“O que eu vou fazer agora? Não tenho nada para fazer!” Se você é mãe, pai ou convive com uma criança ou adolescente, que passa, pelo menos, alguns momentos do dia em casa e sem acesso a telas, certamente costuma ouvir essa reclamação com certa frequência. E talvez até se culpar por não oferecer tempo para brincar com ela ou uma opção atividade para ela fazer. Tentamos preencher todo o tempo de nossas crianças com atividades funcionais, como se elas precisassem estar ocupadas o tempo todo com algo produtivo. Mas a verdade é que o tédio de fazer nada abre espaço para algo muito importante para o desenvolvimento infantil: o ócio criativo.
Em Domingo, Marcelo Tolentino traz as tardes de domingo na casa dos avós recheada de aventuras que só o tédio pode provocar
Martim, o personagem do livro Domingo, de Marcelo Tolentino, é uma dessas crianças. (Aliás, domingo deveria ser o dia oficial do tédio). Pois bem, Martim estava em um domingo desses na casa de seus avós, sem nada para fazer, e todos os adultos estavam ocupados. Obviamente, ficou chateado. Mas o não ter nada para fazer abriu uma porta para a imaginação. A partir de objetos da própria casa, e com a companhia do cachorro Fubá, o menino embarcou em diversas aventuras: a geladeira virou uma aventura no gelo, o bolo de cenoura no forno se tornou um vulcão de lava e até a careca do vovô se transformou em um deserto.
Com ilustrações de hipnotizar, e muita identificação afetiva com domingos na casa dos avós, o livro propõe nas entrelinhas uma divertida caça aos objetos do cotidiano que originam cada aventura do menino. No polo sul, um pinguim de geladeira, ovos e uma garrafa de leite compõem o cenário. No vulcão em erupção, um enorme pedaço de bolo de cenoura que a mãe está fazendo desliza pela lava. Na luta com o dragão, a tatuagem do pai.
A importância do tédio para a criatividade
A reclamação sobre não ter o que fazer vem quando nos deparamos com uma emoção que enxergarmos como negativa, mas que, segundo a ciência, pode trazer diversos benefícios, não só para as crianças como para os adultos. A psicóloga britânica Sandi Mann, autora do livro The science of boredom (“A ciência do tédio”, em uma tradução livre), explica que o tédio é uma busca de estímulo do cérebro, quando ele não está satisfeito com alguma atividade ou com a falta de atividade mesmo.
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O tédio nos ajuda a ser criativos e estimula a imaginação. Na verdade, não é o tédio em si que leva os créditos e sim o que nós fazemos em resposta ao tédio. Em uma experiência, Mann dividiu algumas pessoas em dois grupos: um deles precisava completar uma tarefa de escrita mais entediante e o outro tinha uma tarefa mais interessante. No final, ambos tinham que apresentar soluções para um problema. O grupo designado com a tarefa entediante teve muito mais ideias criativas e "fora da caixa" para resolver a questão proposta. Aprender a lidar com o tédio não é apenas positivo, como também necessário, desde cedo.
Na imaginação do menino, o bolo de cenoura no forno vira um vulcão em erupção no livro Domingo
Sociedade de hiper-estímulos
Quando ouvem a criança dizer que não tem nada para fazer ou até mesmo antes da reclamação, os pais sentem que é papel deles oferecer estímulos o tempo todo para a criança, entretê-la, estruturar atividades para ela. Quando não conseguem, sentem culpa. Mas não é bem assim. “A criança não precisa de atenção o tempo todo”, afirma a neuropsicóloga e mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo (USP) Deborah Moss. “Ela também precisa estar conectada com ela mesma, precisa desses momentos em que ela vai aprendendo, aos poucos, a ser uma boa companhia para si mesma”.
Os momentos de tédio são fundamentais para o desenvolvimento humano e isso começa desde criança. (Deborah Moss, neuropsicóloga)
Para ela, costumamos ver o tédio como algo negativo e nem sempre é assim. Experimente, por exemplo, 1ajudar seu filho a encarar essas ocasiões em que não tem nada para fazer - como os almoços de domingo na casa da avó, por exemplo - como algo bacana. Diga: “Que bom! Vamos poder descansar bastante!” ou “Quantas coisas dá para imaginar e inventar quando a gente não tem nenhuma tarefa para cumprir, não é mesmo?”.
