“Tudo está fechado. Domingo é sempre assim. E quem não está acostumado? É dia de descanso. Não precisava tanto”, já diziam os Titãs, na música que leva o mesmo nome do livro ilustrado de Marcelo Tolentino. Em Domingo, lançado pela Companhia das Letras, o autor e ilustrador conta a história de um menino que, assim como na música da banda brasileira, não tinha nada para fazer. Então, enquanto os adultos estavam ocupados, em um típico almoço em família na casa dos avós, ele começa a criar brincadeiras e imaginar cenários em tudo o que vê pela frente: desde a careca do seu avô até o varal de roupas no quintal, passando pela tatuagem do seu pai. Pronto, tudo ficou bem mais divertido. Para as aventuras que acabara de criar, ele conta com a companhia do cachorro Fubá.
Na imaginação do menino, o bolo de cenoura vira um vulcão que expele calda de chocolate quente no livro Domingo, de Marcelo Tolentino
Dizem que o tédio é um dos maiores impulsos para a imaginação e para a criatividade. E é mesmo! Em um bate-papo com o Blog da Letrinhas, Marcelo Tolentino explica que a história surgiu a partir de uma imagem que apareceu em sua cabeça, que era a de um menino vendo um mapa nas linhas da própria mão. Guiado por esse mapa, o garoto faria uma viagem. Tolentino lembrou da própria infância e da casa em que ele passava os seus domingos de menino e somou isso a um contexto de pandemia, em que tudo o que vivíamos era dentro de casa. Um elemento extra? A inspiração no próprio filho, Martim, de 1 ano e 8 meses.
Aqui, Tolentino detalha toda a história e as belíssimas ilustrações de Domingo, fala da relação com o livro ilustrado e também de seu trabalho como professor em uma escola de São Paulo.
Confira a entrevista completa com Marcelo Tolentino:
Como surgiu a ideia de criar Domingo? De onde veio a inspiração para a história e para os personagens?
Marcelo Tolentino: A ideia de criar Domingo surgiu de uma imagem que me veio à cabeça de um menininho que faria uma viagem, seguindo um mapa que ele viu nas linhas da própria mão. Na cena que eu imaginava, o garoto encarava as linhas como um mapa e tentava descobrir para onde elas o levariam. Então, desdobrando essa imagem, comecei a pensar em outras relações do corpo com possíveis lugares. Aos poucos, foram surgindo imagens do olho, que parecia uma galáxia, da careca, que poderia ser um deserto, de uma barba muito fechada, que poderia ser uma floresta densa… Aí, fui pensando se havia uma história que ligasse as pessoas da família desse menino com esses diferentes habitats do planeta.
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A história foi mudando ao longo do desenvolvimento ou seguiu a concepção que você já tinha?
A coisa travou um pouco, em certo ponto, porque eu não consegui, de fato, fechar uma história, com começo, meio e fim, mas continuei achando algumas daquelas imagens muito poderosas, especialmente a do olho e a da careca. Pensando um pouco mais, olhando para elas, uma hora, me deu um clique, no sentido de que podia não só passar apenas pelas pessoas da família, mas também pela casa. Então, a partir desse momento, juntei tudo, considerando o fato de que isso aconteceu em um contexto de pandemia, em que estávamos vivendo a casa como único lugar possível. Isso também aconteceu junto com o nascimento do meu filho, que me colocou em uma situação de voltar a pensar muito na infância, inclusive na minha infância, que se deu nessa casa onde a história se passa. Quando juntei todas essas peças, de fato, a história começou a se fechar.
E como foram feitas as ilustrações?
Como meu filho já tinha nascido, eu não tinha muitos horários livres para pensar sobre as ilustrações, né? Eu estava dando aula na escola e cuidando dele. Então, aproveitava os momentos de soneca dele para planejar. Fiz tudo muito pequeno, em um caderninho de bolso, com uma caneta fina e tal. Depois, na hora em que eu escaneei isso para apresentar uma primeira versão do livro, gostei bastante da estética de trabalhar a cor digital com esse traço da caneta um pouco ampliado. Achei que deu um resultado interessante e acabei, de certa forma, mantendo um pouco para o livro final.
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Marcelo Tolentino. Foto: Rodrigo Fonseca
Você trabalha com arte. Como foi a sua infância? Era uma criança imaginativa?
Talvez eu seja da última geração da transição, com a chegada da internet e o crescimento do celular. Fui ter meu primeiro celular quando eu já estava na faculdade, então, demorou bastante. Ainda foi uma infância cuja maior parte eu passei morando em uma casa, que ficava em uma rua que, até certa época, era bastante residencial lá no Tatuapé [bairro da zona leste de São Paulo]. Foi uma infância de brincar bastante na rua, com muitas crianças. Eu tinha um melhor amigo, que morava em uma pequena vila. Passávamos o dia fora de casa, jogando bola.
Mas, desde muito pequeno, gostava de desenhar, que foi algo bastante estimulado na minha infância. Meu pai tem formação de engenheiro e minha mãe, em fonoaudiologia. Tanto um, como o outro, sempre tiveram certa habilidade. Eu gostava de desenhar com meu pai desde pequeno. Minha mãe tem uma coisa com artesanatos, com linha, tricô, crochê, bordado… Minha avó também. Então, sempre tive essa convivência muito próxima e sempre admirei. Lembro de várias brincadeiras assim, de procurar objetos em casa, que poderiam virar adereços e capacetes. Foram coisas que eu consegui colocar no livro. A própria bacia que vira caravela é uma bacia que, muitas vezes, virava muitas coisas quando era criança, na casa dos meus avós, que veio a ser minha casa também. Era barco, carrinho, balão, era tudo.
