Alfabetização, letramento, literacia: o que é o quê?

12/11/2021

A alfabetização é um tema central da educação e uma preocupação importante de educadores e também de famílias. E há uma variedade de termos e conceitos que nem sempre estão claros e bem definidos em relação a esse assunto. Talvez o mais proeminente seja a diferenciação entre alfabetização e letramento, conceitos que andam juntos quando se trata da aproximação da cultura escrita.

Recentemente, alguns documentos do governo federal, como o Plano Nacional de Alfabetização (PNA) e o controverso programa Conta pra mim, trouxeram também o termo literacia, que parece ser uma tradução do termo usado em inglês para letramento, literacy. No caso do PNA, o termo "letramento" foi substituído "literacia".

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Mas o que significa cada um desses termos? Quais as relações e diferenças entre eles?

Para Ana Carolina Carvalho, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, uma maneira de entender a alfabetização é como um processo pelo qual a pessoa se torna capaz de ler, de compreender um texto e de se expressar por escrito.

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O que é alfabetização, letramento e literacia?

Ilustração de Ziraldo para o livro-poema O bicho alfabeto, de Paulo Leminski

“Nesse sentido, a alfabetização é tida como um processo complexo, que envolve muito mais do que simplesmente a aquisição do sistema alfabético e muito mais do que a reprodução e a memorização, como preconizavam as cartilhas, que faziam parte de uma corrente para qual a alfabetização era simplesmente uma técnica, em que bastava memorizar e reproduzir que você já estaria apto a ler e escrever. Evidentemente, os índices baixos de crianças alfabetizadas, por exemplo, na década de 1980, quando se usava largamente a cartilha, desmentem isso”, pontua Ana Carolina.

Ela contrapõe o modelo das cartilhas à uma perspectiva atual, segundo a qual o processo de alfabetização envolve a aprendizagem de comportamentos leitores e escritores, ou seja, a experiência e os usos que se faz dessa técnica. “Isso quer dizer quer não se pode conceber a alfabetização sem que aquele que está aprendendo a ler e escrever aprenda também as ações que aqueles que leem e escrevem fazem quando participam de práticas sociais de leitura e escrita”.

De acordo com Mônica Correia Baptista, que é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da diretoria da ABAlf (Associação Brasileira de Alfabetização), alfabetização e letramento integram, complementar e indissociavelmente, o processo de aprendizagem da língua escrita. “Alfabetização é a aprendizagem do sistema alfabético e de suas convenções. Aprender as relações entre sons e letras; as regularidades e irregularidades que caracterizam o sistema alfabético-ortográfico e assim, por exemplo, saber se uma palavra se escreve com z ou com s; conhecer os nomes das letras e suas respectivas grafias são exemplos de habilidades relacionadas à alfabetização”, esclarece Mônica.

O que está em jogo quando se fala em alfabetização, letramento e literacia?

 

Segundo a professora, o letramento é a aprendizagem acerca do que se faz com esse sistema notacional. Isto é, refere-se aos usos sociais da escrita, que são múltiplos e seguem diferentes regras de acordo com o contexto, os objetivos, os participantes, os suportes etc. “Aprender, por exemplo, que não se escreve nem se lê do mesmo jeito uma nota de repúdio, um conto ou uma mensagem de WhatsApp exige que o leitor ou escritor possua conhecimentos acerca do gênero e do tipo de texto, do suporte onde será veiculado, do objetivo que se tem para a leitura ou escrita desse texto, do destinatário etc.”

Ana Carolina comenta que há quem separe esse conceito de alfabetização, sendo que o de letramento seriam as práticas sociais de leitura e escrita, e alfabetização seria a aquisição do sistema alfabético. Para ela, no entanto, alfabetizar, necessariamente, já envolve as práticas sociais de leitura e escrita. Ou seja, quando se ensina a ler e escrever, é preciso proporcionar àquele que está aprendendo que participe de práticas sociais de leitura e escrita, porque são essas práticas que vão dar sentido àquilo que se lê e escreve.

“Falando sobre letramento e alfabetização, no meu entendimento, eles estão indissociados nesse processo de alfabetização, que é bem complexo e que envolve tanto a aquisição do sistema de escrita, portanto, do sistema alfabético e como as palavras são escritas, quanto às práticas sociais de leitura e escrita”, resume Ana Carolina.

Mônica Baptista concorda. Ela argumenta que um “aspecto essencialmente importante para as professoras é compreender que, na prática pedagógica, alfabetização e letramento precisam ser contemplados de forma indissociável. Isso, de um lado, porque o aprendiz não faz essa separação e, de outro, porque um processo afeta o outro, apoiando as aprendizagens mutuamente. Por exemplo, ao participar de eventos em que a leitura e a escrita são fundamentais para as interações, crianças ou adultos não alfabetizados vão se apropriando de conhecimentos relacionados tanto ao processo de alfabetização quanto de letramento, vão, assim, aprendendo, integralmente, sobre a natureza e as funções da língua escrita em nossa cultura”.

