Comer é político: o que você precisa colocar no prato do seu filho além da comida

28/05/2024

Nem todo mundo pode escolher o que coloca no prato todos os dias. Aliás, há quem nemm tenha prato, nem comida para enchê-lo. No outro extremo, há uma quantidade muito menor de pessoas que não só seleciona os alimentos que chegam à própria mesa mas, de muitas maneiras, também controla o que chega ou não na mesa do restante da população. Essa história tem uma origem mais antiga do que se pode imaginar. E impacta a sociedade e a forma como ela se organiza – e se desorganiza – até hoje.

Implacáveis - Por que o mundo não é justo

Implacáveis 2 - Por que o mundo não é justo

No segundo volume da série Implacáveis, Por que o mundo não é justo (Companhia das Letrinhas, 2024), o escritor e historiador Yuval Noah Harari explica como uma revolução que aconteceu 10 mil anos atrás ainda afeta a maneira como vivemos hoje. A descoberta da agricultura e a domesticação dos animais levou os humanos a enxergarem o mundo de outra forma, com a busca pelo controle - de terras, de recursos, de animais e de outros seres humanos. Assim, surgiu a ideia de posse e poder. E com ela, vieram os latifúndios, as guerras e a criação de um estilo de vida que começou a destruir o planeta, em uma velocidade inimaginável. Milhares de anos mais tarde, aqui estamos, em um mundo onde poucos têm muito e muitos têm pouco. Sem falar na crise climática que ameaça diferentes formas de vida – incluindo, é claro, a humana.

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E o que isso tem a ver com o que você coloca no prato do seu filho? Bem, se você faz parte do seleto grupo que que pode escolher que tipo de alimento pode consumir, você tem um privilégio importante, que vem – ou, pelo menos, deveria vir – com uma boa dose de consciência. “É uma das responsabilidades de quem pode escolher o que come repensar o ato de se alimentar, tanto para garantir que todos tenham acesso à comida, como para a manutenção de nossa espécie neste planeta”, diz a nutricionista Pabyle Flauzino, autora do perfil @nutri.des.construida, no Instagram. Conversar sobre isso com as crianças, para que elas, desde cedo, se envolvam com a comida e entendam sua origem e tudo o que isso envolve é muito importante  para o presente e para o futuro.

Vamos falar sobre a nossa comida?

Antes de tudo, é preciso lembrar que falar sobre a comida é falar de uma parte da nossa própria história - e das tradições e hábitos que herdamos. Nos tempos de nossas avós, era comum compartilhar receitas em livros e cadernos feitos à mão. Para a nutricionista Pabyle, uma das consequências do estilo de vida moderno foi o afastamento das pessoas destes livros, e até da cozinha. E precisamos achar um caminho de volta, junto com essa nova geração. “Envolver as crianças com as histórias dos alimentos, desde a sua origem na alimentação humana, até a inserção deste alimento na história da família pode recuperar a sabedoria ancestral que possuímos sobre a comida", explica.  Isso pode ser feito de muitas formas, por exemplo pensando em diferentes formas de preparo de um único alimento - testando e se divertindo! - ou conduzindo uma investigação familiar: o que nossas mães e avós comiam quando eram crianças? Será que todos os alimentos eram encontrados o ano inteiro? Como - e por quem - a comida era preparada?

"Desenvolver a noção de pertencimento sobre a comida é fundamental para que a criança se sinta parte de algo maior. E este algo maior é o seu lugar no mundo enquanto 'comedor'. Esta missão é de todos, principalmente de quem formará os próximos sujeitos políticos donos das escolhas para viver em um mundo melhor”, Pabyle Flauzino, nutricionista

Para o jornalista João Peres, um dos fundadores do site O Joio e o Trigo, projeto jornalístico que investiga as relações da alimentação com a saúde e o poder, comer é um ato político, mas não individual. Deve ser visto como algo coletivo, porque tem a ver com diversas questões, como renda, desigualdade e acesso aos alimentos. “Comer é primordial para nos mantermos vivos, então, é fundamental do ponto de vista orgânico. Mas não é só isso. É também cultural e social”, reforça.