Se reparar bem no navio pirata, já vai saber de qual parte da casa veio a inspiração para essa aventura no mar no livro Domingo, de Marcelo Tolentino
Telas não devem ser a resposta
É importante que os pais trabalhem essa ideia da culpa por querer preencher o tempo dos filhos e oferecer atividades o tempo todo, principalmente, porque uma das consequências mais imediatas dessa sensação de impotência é recorrer ao recurso mais rápido: as telas. É claro que o digital faz parte da vida das crianças na atualidade, mas é preciso respeitar limites e usar com muita moderação.
“As telas são feitas para prender o que temos de mais importante, que é a nossa atenção”, diz a psicopedagoga Luciana Brites, CEO do Instituto Neurosaber. “Quando estamos nas mídias digitais, acabamos perdendo até a noção do tempo e, se isso acontece com os adultos, que já têm o sistema cortical formado e a autorregulação, imagine a criança”, compara.
Por isso, segundo a especialista, é importante combinar momentos de pausa e avisar antes que vocês vão desligar em alguns minutos. “É importante dar esses alertas algumas vezes, quando faltarem 10 minutos, depois 5 minutos, porque a percepção de tempo fica alterada”, lembra.
Luciana ressalta ainda que quando as telas substituem outras experiências e são a resposta rápida a qualquer expressão do tédio, isso acaba impedindo a criança de vivenciar o ambiente e de ter outras experiências, outras percepções. “Já se sabe que isso diminui, por exemplo, o nível de vocabulário da criança, causando impactos cognitivos importantes”, acrescenta.
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Ao abusar do recurso das telas, as crianças também perdem outra habilidade importante: a de esperar. Antes, até para ver televisão, era preciso esperar a hora da programação infantil. “Para comer um bolo, você precisava ir ao supermercado, comprar os ingredientes, preparar, esperar assar, esperar esfriar. Agora, você pede o que quiser em aplicativos. Alguns chegam a garantir a entrega em dez minutos”, diz Deborah.
Não que a tecnologia não seja boa. Ela traz praticidade e facilita muito a vida, em alguns momentos. Mas é preciso prestar atenção nesses pormenores, exercitar por outros meios e cuidar para não viciar.
Em A panela, de Patricia Auerbach, as crianças entediadas inventam brincadeiras com objetos do cotidiano
Tédio agendado? Também não!
Apesar de ser um indutor para a criatividade, o “momento do tédio” também não precisa ser programado. Nem deve, senão já não seria tédio. “O ócio é algo espontâneo, flui. É quando você não tem nada para fazer, se depara com o vazio e instintivamente procura formas criativas de preencher e de se conectar com o momento presente. Quando você programa, já saiu do momento presente”, aponta a neuropsicóloga Deborah.
O papel dos pais é garantir apenas que a criança tenha tempo livre e que esse tempo livre não seja preenchido sempre com telas. “É preciso entender que a criança vai ficar sem fazer nada e que o ‘nada’ é importante para que ela tenha essa liberdade de vivência no ambiente. Isso tem que ser algo mais trabalhado nos pais do que nos filhos”, acrescenta Luciana.
O que fazer no tédio
E como agir, então, quando a criança diz que não tem nada para fazer, mas também argumenta que não sabe brincar sozinha? “Os adultos devem estimular as crianças nesses momentos. É preciso entender que, muitas vezes, as crianças não têm esse repertório. Aos poucos, as experiências vão ajudando os pequenos a resolverem o que fazer e eles vão criando esse repertório”, explica a pedagoga.
O tédio também nem sempre quer dizer que a criança precisa ficar sozinha. Ela pode viver o tédio junto com você, com amigos, na escola. O importante é viver o momento e deixar o cérebro funcionar por si só. “Você pode estar junto e seu filho resolve desenhar. Então, você estimula, ele mostra o desenho, você comenta”, exemplifica Deborah.
