Política se discute, sim - e desde muito cedo

25/06/2024

Jaque, Amora, Thaís, Paula e Guta são cinco meninas com características bem diferentes, mas que também têm muito em comum. Cada uma tem suas habilidades e, juntas, elas decidem formar uma chapa e se candidatar às eleições do grêmio estudantil da escola que frequentam, a Escola Cora Coralina. Será que elas têm chance de ganhar essa? É o que os leitores vão descobrir em Vote nelas! (Escarlate, 2024), de Maísa Diniz, Renata Miwa, Carla Mayumi e Pedro Markun

Vote nelas!

Vote nelas! (Escarlate)

Mas, afinal, para que serve um grêmio estudantil? E por que cinco garotas poderiam querer participar de uma eleição na escola? Embora não seja uma realidade de todas as instituições de ensino, a existência dos grêmios estudantis está prevista até na constituição. “A escola possui por força de lei a garantia de existência dos grêmios estudantis, como consta na lei Nº 7.398, de 4 de novembro de 1985”, aponta o professor Diego Moreira, doutor e mestre em Educação, pesquisador, palestrante e autor do livro BNCC na prática: Ensino Médio (FTD), entre outros, em entrevista ao Blog da Letrinhas

Um grêmio estudantil é formado por representantes, eleitos pelos demais alunos, para serem o canal oficial de comunicação entre os estudantes e a escola. Eles organizam as demandas e promovem discussões e debates, para buscar soluções de maneira democrática, junto à direção, à coordenação e ao corpo docente. É uma forma de dar voz a todos os estudantes, de escutar e fazer valer suas opiniões, de encontrar respostas para possíveis conflitos e impasses e de exercer, desde cedo, a democracia. 

 

Grêmio estudantil e participação democrática

Segundo Diego, ainda que não haja um grêmio estudantil em funcionamento, é importante que as escolas proponham projetos de participação democrática e instâncias pelas quais os estudantes possam reivindicar suas pautas. “A gestão democrática também é uma pauta garantida por lei e, dessa forma, os gestores e professores precisam incorporá-la em sua didática e metodologia”, defende. “A Base Nacional Comum Curricular, documento norteador da educação brasileira, postula em sua 10ª competência geral: ‘Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários’. Desta forma, as escolas precisam incorporar em seus currículos o ensino e a prática de espaços democráticos que permitam o desenvolvimento de seus estudantes nesse sentido”, diz ele. 

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A escola Carandá Educação, em São Paulo (capital), é uma das instituições que tem um grêmio estudantil ativo. “Os representantes eleitos levantam as demandas e conversam conosco em busca de um espaço cada vez mais coletivo, promovendo um diálogo aberto e a busca de soluções em conjunto”, diz o site da escola. Para a diretora pedagógica Lígia Berenguel, iniciativas como esta são fundamentais, já que a política é um exercício da participação democrática, que pode e deve ser pensado desde cedo. “Isso tem a ver com se fazer presente, escutar, ser ouvido dentro de processos coletivos que envolvem decisões comuns, em prol do bem comum”, explica. “Tem a ver com a construção de uma ideia de autoridade, de saber que as mudanças são frutos de escolhas políticas, das quais as pessoas podem participar. A ideia de autonomia e do chamado à participação tem a ver com essa estrutura de governo, ou seja, como nós governamos as nossas vidas e como fazemos essas escolhas relacionadas à coletividade”, detalha. 

Seja com grêmios estudantis, seja com a criação de outros formatos que permitam que a voz dos alunos seja ouvida, abrindo canais para apresentar demandas, argumentos, fazer escolhas em grupo e para o grupo, é importante que a escola estimule a prática da democracia. “Na escola, isso acontece sempre que a criança tem oportunidades de participar de conversas em que é preciso decidir caminhos que guiem o coletivo”, aponta Ligia. Para ela, isso envolve desde onde e como organizar os brinquedos, o tempo, a rotina, as escolhas, as prioridades, a vez de quem. "Saber o momento em que a ajuda da criança é necessária para qualquer tipo de situação do cotidiano e quando ela precisa opinar. Aliás, é um outro conceito fundamental essa capacidade de opinar a respeito de tudo que envolve a organização de uma argumentação, de saber construir um pensamento, analisar em conjunto algo que estamos vivenciando, uma situação difícil, um problema do convívio...”, diz ela.

O desenvolvimento e a prátivca dessas habildiades fazem parte do exercício da política na escola, que começa muito antes de a criança sequer entender o significado dessa palavra.