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Ele aponta que a comida e as várias questões que envolvem o tema são assuntos de uma conversa que deve ser posta à mesa desde que as crianças são pequeninas. “Com o passar do tempo, mais e mais camadas conseguimos adicionar nessas trocas”, aponta.  Ele recomenda que o assunto seja introduzido com pautas atuais como o consumo de açúcar,  os ultraprocessados ou sobre o valor que damos para a alimentação dentro do nosso contexto familiar. "Mais tarde, por volta dos 7, 8 anos, você consegue problematizar questões como o acesso à terra, como isso afeta a floresta, como afeta os animais, como afeta os nossos povos tradicionais”, aponta. Para ele, há um enorme espaço para discussão, sobretudo no Brasil contemporâneo, "em que temos evidências materiais sobre como o avanço do agronegócio, por exemplo, afetou enormemente a nossa capacidade de manter uma alimentação para a população”, pontua.

Indignação: a força que move

As crianças entendem e se engajam mais do que muitos adultos supõem. Algumas características da infância, como a curiosidade e a espontaneidade ajudam muito nessa discussão – por isso, é interessante aproveitar essa janela para abordar o tema da alimentação e todas as desigualdades ligadas a ela. “Os pequenos se apegam bastante ao conceito de justiça, por exemplo”, aponta João. “Quando você explica que outras crianças, em outros contextos, não têm acesso aos alimentos a que elas têm acesso, isso causa empatia. A relação com os animais também é muito forte, então, se você explica o que está acontecendo com as matas para dar lugar ao desmatamento e plantios de monocultura, elas entendem e ficam indignadas". Apresentar livros como Implacáveis – Por que o mundo não é justo, em que a explicação das origens dessess problemas é dada de um jeito didático e que envolve o leitor, pode despertar esse sentimento de inquietação.

“Com todo o seu esforço para controlar as plantas e os animais, os agricultores produziam cada vez mais grãos, carne e leite, e alimentavam cada vez mais filhos. Um bando de cinquenta coletores precisava de uma floresta inteira para conseguir comida. Mas se os agricultores queimassem a floresta e plantassem naquele solo trigais ou arrozais, a mesma área passava a alimentar dez povoados, de cem pessoas cada um. Os agricultores queimaram cada vez mais florestas, construíram cada vez mais povoados e expulsaram os coletores”, trecho de Implacáveis - Por que o mundo não é justo 

Alguma semelhança com as discussões de hoje sobre o agronogócios, a prevalência de monoculturas como a soja e as consequências nefastas desse arranjo para florestas e os povos originários?

Implacáveis - Por que o mundo não é justo

Em Implacáveis - Por que o mundo não é justo (Companhia das Letrinhas, 2024), a linha do tempo ilustra os principais acontecimentos que ajudaram a moldar o mundo que conhecemos - bem antes de nós

João lembra de outro ponto essencial para colocar mais lenha na discussão: crianças e adolescentes não gostam de ser enganados. “Quando percebem essa estratégia de ludibriar, de tentar fazer algo que não é bom parecer bom... Isso também pega bastante para eles”. Para os mais velhos, por exemplo, o entendimento de que um alimento que se vende como saudável pode tanto ser prejudicial à saúde humana quanto para o planeta (alô, ultraprocessados!) pode ser um bom ponto de partida para promover conversas interessantes e provocar as mudanças que tanto queremos ver.

Tudo está ligado: inclusive você e o seu prato

A nutricionista Pabyle faz um exercício lúdico para falar, por exemplo, da origem dos alimentos: “Imagine que sempre que vamos comer puxamos uma corda que traz a comida até o nosso prato. E que esta corda pode nos trazer uma comida produzida por uma máquina ou produzida por mãos humanas. As cordas são apenas uma metáfora para sinalizar que todas as nossas escolhas alimentares possuem um impacto individual, mas também, social, ambiental e político”, afirma. Para ela, mostrar para as crianças o trajeto que a comida faz até chegar à mesa, explicando como são plantados, colhidos, embalados, transportados, limpos e consumidos os alimentos, possibilita que as elas percebam as diferenças nos processos. A especialista defende que envolver os pequenos nesta dinâmica, ajuda a perceber "quais processos são mais justos, sustentáveis e saudáveis, para eles, para a família e para o planeta".

