Barbara Cantini fala sobre "Puffy e Brunilda", aceitação, medos e imaginação

18/06/2021

As personagens dos livros da escritora e ilustradora italiana Barbara Cantini podem até ser zumbis e bruxas envoltos em uma atmosfera de terror, mas, acima de tudo, são crianças que querem fazer amigos e brincar. E o medo logo se revela muito divertido e cheio de encanto.

A atmosfera de minhas histórias sempre parece inquietante, mas depois se mostra divertida e amigável. Mesmo no cotidiano gosto de brincar com os medos e sua simbologia, também de maneira um pouco infantil, e é precisamente esse o recurso que encontrei para manter os meus medos sob controle e não me deixar vencer por eles

Depois do sucesso da série Mortina, a menina-zumbi (que só na Itália já vendeu mais de 100 mil exemplares), Barbara Cantini acaba de lançar Puffy e Brunilda: uma pitada de magia pela Companhia das Letrinhas. O livro conta a história do gatinho Puffy, que é muito diferente dos outros filhotes de sua ninhada e acaba indo viver na rua. Ele tem um poder especial e faz de tudo para ser adotado, até encontrar Brunilda, uma bruxinha aprendiz que, para fazer um teste e se formar bruxa, precisa justamente de um gato.

Capa de mais um livro infantil de terror fofo de Barbara Cantini

Brunilda procurava um gato para fazer seu exame
de voo em vassoura e Puffy procurava um lar. Leia +.

Nesta entrevista feita por e-mail, ela fala sobre a criação de Puffy e Brunilda, sobre encontrar a turma certa para cada um, sobre como manter a imaginação viva, sobre relações intergeracionais entre mulheres e sobre a gradual volta ao “normal” na Europa depois de mais de um ano de pandemia.

“Em nível geral, agora finalmente parece surgir uma fresta de normalidade graças às vacinas, mas creio que, mesmo emocionalmente, num plano profundo, todos nós ainda teremos de lidar por muito tempo com o que vivemos.”

Por fim, ela deixa ainda um recadinho: “Meus personagens e eu enviamos calorosas saudações a todos os leitores brasileiros!”

 

Blog da Letrinhas: Você disse na sua última entrevista para o Blog que seus personagens pedem e insistem para ser ouvidos. Você pode contar um pouco quando e como Puffy e Brunilda começaram a fazer isso? O que eles te disseram?

Barbara Cantini: O modo como meus personagens se fazem ouvir é quase sempre por meio de imagens, e essa história nasceu graças ao personagem Puffy. Assim como foi com a Mortina, esse gatinho preto também começou como um rabisco que passei a desenhar cada vez mais, em folhas avulsas, sem nem pensar muito a respeito, enquanto, sei lá, estava falando ao telefone ou absorvida em meus pensamentos. No fim, esse gato fofo cativou minha atenção, e comecei a estudá-lo melhor no caderno de desenho. Ele começou imediatamente, nos desenhos, a ter atitudes engraçadas, bizarras e certamente não típicas “de gato”, como vestir um saiotinho de bananas ou dançar com um tutu cor-de-rosa. A partir daí comecei a me perguntar sobre ele. Por que faz essas coisas bizarras? Por que às vezes uso vermelho e às vezes uso preto para desenhá-lo? O que ele quer? O que ele procura? Então comecei a me concentrar na história desse gato, que em muitos traços de personalidade nos lembra uma criança pequena. Brunilda seguiu no embalo, aflorando na folha do desenho entre o emaranhado de sua cabeleira ruiva, ela também se tornando protagonista e, aos poucos, junto com ela, toda a sua singular família adquiriu forma.

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Um livro infantil sobre um gato e uma bruxinha que ficam amigos e não tem nada de terror

Puffy, o gatinho, tem o poder mágico de realizar tudo o que pensa

Puffy e Brunilda têm personalidades e características bem particulares, que eles acolhem e aceitam totalmente. Eles foram inspirados em alguém que você conheceu ou por alguma experiência da sua infância?   

Brunilda é consciente e feliz de sua condição atípica e vive em seu mundo singular junto com a família, também singular, que lhe dá guia e proteção.