Então, tive essa sorte de ter uma infância que não foi dominada pelas telas. Eu também nunca gostei tanto de videogame, apesar de ter e jogar. Acho que eu tinha preferência por brincar na rua, desenhar, fazer atividades ligadas a desenho e pintura. O livro traz um pouco isso, um pouco do que eu vivi como criança e talvez um pouco de uma projeção que faço para o meu filho. Espero que ele também goste de inventar e imaginar.
Você também tinha essas experiências dos domingos em família?
O domingo até hoje é o dia da minha família. Eu morei nessa casa até os 18 anos, quando, enfim, saí da casa dos meus pais. Mas o domingo sempre foi o dia de voltar e almoçar junto. Quando eu morava lá, o domingo era o dia também de receber outros parentes ou amigos. Era o dia em que essa rotina se estabelecia.
Além de Domingo, você fez O mundo seria mais legal, com a Companhia das Letrinhas. Poderia lembrar um pouquinho como foi o processo criativo desse livro e se, de alguma forma, ele se relaciona com seu trabalho em Domingo?
Acho que o único ponto em que esse livro se relaciona com Domingo é o fato de ele ter partido de um de um insight assim. Quando eu fiz O mundo seria mais legal, eu ainda trabalhava com publicidade e não morava no Brasil. Na época, foi algo que também partiu de uma semente. Recebi um cartão-postal e expandi isso. Foi uma ideia que eu não sabia que viraria livro. Fui anotando, desenhando e o fato de ter virado livro me abriu um pouco a cabeça e as portas para o mundo do livro ilustrado. Depois disso é que fui fazer um curso com Odilon Moraes e Carolina Moreyra na Casa Tombada. Aí, passei a estudar mesmo sobre o livro ilustrado, anotar minhas ideias e desenhá-las.
O seu começo no mundo ilustrado veio, então, depois da primeira obra já publicada?
É engraçado porque é até difícil me definir como uma coisa só: ou como artista ou como professor ou como autor. O que eu sinto é que todas as coisas que eu faço estão ligadas à produção de imagem. Por isso, contar histórias por meio das imagens, para mim, é algo muito sedutor. Foi aí que começou e, a partir disso, me mantenho pensando em ideias e, eventualmente, publicando essas ideias.
Tenho alguns outros projetos já começados, tem mais um projeto já assinado com a Companhia das Letras - que deve sair no ano que vem. É algo que, ainda mais depois do nascimento do meu filho, me vejo fazendo cada vez mais. É algo que me dá muito prazer em fazer. O livro ilustrado não é, necessariamente, um livro infantil, mas boa parte do público acaba sendo o público infantil, que é um público muito autêntico, genuíno, transparente. É maravilhoso receber e poder ver as reações de quem leu. Nesse ponto, trabalhar em uma escola também é muito legal.
Como é sua relação com as crianças na escola?
Apesar de eu ter mais contato com os adolescentes, que são os meus alunos, eu consigo ter esse ponto de contato com as crianças mais novas. É muito legal aprender com elas e ver as chaves de leitura que, às vezes, acontecem, descobrir coisas sobre o seu próprio livro que você não sabia. Hoje, uma das aulas que dou é sobre produção de livro ilustrado. Eu criei esse curso muito baseado nas experiências de curso que eu tive. É demais poder ver como o livro ilustrado é poderoso para trabalhar temas, muitas vezes, sensíveis.
As roupas a secar no varal logo se transformam em uma aventura pirata no livro ilustrado Domingo
As relações que você tem com seus alunos se conectam, de alguma forma, com a criança que você foi?
Dou aula para adolescentes e, às vezes, para crianças. Tem uma conexão grande com a minha infância porque vou na contramão desse desenvolvimento tecnológico. Gosto muito de sair da tela e tentar trazer os alunos de volta para uma produção que venha de dentro e que se expresse pelos materiais. Seja na hora de fazer escultura com argila ou pintura ou mesmo na criação de um espaço para os alunos trabalharem performance ou seja lá o que for. Não tenho a pretensão de formar artistas lá dentro, mas que a arte passe a ser uma forma de o aluno se expressar e lidar com o mundo em que a gente vive.
Domingo é um livro que conta a história de um menino que usou a imaginação, em momentos de tédio. As crianças hoje têm mais dificuldade em sentir tédio e em lidar com ele?
Absolutamente, acho que essa geração, mais do que nunca, tem muita ansiedade, muita dificuldade de lidar com o ócio. Vejo que isso reflete até na vida dos adultos, como eu. Sinto muito essa dificuldade de, às vezes, parar e não ficar checando o celular ou deixar o tempo passar. Somos bombardeados por tudo o que vemos nas redes sociais e afins. É cada vez mais difícil e vira algo em que precisamos, de fato, nos policiar. É preciso, proativamente, parar tudo e tentar ter um tempo para para deixar os pensamentos decantarem. Não é à toa que, em certos momentos, sinto que, enquanto estou tomando banho, dirigindo, nessas horas em que você forçadamente está fora das telas, as ideias fluem com mais liberdade. Então, sim, está cada vez mais difícil lidar com essas pausas e alongá-las. Elas são muito importantes para o processo criativo.
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