 

Política antes do bê-á-bá

A política permeia todas as escolhas realizadas na escola. “Assim como na vida adulta a política faz parte de todas as decisões, desde a escolha do café da manhã até a definição sobre um projeto”, afirma o professor Diego. E isso tem início bem antes do ingresso na vida escolar. A família, lembra ele, é a primeira instituição em que a criança tem contato com a política. “E, aqui, defino política de forma ampla, conectada com todas as facetas de estrutura e organização da sociedade, o que vai desde o diálogo sobre os cuidados com o pet, a escolha do canal na TV e mesmo as posições e preferencias partidárias dos membros dessa família”, aponta.

“A organização da vida é um conjunto de decisões políticas a partir de crenças, princípios, valores, ideologias e práticas (mais ou menos coerentes). Portanto, a participação das crianças se torna um imperativo para a formação cidadã de todos os sujeitos”, Diego Moreira

Em casa, há uma relação de poder, onde os papéis sociais são definidos. Cada um tem a sua atribuição. “A organização familiar estabelece (de forma refletida ou não) um modelo de funcionamento ao qual a criança vai se adequando em seu cotidiano”, diz Diego. 

Cada família tem suas regras, que são formas de organizar a vida, decididas por quem tem o poder – em geral, os pais. Tem a hora de dormir, de acordar, o que se come no café da manhã, no almoço e no jantar, a rotina de limpeza e arrumação, o momento de brincar, quais passeios se pode fazer e quando eles acontecem, a divisão de tarefas... Conforme os filhos vão crescendo, vão sendo apresentados e inseridos nesse modo de viver. “A participação das crianças vai se aprofundando em camadas, à medida que elas compreendem as regras desse jogo”, aponta o professor Diego. Vai depender da dinâmica de cada família, mas o simples fato de pensar em formar crianças e adolescentes que sejam autônomos e produtivos na vida adulta – e começar a prepará-los para isso desde cedo – é, por si só, uma decisão política. “Estimular a participação e definir as formas e os espaços em que isso acontece é fundamental”, ressalta. 

 

O equilíbrio entre autonomia e limites

Mas atenção: ninguém disse que é fácil. Permitir e incentivar a democracia, desde a infância, exige a apuração da capacidade de escuta, de questionar e repensar a maneira como agimos, exige abertura para mudar. Por outro lado, também significa impor limites e dizer não, com coerência. Isso porque, conforme seu filho cresce, ele vai questionar regras – e, se a ideia for formar cidadãos que tenham iniciativa, tomem decisões, participem e tenham o ímpeto de promover mudanças – você vai ter de ouvir. Faz parte também da democracia, acolher e discutir opiniões e ideias diversas.

O incentivo à autonomia, desde cedo, é parte essencial nesse processo, mas é importante dizer que isso não é o mesmo que colocar cada regra ou decisão em discussão sempre e muito menos acatar ou ceder a todas as vontades dos pequenos, deixando que decidam tudo. “A criança deve ser constantemente estimulada para desejar participar e ter espaços de contraposição e negociação de estruturas de poder”, afirma o professor Diego. “Essa negociação da participação é mais complexa para os adultos do que para os pequenos”, continua. “A partir da experiência como gestor de escola e pesquisador, é possível notar a perda de percepção dos adultos sobre como lidar com essa participação de crianças e adolescentes: numa ponta, temos famílias que proíbem qualquer tipo de participação e, na outra, existem famílias que abrem para que crianças e adolescentes tomem decisões quando não têm maturidade ou não estão preparadas”, avalia.

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Ele dá um exemplo clássico: em uma manhã fria, a criança de 5 anos não quer colocar o casaco. Quem nunca passou por isso? A decisão sobre levar ou não a blusa ao sair de casa acontece pelo conhecimento do adulto. Por outro lado, impor que um adolescente vista um casaco que a mãe ache bonito, sendo que ele prefere outro, tão quentinho e confortável quanto, não faz tanto sentido. O adolescente já sabe que precisa do casaco, mas pode fazer a escolha de sua preferência, dentro das possibilidades existentes em seu guarda-roupa.  