Quais as diferenças entre alfabetização, letramento e literacia?

Ilustração de Ziraldo para o livro-poema O bicho alfabeto, de Paulo Leminski

A professora da UFMG traz ainda outro aspecto para a discussão, que é entender por que se julgou necessário formular esses dois conceitos para designar o processo de aprendizagem da língua escrita. “Vamos considerar a seguinte realidade: o Brasil tem hoje menos de 7% de analfabetos ou, dito de outra forma, nosso país possui mais de 92% da população com 15 anos ou mais alfabetizada.  A pergunta é: o que isso significa exatamente? Seria o mesmo que dizer que essas pessoas sabem escrever o nome ou que elas sabem ler e interpretar um bilhete simples? Que elas leem jornais em diferentes mídias, todos os dias e pelo menos um livro de literatura por mês ou que elas dominam algumas regras gramaticais e ortográficas?”.

Como ela explica, a separação desses dois conceitos ajuda a responder a essas perguntas, porque pouco se sabe sobre o que os mais de 92% considerados alfabetizados dominam acerca da língua escrita. Para isso, é necessário conhecer as habilidades dessas pessoas em relação ao letramento: quais textos leem e escrevem, com que frequência, para quais interlocutores, em quais suportes etc.

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E a literacia, o que é? Em que ela se diferencia dos outros termos?

Para responder a essas perguntas, Mônica Baptista afirma que é preciso retomar outro aspecto importante do surgimento do conceito de letramento. Como já dito acima, ele surge, na década de 1980, em um contexto de emergência dos sujeitos no campo das Humanidades.

“As investigações buscavam entender as diferenças e respeitá-las considerando as culturas, práticas sociais, valores, crenças que perpassam grupos e classes sociais. O conceito de letramento, que surge nesse mesmo período, considera que a apropriação e o uso da língua escrita perpassam as relações de gênero, etnia, raça, religião etc.”, contextualiza a professora.

De acordo com ela, isso significa que as professoras, para assegurar aos aprendizes seu direito de ler e escrever, precisam conhecer e considerar os diferentes usos que esses sujeitos fazem desse objeto do conhecimento, no seu cotidiano. “Cabe aqui o antológico trecho de Paulo Freire: ‘Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho’”.

Já o conceito de literacia ignora esses pressupostos e tenta reduzir o processo a um conceito estritamente técnico – o que não é possível, de acordo com Mônica. Ela cita a definição do conceito, segundo a qual a literacia “consiste no ensino e na aprendizagem das habilidades de leitura e escrita”. A grande questão, problematiza a professora, é que a complexidade que marca as relações com a cultura escrita não pode ser reduzida a meras habilidades.

Clecio Bunzen, professor da UFPE, lembra que não há neutralidade no termo literacia e em nenhum outro. Para ele e para mim também, a opção por usar essa palavra marca uma posição política e autoritária que pretende reduzir as discussões sociológicas, antropológicas, linguísticas e discursivas a uma discussão de um único campo do conhecimento: a ciência cognitiva.

Mônica Correia Baptista

 

Por que foi feita a escolha por esse termo?

Mônica Batista compilou, em sua entrevista para o Blog, seis razões que estão por trás da adoção desse termo:

1. “Para apagar os rastros de políticas públicas de alfabetização anteriores a este governo”

2. “Para isolar um campo de conhecimento e consequentemente eliminar vestígios de conquistas e avanços obtidos ao longo dos anos, graças às pesquisas, às reflexões a partir das práticas pedagógicas, reconstruções e aprofundamentos decorrentes de anos de investimentos intelectual e financeiro”

3. “Para invisibilizar as facetas históricas, sociais, políticas e culturais das investigações e das práticas pedagógicas e envergar a vara para o outro lado, das chamadas ciências da cognição”

4. “Para esconder atrás de um termo novo, um discurso conservador que falseia e omite a perspectiva de poder, de hegemonia cultural e de marcas identitárias que fundamentam qualquer processo educativo, inclusive o processo de apropriação da língua escrita”

5. “Para reduzir, através de um conceito que finge neutralidade, o processo de alfabetização à apreensão de habilidades cognitivas”

6. “Para, por meio dessa “nova” base política, epistemológica e discursiva, criar a ideia de que literacia é uma habilidade a ser transmitida e mensurada já que se trata meramente de um trabalho instrumental.”   

 

E o que pode mudar no dia a dia das escolas e dos professores com isso?

Mônica é enfática: “Sinceramente, espero que nossas professoras alfabetizadoras acreditem em si mesmas. Não sei mais de quem ouvi a seguinte história: décadas atrás, o governo francês, com a mesma ideologia do atual MEC brasileiro, decidiu impor, por meio de normativas oficiais, a obrigatoriedade do emprego de métodos fônicos para a alfabetização. Uma diretora de escola, ao ser entrevistada por uma jornalista sobre os impactos daquela medida respondeu: ‘Não vai haver nenhum impacto. Nós acreditamos nas nossas professoras’”. 

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