se abre para novas experiências que são integradas e atuam de forma interconectada e não pontual.
Isso significa dizer que a escola que agora volta a abrir no cenário ainda pandêmico e, mesmo se fosse pós-pandêmico, não pode voltar a ser o que era, porque a realidade já exigia mudanças no seu modus operandi, como uma revisão curricular, de tempo e espaços.
A escola que eu espero que floresça em 2022 será aquela que saiba aproveitar o que aprendemos com a pandemia, como, por exemplo, abrir os ouvidos para a sabedoria dos povos originários para entender melhor o que estávamos vivendo. Aprendemos com eles que os humanos são natureza e que o planeta inteiro constitui um só organismo, em que homens, animais e vegetais se entrelaçam permanentemente.
Nessa perspectiva, acredito que o único déficit que devemos focar é o de natureza, porque é notório o distanciamento das crianças e jovens do mundo natural. Eles passam muitas horas nas telas, seduzidos pelas ofertas digitais. Depois de tanto tempo em casa, enquanto as escolas estavam fechadas e mesmo agora, com elas abertas, é necessário que as escolas sejam ricas de verde e que valorizem o contato presencial. Menos telas, o que significa mais vida.
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Precisamos “renaturalizar” a escola, para que os estudantes saiam da clausura das salas de aula para ambientes abertos, com muito verde e que não tenham a função decorativa apenas, mas que possam cuidar, interagir, estudar, proteger, para educar-se no amor e respeito pela natureza. Nesse sentido, o currículo do século XXI precisa ter como eixo central a sustentabilidade. Em tempos imprevisíveis, é preciso educar frente à crise ecológica que vivemos.
Moramos em um planeta em mutação, e a forma insustentável com que o homem vem tratando a Terra tem aumentado exponencialmente a degradação ambiental. Para que o ser humano possa prosperar no futuro, teremos que pensar sistematicamente o que ensinar na escola, para ajudar os estudantes a acessarem conhecimentos para sobreviver em um planeta que está submetido a mudanças ambientais cada vez mais rápidas.
Enfim, gostaria que as prioridades educativas, depois de uma pandemia, fossem centradas nos conhecimentos que verdadeiramente importam, como, por exemplo, ecologia, pensamento crítico e sistêmico, ética pelo bem comum, para que os estudantes estejam mais preparados para criar uma sociedade sustentável e justa.
O futuro que não sabemos qual é, já está aqui. Precisamos defender a educação, a escola, a imaginação e o meio ambiente para construirmos juntos o presente mais justo, para termos um futuro melhor. Porém, com a certeza de que a educação é, antes de mais nada, um compromisso político e que, sozinha, não é garantia de controlar riscos ou criar oportunidades. Ela é um projeto coletivo que envolve toda sociedade. O futuro nada mais é do que o presente que conseguirmos transformar.
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Lourdes Atié é socióloga, consultora de educação e trabalha com formação de professores.