 

É preciso ensinar a criança a tomar decisões

“Pode parecer óbvio, mas não é: os adultos precisam ensinar as crianças a tomarem decisões e a compreenderem o quanto as decisões podem ou não ter impacto no cotidiano delas. Porém, esse espaço para a tomada de decisões deve ser controlado, começando com eventos do cotidiano”, diz ele, que usa o momento de fazer a lição de casa como outro exemplo prático. Pensando em uma criança que frequenta a escola no período da manhã, os pais determinam que aquela tarefa deve ser feita no mesmo dia, ao chegar em casa, entre as 14h e as 18. “Essa criança pode ser estimulada a decidir se vai começar às 14h, às 15h ou às 16h, sabendo que essa decisão pode incluir o risco de não terminar”, aponta. Isso envolve saber qual é a lição, as dificuldades, o tempo que ela estima para resolver aqueles exercícios, entre outros fatores. “São questões simples, que o adulto pode colocar em prática e ficar atento para ajudar os pequenos a construírem sua identidade com autonomia”, sugere. Seria um risco, porém, para o desenvolvimento deixar amplamente livre a decisão de fazer ou não a tarefa de casa. “A ausência de estruturas que organizam a vida e as relações são prejudiciais”, reforça. 

Quando a criança cresce e começa a frequentar a escola, ela é apresentada a outro espaço, onde a hierarquia, a organização e a rotina são outras. “Ela se depara com regras sobre a hora de ir ao banheiro, a hora de comer, como conviver com outros alunos, quando brincar, quando é preciso se concentrar em uma atividade”, enumera o professor. Ali, ela, de novo, vai aprendendo a seguir o que é estabelecido, mas também entende quando chora ou reclama e é atendida, quando não é... Aos poucos, vai compreendendo como se fazer ouvir. 

Até que um dia, chega a uma idade em que é possível, como Amora, Jaque, Thaís, Paula e Guta, usar a união de talentos e de ideias para ampliar a própria voz e a voz dos colegas, criando um espaço em que é possível discutir regras, transformar o entorno, falar e escutar a todos que participam daquela estrutura. “Participação é organização. São nesses espaços que crianças e adolescentes desenvolvem habilidades que serão essenciais na vida adulta, como liderança, sistematização, negociação e aprendizagem em como lidar com as emoções. Os adultos são os principais responsáveis por criar e manter as estruturas que as crianças e adolescentes terão para reivindicar suas causas”, diz o professor. 

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Lígia, da Carandá Educação, concorda.

“É preciso que a comunidade convide essas crianças a tomar decisões, a fazer escolhas e a decidir por si, porque esse exercício político implica esse sentimento de participação. Essa criança começa a compreender: ‘Eu sou capaz, a minha voz importa’. Isso acontece na escola, na família e em outros núcleos públicos dos quais ela faz parte.” (Lígia Berenguel, diretora pedagógica da escola Carandá Educação) 

“Essas experiências de decisões compartilhadas, ainda que em pequenas decisões do cotidiano, serão os elementos fundadores dessa construção importantíssima, que é a compreensão da criança a respeito de seu papel social ao longo da vida. Começa na infância, mas o adulto que compreende seu papel social, a importância de cada um para o progresso e para o desenvolvimento, é aquele que desde cedo foi convidado a pensar que as suas decisões importam para um coletivo”, completa. 

Diego reforça a importância do estímulo à participação democrática, seja na escola, em casa ou em outros espaços, para que as próximas gerações "formem uma barreira contra a onda antidemocrática que varre o mundo". “A escola é um organismo vivo, dinâmico e deve ouvir seus estudantes, além de criar arquiteturas de participação, com canais amplos, que respondam eficazmente as demandas apresentadas. E mesmo que a resposta seja negativa, o estudante precisa entender as razões e contra-argumentar”, defende. 

 

Ler para entender seu papel

O professor Diego lembra ainda da importância da leitura como uma ferramenta que facilita essa compreensão. “No ambiente familiar ou no ambiente escolar, fazer a curadoria de livros que abordem essa temática [da política e da presença dela no cotidiano] é fundamental. A família e a escola precisam estimular a leitura de obras que saiam do senso comum e adentrem em temas que abordem diferentes vivências, outras culturas e civilizações, livros que retratem a história do Brasil e de suas populações, livros que abordem a diversidade”, completa. 

Vote nelas! Pode ser um ótimo começo! Selecionamos aqui mais algumas obras que podem ajudar a ampliar o diálogo sobre a importância da política e da democracia com os pequenos.

A eleição dos bichos (Companhia das Letrinhas)

André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun

A eleição dos bichos

O dia Dê (Companhia das Letrinhas)

Estevão Azevedo

Lá fora (Companhia das Letrinhas)

André Neves

Lá fora

O que é preciso para ser rei? (Pequena Zahar)

Leo Cunha e Tino Freitas

O que é preciso para ser rei?

Quem manda aqui? (Companhia das Letrinhas)

André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo, Pedro Markun

Quem manda aqui?

 

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