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Uma ideia é deixar à disposição da criança diversos livros que possam fazer com que ele se aventure por mundos novos. E há mesmo livros que acabam por dar ideias de brincadeiras aos mais pequenos, como aqueles em que o personagem se utiliza de objetos simples do cotidiano para inventar brinquedos e brincadeiras.
É o caso da coleção Objetos Brincantes, de Patricia Auerbach: A panela (o último a ser lançado, em 2023), A garrafa, O lenço e O jornal, todos pela Brinque-Book. E também dos livros de Stela Greco Loducca: Dudu e o mundo de papel (2022), Dudu e o plástico-bolha e Dudu e a caixa, todos pela Companhia das Letrinhas.
Outra sugestão, para crianças pequenas, é separar um momento com elas e criar uma lista de ideias de atividades que elas podem fazer quando o tédio bater. Alguns fazem um quadro, outros preferem dobrar os papeizinhos e montar um “pote do tédio”. O ideal é pensar junto com seu filho. Assim, você pode dar ideias e ele também pode colocar as ideias dele. Quando estiver entediado, dá para se inspirar no que vocês já pensaram juntos.
Emoções que acompanham o tédio
É interessante saber também que lidar com o tédio é um terreno fértil para outra emoção da qual as crianças podem não gostar muito, mas que também faz parte do desenvolvimento: a frustração. Se o pequeno resolve, por exemplo, montar um quebra-cabeça e não consegue, ele pode se chatear ou se irritar com isso. E está tudo bem! Também é um aprendizado.
Outro ponto importante é que o “não tenho nada para fazer” pode significar várias coisas, além de tédio. Pode ser um pedido de atenção, por exemplo. Sabe quando a criança expressa dificuldade por estar entediada, então, você sugere que ela faça um desenho, leia um livro, monte um castelo de blocos de montar, regue as plantas, brinque com o cachorro… Mas nada parece interessante?
Há a possibilidade de ela querer isso mesmo, que você fique ali, dando infinitas ideias, sem que ela aceite nenhuma, porque, se ela aceitar, você vai voltar para a sua atividade e ela perde sua atenção. Nesse caso, o ideal é explicar, de acordo com a idade e o entendimento dela, que, naquele momento, você precisa terminar o que está fazendo e combinar um momento em que você poderá se dedicar integralmente a ela. Enquanto isso, deixe-a lidar com o tédio.
Como diria a eterna Rita Lee: “nada melhor do que não fazer nada”.
Mais livros que podem ajudar a soltar a imaginação
O mundo seria mais legal, Marcelo Tolentino (Companhia das Letrinhas)
Do mesmo autor de Domingo, o livro reúne sugestões rimadas que vão contemplar toda criança (e todo adulto) que quiser fazer do planeta Terra um lugar ainda mais especial. Rende muitas boas ideias para depois da leitura!
Mamãe está cansada, Vanessa Bárbara (Companhia das Letrinhas)
Enquanto a mãe trabalha e resolve milhares de tarefas cotidianas, uma garotinha usa a imaginação para enxergar tudo de um jeito muito mais divertido. E usa esse momento (e os objetos que têm à disposição em casa) para inventar as mais diversas brincadeiras: construir um forte com livros, tocar panelas numa banda, se camuflar com guache...
Chapéu, Paul Hoppe (Brinque-Book)
Enquanto passeia com sua mãe, Hugo encontra um chapéu em cima de um banco. Pronto. Era só disso que ele precisava para colocar a imaginação para funcionar.
O jornal, Patricia Auerbach (Brinque-Book)
Um menino vê seu pai com o jornal o tempo todo. O que ele não sabia - mas logo descobre - é que aquele mesmo jornal pode se transformar em muitas coisas divertidas. Este foi o primeiro livro da coleção Objetos Brincantes, que mostra como a imaginação das crianças pode transformar objetos inanimados em grandes aventuras e brincadeiras. Os outros títulos da coleção são A garrafa, O lenço e A panela.
Dudu e o mundo de papel, Stela Greco Loducca (Companhia das Letrinhas)
Desta vez, uma pilha de papéis vai ser o ponto de partida para Dudu se aventurar por outros personagens, brincadeiras e cenários. Este é o terceiro volume da coleção O Pequeno Leitor, que tem ainda Dudu e a caixa e Dudu e o plástico-bolha.