Em ano de eleições, o tema "política" domina as conversas fora e dentro de casa - e as crianças estão sempre com os ouvidos atentos para tudo à sua volta. O que muita gente esquece, porém, é que a palavra “política” engloba muito mais do que o voto, o governador, o deputado e o presidente. O conceito da palavra política tem origem no grego politikós, uma derivação de polis, que significa “cidade” e “tikós”, que quer dizer “bem comum”. E tudo isso tem muito a ver com as narrativas, especialmente uma bem antiga e conhecida: a fábula.
É claro que tudo é político quando vivemos em sociedade: suas escolhas de consumo, de transporte, de atuação no bairro e também as histórias que você consome e conta. E, neste sentido, a fábula é um dos tipos de história mais diretos e eficientes de fazer política, no sentido amplo da palavra. Compostas por textos curtos, geralmente protagonizados por animais ou objetos falantes, elas trazem sempre uma moral, uma lição. Surgiram muitos séculos atrás e chegam aos nossos dias em recontos, como acontece em A cozinha curiosa das fábulas (Companhia das Letrinhas), no qual Katia Canton reuniu algumas histórias famosas e uniu com receitas, ou em criações contemporâneas, como ocorre em A festa da onça (Brinque-Book), de Wilson Marques.
Ilustração do livro A cozinha curiosa das fábulas, que mistura histórias e receitas sobre os alimentos que aparecem nos textos
A origem política das fábulas
“Fábula é uma história curta, criada para ser transmitida de forma oral e para produzir uma reflexão naquele que a lê ou a ouve. Originada da palavra latina fabula, significa ‘conversa’, ‘relato’”, explica Katia. “Uma das características principais das fábulas é atribuir o poder da fala a animais, plantas, objetos e até partes do corpo, com o objetivo de transmitir exemplos sobre o que é certo ou errado e fornecer lições de moral”, diz.
“Esse gênero surgiu há muito tempo e o conteúdo serve tanto para entreter como para aconselhar. E as fábulas são inesquecíveis! Afinal, quem não se lembra da formiga trabalhadora, da cigarra descuidada ou do jabuti perseverante e cuidadoso, que venceu a lebre numa corrida?”, pontua. Segundo ela, esse tipo de narrativa, justamente por esse cunho de lição e aprendizado, sempre teve um uso muito importante na política, no sentido mais amplo de organização da sociedade e do bem comum, e também na vida social, nas mais diversas civilizações.
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A maior parte das fábulas mais conhecidas no Ocidente foi criada no século VI a.C., na Grécia antiga, por um homem escravizado chamado Esopo. Depois, vieram Fedro e Bábrio, dois intelectuais que deram continuidade à tradição de contar histórias desse tipo durante o Império Romano. Contudo, já existiam fábulas em outros lugares, bem antes disso. “Para se ter uma ideia, na Suméria, na região da Mesopotâmia, foram encontrados trechos de fábulas registrados em pequenas tábuas de argila datadas do século XVI a.C.”, diz a autora.
Histórias para deixar os nobres ocupados
Mais adiante, histórias como os contos de fada e as fábulas passaram a ter um uso político mais prático e concreto. Um exemplo significativo disso foi a atuação do rei Luís XIV, na França. Tirano e absolutista, queria governar sozinho. Não à toa, ficou conhecido pelo apelido de “rei Sol”. E, para conseguir esse objetivo, apostou muito no uso dos contos de fadas e fábulas para entreter os nobres e implantar regras. “Dizem que ele não dormia sem ouvir uma história de um servo. Ele ouvia, aproveitava e a transformava a seu favor”, diz Katia Canton.
Foi nesse contexto, por exemplo, que a versão de Cinderela escrita por Charles Perrault - um alto burguês, que adorava questões de civilidade e que também circulava pelos salões da nobreza de Luís XIV - continha uma passagem em que a princesa era elogiada por seus modos ao comer um prato de frutas usando garfo e faca. “Antes, era muito comum comer com as mãos. Mas Luís XIV queria estimular os nobres a adquirirem regras de etiqueta, como o uso de talheres, e também costumes trabalhosos de moda, como as roupas mais elaboradas, sapatos com salto e perucas. Tudo isso para mantê-los ocupados e poder ficar mais livre para governar como bem entendesse”, explica a escritora, pesquisadora e jornalista.
Fábula e política hoje
E nos dias atuais, as fábulas continuam sendo usadas de maneira política, para dar exemplos de ação e ensinar lições? “As histórias são conhecidas e recontadas sempre. Elas, inclusive, sofreram menos alterações ao longo do tempo, em comparação aos contos de fadas, por serem mais concisas”, explica a autora de A cozinha curiosa das fábulas. Ainda hoje, as crianças tiram aprendizados das histórias clássicas, como A galinha dos ovos de ouro, por exemplo, outra criação de Esopo, na Grécia. Na história, o dono de uma galinha fica perplexo ao perceber que a ave botava ovos de ouro maciço. Então, acha que dentro da galinha deve haver ainda mais metal precioso e decide abri-la. No entanto, não há ouro, e a galinha morre. Conclusão: quem muito quer nada tem.