Puffy, por sua vez, mesmo se divertindo com suas esquisitices (que nem entende direito), no começo até sofre um pouco pelo isolamento que elas trazem. Encontra-se sozinho, incompreendido e afastado, mas nunca rejeita sua natureza e resolve abraçá-la totalmente, e ela vai guiá-lo, como uma pequena luz interior, para seu lugar no mundo, onde encontrará pessoas capazes de entendê-lo e acolhê-lo. Creio que, com maior ou menor consciência, muita gente vive ou viveu situações parecidas, principalmente na infância. Aquela sensação de leve desconforto por se sentir num contexto não plenamente adequado, como se nosso pé direito estivesse calçando o sapato esquerdo. Sensação, porém, que desaparece magicamente quando encontramos os amigos e as pessoas certas para nós e quando podemos viver de acordo com nossa natureza. Eu também, quando era pequena, muitas vezes ouvia dizerem que eu era “muito singular”, como se aquilo que me agradava ou que eu queria fazer não fosse propriamente usual; depois, ao crescer, tive a sorte de encontrar algumas pessoas do mesmo comprimento de onda, que gostam de mim como sou, e finalmente o pé calçou o sapato certo.

Puffy e Brunilda são perfeitos um para o outro neste livro infantil que não tem nada de terror

A cabeleira ruiva onde a bruxinha Brunilda guarda tudo que precisa

Quando criança, você tinha pensamentos mágicos, como os do Puffy? Algum deles se realizou? Você diria que essa habilidade de pensar magicamente te ajuda com o seu trabalho hoje ou te influencia de alguma maneira?

Sim, eu tinha, e creio que, em geral, as crianças têm, algumas mais, outras menos, pensamentos “mágicos” graças à sua imaginação, que mistura a fronteira entre real e fantasioso e faz com que certos pensamentos e brincadeiras realmente permitam voar para outros mundos. Em certo sentido, é uma verdadeira magia, que todos nós temos até certa idade. Lembro ainda minha sensação de desagradável surpresa quando comecei a perceber que aquele “poder” estava desaparecendo, que as brincadeiras começavam a me parecer “fictícias” e não conseguia mais acreditar plenamente nelas. Eu me perguntava o que estava acontecendo e por que não funcionava mais. Por sorte, porém, guardei a viva lembrança daquela magia infantil, que continua a me guiar mesmo no que faço hoje. Também lembro bem como eu me imaginava entrando em certos livros e certas ilustrações e diria que, de certa forma, consegui isso com meu trabalho.

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Puffy se transforma em bailarino neste livro infantil, para terror das meninas da aula de balé

Puffy se transforma em bailarino e causa muita confusão durante a aula

À medida que as pessoas crescem, vão perdendo essa habilidade de fazer pensamentos e desejos virarem realidade por meio da imaginação. Como você diria que os adultos podem cultivar essa característica para que consigam incentivá-la nas crianças?

Creio que, para cultivar a imaginação, é importante sempre conservarmos o espanto, a capacidade de nos surpreendermos com as pequenas coisas maravilhosas que nos cercam, como acontece quando somos crianças. E, mesmo quando adultos, seria importante retomarmos o tempo da descoberta e simplesmente observarmos a magia que nos cerca, talvez uma lagarta criando seu casulo, um cogumelo nascendo do nada no bosque ou o cuidado com que um pássaro constrói seu ninho, e depois dedicarmos o devido tempo às crianças para que se surpreendam junto.

 

Brunilda conta com muito apoio e ajuda da avó e da mãe, que compartilham seus conhecimentos com a bruxinha iniciante. Isso é algo comum nas histórias de bruxas e também um ritual antigo entre as mulheres, que parece cada vez menos comum na nossa sociedade ocidental. O que você pensa sobre isso?

Encontramos na família de Brunilda uma forte ligação entre as mulheres. Sempre gostei muito das sagas familiares com personagens femininos fortes, que, mesmo sendo às vezes de caráter muito diferente, ajudam umas às outras e são solidárias entre si. É um tipo de organização familiar que hoje, infelizmente, vai desaparecendo aos poucos com a modernidade, em que os núcleos familiares se restringem a pais-filhos, mas é um modelo que, no entanto, ainda encontramos em algumas culturas e regiões do mundo.

Como talvez eu já tenha comentado, ao falar da Mortina, fui criada numa família que também tinha a presença dos avós maternos e um tio-avô que ficou centenário e a tríade avó-mãe-filha foi determinante para meu crescimento. Minha família era decididamente matriarcal, sob o indiscutível comando de minha avó! Sou muito grata por ter tido a oportunidade de crescer com vários modelos de referência; guardo isso como um bem precioso. Também sempre gostei que elas me contassem as histórias da época em que a família morava na velha casa de campo, com irmãos, cunhadas, pais e bisavôs vivendo sob o mesmo teto: realmente full of life!