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Pabyle reforça que é preciso falar também de escolhas alimentares que ajudam a promover uma nutrição mais saudável para o nosso corpo, enquanto também são menos ameaçadores para a natureza. “Vivemos em um sistema codependente, com recursos naturais finitos, e precisamos ter este tipo de consciência”, diz ela. Um pequeno exemplo são os alimentos ultraprocessados. "Esses alimentos são ricos em aditivos químicos, que já estão associados a diversos problemas de saúde. Além disso, precisam de muito plástico para serem embalados e vendidos. O consumo diário de ultraprocessados está associado a problemas individuais e coletivos, mesmo para quem não os consome. Refletir e agir sobre o que comemos (ou não), é moldar não apenas os nossos comportamentos, mas os da comunidade, e o do sistema alimentar”, argumenta.

“Escolher alimentos que sejam o centro de um sistema alimentar saudável, que priorize a policultura, em detrimento da monocultura, que proteja a biodiversidade, o conhecimento de povos originários e a biodiversidade são apenas alguns dos exemplos de como nossas escolhas individuais impactam o planeta”, Pabyle Flauzino, nutricionista

O que podemos fazer?

Estamos diante de um mundo caótico. De um lado da balança, poucos concentram a renda, o poder e ditam as leis. Do outro, a grande massa passa fome, acumula necessidades básicas não atendidas e tem pouco poder de decisão. Enquanto isso, ao redor, o planeta vai se deteriorando, com agressões diárias ao meio ambiente. Sim, a sensação de desespero é quase paralisante. Mas precisamos promover conversas difíceis, questionar nossos hábitos, correr atrás de informações e nos responsabilizarmos por nossas escolhas para transformar esse cenário - o quanto antes.

“Os livros, as informações e as trocas, principalmente com as crianças, são fundamentais para tentarmos construir algo diferente”, diz o jornalista João Peres. “Temos essa sensação de impotência, de angústia. Mas quero me manter acreditando que às vezes as coisas acontecem mais rápido do que imaginamos", ressalta. Sabemos que as coisas não podem continuar como estão. Mas para promover mudanças é preciso conhecer as estruturas, para sabermos como e onde agir. “Há um conflito de interesses crescente entre uma sociedade que quer direito a uma vida digna e um punhado de forças econômicas e políticas que querem perpetuar um modo de vida que comprovadamente não pode continuar. Mas acredito que, se conseguirmos abrir o diálogo com cada vez mais gente, as pessoas vão ver que isso não faz sentido”, diz ele. A transformação de que precisamos para garantir que nós e o nosso planeta vamos sobreviver pode começar agora, à beira do fogão.

O que colocar no prato do seu filho - bem além da comida

Veja como pensar escolhas do dia a dia mais alinhadas com um planeta mais sustentável, que crie uma geração capaz de pensar não só na própria fome - mas de nutrir o equilíbrio do planeta:

1. Pense na sazonalidade e na origem dos alimentos - quando privilegiamos frutas, legumes e verduras da estação, maiores as chances de consumirmos itens com mais sabor, cor e que não esgotam o solo.

2. Leve a forma de produção em conta - será que este alimento foi feito com trabalho escravo? Em terras griladas? Vale dar preferência para abastecer a despensa em feiras e mercados que não pertencem a grandes redes, privilegiando os pequenos produtores. Confira também selos e certificações que garantem uma cadeia justa e ensine também as crianças a reconhecê-los - já notou nas caixas de ovos a rotulagem indicando "livres de gaiolas", por exemplo?

3. Quanto menos ultraprocessados melhor - para a sua saúde e para a saúde do planeta. Dê uma olhadinha no rótulo: quanto mais longa for a lista de ingredientes (e mesmo reconhecíveis eles forem), mais chances de ter aditivos, conservantes, espessantes... tudo o que você não quer que vá parar no seu estômago.

4. Dê preferência a orgânicos - sim, sabemos que é um privilégio poder escolher. Especialmente nas periferias, em que muitas vezes é mais barato comprar bombom e pirulito do que frutas. Mas cada vez mais há iniciativas de espaços que comercializam produtos sem agrotóxicos e direto do produtor.

5. Resgate a adapte receitas - sabe aquele nuggets que seu filho ama? Que tal trocar o de caixinha por uma versão caseira e bem mais natural? Resgate o livro de receitas da sua avó e chame as crianças para se envolverem no preparo de receitas antigas, que contam a história da família e ajudam a construir uma relação mais profunda com a comida.

6. Conversem, conversem e conversem - aproveite assuntos que podem surgir no momento das compras no supermercado, na feira, durante o preparo e consumo das refeições para responder às dúvidas das crianças sobre o tema com a maior honestidade possível. Todos nós estamos aprendendo.

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