A pergunta é simples, mas a resposta é muito mais complexa do que possa parecer. Afinal, o adjetivo *infantil* implica o público ao qual essa literatura se destina, e a própria conceituação sobre o que é criança mudou ao longo dos séculos, desde que foi instituída como categoria social, no século 19. Assim, a definição de literatura infantil tem mobilizado pesquisadores e acadêmicos principalmente dos anos 1980 para cá, quando a crítica literária desse segmento se tornou mais especializada.
LEIA MAIS: Um encontro marcado com mestres da literatura infantil
Ilustração de Odilon Moraes para o livro Direitos do pequeno leitor.
Em busca de possíveis respostas a essa questão fundamental, o Blog conversou com Mell Brites, que é doutoranda em literatura infantil, editora executiva da Companhia das Letrinhas e professora de cursos sobre o tema ao lado de Isabel Lopes Coelho, doutora em literatura infantil e gerente de projetos especiais e literatura da FTD. Nos cursos do Instituto Tomie Ohtake, elas lançam mão de um rico panorama teórico para multiplicar os olhares sobre as ambiguidades e as singularidades da literatura infantojuvenil.
Esta reflexão pode ser um valioso e substanciado ponto de partida para todos que se interessam pelo tema e desejam se aprofundar nele de alguma maneira.
Literatura para quem?
Para começar, a singularidade mais imediata da literatura infantojuvenil é que se trata de uma das poucas categorias textuais que se definem pelo seu destinatário, ou seja, o público para quem ela é criada.
De acordo com Mell, o britânico Peter Hunt - um dos principais estudiosos de literatura infantil no mundo - considera que essa concepção a partir do destinatário é uma possibilidade, ainda que seja pouco prática. “A literatura infantil, por inquietante que seja, pode ser definida de maneira correta como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças”, diz o pesquisador. Abarcaria, então, uma enorme variedade de textos que podem ser lidos por crianças, incluídos aí receitas de bolo e jornais - e eles podem ser considerados literatura infantil?
Personagens clássicos da literatura infantil ilustrados por Odilon Moraes, em Direitos do pequeno leitor.
Para a pesquisadora e crítica Maria Nikolajeva, a literatura infantojuvenil é uma grande categoria que engloba vários gêneros, incluindo novelas policiais, contos diversos, poesia e livros ilustrados. Porém, dentro da categoria infantil, as características desses gêneros são as mesmas que eles apresentam na literatura mainstream?
Já o autor de As crônicas de Nárnia, C. S. Lewis, reflete que a literatura infantil seria a melhor forma artística possível para contar uma determinada história. Ou seja, o ponto de partida é a história e o formato que melhor se adéqua a ela - e não o destinatário.
Entre os críticos brasileiros, a pesquisadora Regina Zilbermann considera que entram nessa categoria os livros que lemos antes da idade adulta e que marcam a nossa formação como leitores, imprimindo-se na memória como uma referência do que é literatura.
Carlos Drummond de Andrade pondera que a categorização de literatura infantil é duvidosa e que o adjetivo em questão traz uma conotação de coisa menor e desvitalizada, infantilizada. “Qual o bom livro para crianças que não seja lido com interesse pelo homem-feito?”, questiona o poeta.
Max, de Onde vivem os monstros, em ilustração de Odilon Moraes
A pergunta de Drummond aponta para outra característica da literatura infantojuvenil levantada pelos críticos: a chamada dupla audiência. É o fato de que ela tem dois públicos, as crianças e os adultos - enquanto pais, professores e mediadores em geral.
Assim, Mell explica que o “conteúdo dos livros infantis é sempre pensado a partir daquilo que os adultos entendem que as crianças devem ler”. Esse “julgamento” dos adultos muda de acordo com as concepções de infância de cada tempo e espaço, e sempre interfere no que chega aos pequenos leitores.
Livros para crianças devem ensinar alguma coisa?