As mulheres bruxas da família se ajudam neste livro infantil em que o terror passa longe

Puffy, Brunilda e sua mãe, Zelda

Aqui no Brasil, temos assistido a um debate a respeito do que é ou não apropriado para ser representado pela literatura infantil, como se as crianças não devessem entrar em contato com temas como morte, medo, luto, tristeza, maldade, inveja. Por que você diria que é importante que as crianças se aproximem desses temas, especialmente por meio da arte?

Eu não estava a par desse debate no Brasil, mas diria que a vida por si só é muitas vezes “inapropriada”, e creio que não deveria ser tanto uma questão do que é ou não é apropriado contar para as crianças, e sim até que ponto é correto lhes transmitir determinados temas. Em minha opinião, varrer a poeira para debaixo do tapete, fingindo que não existe, leva posteriormente a problemas maiores. É correto acompanhar as crianças em certos temas que não podem ser ocultados (ou sentimentos negativos que podem surgir em nós) mesmo porque, mais cedo ou mais tarde, queiramos ou não, todos nós teremos de enfrentá-los. Se os medos e os sentimentos difíceis são sempre reprimidos ou ignorados, mais cedo ou mais tarde iremos nos deparar com eles, de todo modo, e não teremos os instrumentos emocionais para lidar com eles. Gosto, por exemplo, da maneira como o tema da morte é tratado na cultura mexicana, em que a memória dos mortos é celebrada com alegria e falar da morte não é tabu, porque a morte é parte integrante da própria vida.

Por meio da arte e das histórias é possível abordar esses temas também com as crianças, e acredito convictamente que deve haver liberdade para tal, pois entendo que pode ser especialmente difícil, em certas situações, tratar de certos assuntos com as crianças e, assim, respeito também as escolhas dos adultos que não se sentem à vontade para fazê-lo.

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Mortina é uma menina-zumbi que aproveita o Dia
das Bruxas para se enturmar e fazer amigos. Leia +.

Seus livros geralmente têm uma atmosfera divertida e encantadora, ainda que trate do que é assustador. Em contraste, vivemos momentos sombrios de verdade por conta da pandemia ao longo do último ano. Como essa situação afetou sua vida e seu trabalho?

É verdade, a atmosfera de minhas histórias sempre parece inquietante, mas depois se mostra divertida e amigável. Mesmo no cotidiano gosto de brincar com os medos e sua simbologia, também de maneira um pouco infantil, e é precisamente esse o recurso que encontrei para manter meus medos sob controle e não me deixar vencer por eles, sobretudo depois de ter passado, alguns anos atrás, por um período um pouco difícil.

Quanto à pandemia, considero-me afortunada pela forma como tenho conseguido enfrentá-la junto com minha família; o trabalho que fazemos, tanto eu quanto meu marido, não nos expôs a um risco direto para a saúde, nem ao de perder o serviço, como infelizmente aconteceu com muita gente, e até hoje não tivemos nenhum contágio na família. Mas não posso deixar de sentir uma profunda empatia ao pensar na situação em que se encontram certas famílias e crianças por causa da pandemia, e é difícil lidar com o sentimento de injustiça que decorre disso (e também um pouco com o sentimento de culpa por nossa condição mais afortunada).

Em nível geral, agora finalmente parece surgir uma fresta de normalidade graças às vacinas, mas creio que, mesmo emocionalmente, num plano profundo, todos nós ainda teremos de lidar por muito tempo com o que vivemos. Pessoalmente sou uma pessoa sociável, mas, ao mesmo tempo, reservada e introvertida, e por isso muita socialidade sempre me deixa com um baixo nível de energia; mas percebo que o fato de precisar eliminar de repente e quase totalmente essa socialidade deixou um leve véu de tristeza, que se depositou lentamente e quase sem que eu me desse conta. Diria também que, infelizmente, essa pandemia agravou um pouco minha tendência de “ficar no casulo” e agora sinto que preciso me reeducar para a abertura ao exterior, para o prazer saudável de encontrar outras pessoas e voltar a me aventurar fora dos espaços seguros.

(Tradução do italiano: Federico Carotti)

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