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Esta fábula está contida no novo livro de Katia, e é acompanhada de uma receita de ovos mexidos com tomate. A proposta do livro segue o sucesso de A cozinha encantada dos contos de fadas e traz sempre uma história e uma receita que se relaciona a ela. E isso também é política! “Em tempos em que voltamos a enfrentar a insegurança alimentar, com mudanças climáticas, meio ambiente, fome, ultraprocessados, é importante convidar as crianças para a cozinha, para que entendam os alimentos, o plantio, o uso, o processo inteiro”, explica a pesquisadora. Quer uma forma mais divertida de fazer isso do que a inspiração pelas fábulas?
Juntos somos mais fortes
Apesar de muitas das histórias terem origem milenares, nem só de narrativas antigas vive o gênero. Entre os exemplos atuais está A festa da onça (Brinque-Book), de Wilson Marques, no qual um coelho é convidado por uma onça para um jantar. Esperto, ele percebe a intenção por trás do convite, de ser ele próprio o prato principal do jantar. Então, tem a ideia de convidar outros animais para a celebração: cutia, jabuti, macaco e muito mais. Juntos, mesmo pequenos e menores que a onça, eles se tornaram mais fortes - e a onça não pode fazer nada, a não ser aproveitar a festa também. É ou não é uma lição?
“Talvez a inspiração para essa história venha de algo que também me marcou muito e que tem a ver com essa ideia de união. A palavra para isso é ‘mutirão’”, explica o autor, Wilson Marques. “Ou seja, é quando as pessoas se unem para resolver o problema de uma comunidade, ou mesmo de um indivíduo que, sozinho, não resolveria ou teria muita dificuldade para resolvê-lo. Lembro de uma cena que presenciei visitando uma comunidade remanescente de quilombo, no Maranhão, onde um morador recebia a ajuda de um monte de gente, vizinhos, amigos, parentes, para construir sua casa. Mutirão é isso: a união fazendo a força, é amizade e solidariedade”, exemplifica.
Num mundo onde as pessoas estão cada dia mais voltadas para si mesmas, me parece fundamental levar essa mensagem de cooperação para todos, em especial para as crianças. Mesmo porque, alguns problemas fundamentais e urgentes, como as questões ambientais, só poderão ser resolvidas com o concurso de todos, unidos, de mãos dadas. (Wilson Marques, autor de A festa da onça)
Para o autor, esse aprendizado é importante porque há grandes questões que só poderão ser resolvidas se estivermos todos juntos. “Por exemplo, a defesa da democracia ou a proteção do meio ambiente, igualmente ameaçado. Sabemos que os seres humanos têm uma predisposição para se solidarizar em momentos trágicos. Mas precisamos estar atentos e juntos, não apenas quando o mundo desaba sobre nós, mas antes que os desastres aconteçam, a fim de evitá-los”, pontua.
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O livro tem ilustrações da artista visual indígena, Kássia Borges, que, por si só, reforça a mensagem de que precisamos estar juntos para o bem comum - e “comum” aqui, é bom reforçar, engloba todos os povos. “O fato de a Kássia Borges ser parceira dá força ao livro, voltando nosso olhar, muito oportunamente, para a questão dos povos originários, que sofrem violentamente sob a pressão das forças de mercado e da discriminação. As ilustrações dela não deixam de soar como mais um lembrete de que precisamos, também nesse quesito, unir forças contra forças destrutivas. No nosso caso, através da arte, com seu poder profundamente aglutinador”, aponta Wilson.
Novas mídias: concorrência ou estímulo?
Se antes, as fábulas e outras narrativas eram a única fonte de entretenimento e uma das poucas formas efetivas de comunicar ideias, hoje, a tradição oral e a escrita competem com vários outros formatos. As crianças têm acesso à televisão, celular, streaming. Como ficam as fábulas contemporâneas, nesse novo cenário? Para Wilson, esse tipo de história continua encantando a criança e mantendo sua popularidade.
“Talvez, tenham ganhado até mais espaço, graças às novas mídias, como celulares, tablets, etc”, arrisca. “O que mudou, pode-se se dizer, é a forma de contá-las, que precisou ser adaptada a essas novas mídias. Enfim, se lá atrás, nos tempos de Esopo, tínhamos a tradição oral, hoje temos os filmes, as séries, os desenhos animados, os jogos. E, consequentemente, para cada uma dessas mídias, novas maneiras de transmitir os conteúdos. No meu caso, insisto nos livros”, completa.