Mell Brites explica que essa questão integra uma das principais ambiguidades relacionadas à literatura infantil: ela carrega em seu DNA tanto o fato de ser arte como o de ter um aspecto educativo.
A partir de um texto muito conhecido do professor Antonio Candido, Mell argumenta:
A literatura infantil é literatura - se não fosse, não seria assim chamada. E literatura é arte. Como arte, ela tem o direito de não servir propriamente para nada, de não ter uma intencionalidade de antemão. Portanto, ela nos humaniza também porque conversa conosco por vias que não as da lógica, da hierarquia, da razão. O processo de fruição artística nos leva a compreender o mundo, a nos compreender como seres humanos e a compreender o outro. Ele ajuda a nos organizar, a conhecer diversas outras visões de mundo por um processo próprio, sem um fim objetivo.
Mell Brites
Para a pesquisadora, esse aspecto é importantíssimo para pensar a literatura infantil e não deve ser deixado de lado.
Porém, tanto no Brasil como no mundo, a categoria tem seu nascimento e seu progresso associados ao universo da escola, às políticas e aos programas governamentais. No nosso caso, o primeiro livro de Monteiro Lobato, A menina do narizinho arrebitado, que mudou o rumo da literatura infantil nacional, é publicado em 1921, um momento em que a educação no Brasil está sendo formalizada como rede: há uma organização do ensino e é preciso haver livros que entrem no espaço de educação para a criança.
LEIA MAIS: Literatura não é manual de boas intenções
Um manifesto em defesa de uma
leitura livre para as crianças. Leia +.
Isso quer dizer que, além de dupla audiência, os livros para crianças e jovens têm também uma dupla função, como define a pesquisadora espanhola Teresa Colomer. Ela argumenta que os livros infantis se mantiveram entre essas duas funções - a artístico-literária e a pedagógica - ao longo do tempo, se aproximando de um ou outro extremo de acordo com a época. Nas últimas décadas, Colomer conclui que parece haver uma predominância do aspecto literário.
LEIA MAIS: Atenção, ler é um ato altamente subversivo
Livro ilustrado, livro-álbum, álbum ilustrado
Todos esses nomes se referem a um mesmo gênero, que é muito explorado dentro da literatura infantil. “Livro ilustrado” vem do termo em inglês “picture book”; já “livro-álbum” e “álbum ilustrado” são traduções do francês “album”. Para Mell, somente essa nomenclatura já daria outra longa conversa. Ela afirma que, atualmente, esse é o gênero mais publicado, mais estudado academicamente e o que mais permite aventuras experimentais (tendo se desenvolvido, inclusive, nos anos 1960, com o advento de novas tecnologias de impressão e produção gráfica).
Ilustração de Odilon Moraes em Direitos do pequeno leitor
Mas o que é o livro ilustrado, afinal? Trata-se de um gênero híbrido, que pressupõe uma inter-relação entre texto e imagem para a criação de sentido e a construção da narrativa. “Ele se difere de um livro em que as ilustrações simplesmente reproduzem o que o texto diz. No caso do livro ilustrado, texto e imagem têm uma relação íntima e íntegra de tal maneira que não dá para pensar na existência de um sem o outro”, explica Mell. O autor britânico Anthony Browne é uma das principais referências contemporâneas na criação de livros ilustrados.
Outra característica do gênero é que ele costuma explorar a materialidade do objeto livro: o formato, o tipo de papel e o projeto gráfico também são engajados na construção do sentido, como é o caso dos títulos da autora sul-coreana Suzy Lee.
*Este texto teve origem com a mesa "Um percurso pela literatura infantojuvenil", de Mell Brites, na Jornada Pedagógica Companhia na Educação de 2020. A programação da Jornada 2021 está imperdível e as inscrições já estão abertas, é só clicar aqui!
***
Leia mais:
+ A materialidade do livro como suporte para histórias