— O que são ancestrais, Tayó?
— Eles são os nossos parentes que viveram e morreram há muito tempo e nos protegem, como bisavós, trisavós e tataravós.
Esse diálogo, entre a menina Tayó e seu amigo Kayodê, compõe uma das tirinhas do livro Tayó em quadrinhos, de Kiusam de Oliveira, ilustrado por Amora Moreira. Outro quadrinho mostra Tayó com um espelho, e garota diz que gosta de pensar nele como uma porta encantada, que a conecta com aquelas que vieram antes dela. Em outra tirinha, ela comenta com Kaoydê: “Mamãe sempre diz que as nossas ancestrais nos ensinaram que somos rainhas e reis”. Mas o que é a ancestralidade?
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A advogada e educadora social Aline Kariri Mina explica que ancestralidade “é, para mim, quem sou; é meu caminho. É quem é minha filha, é o caminho dela. São nossas antigas e antigos que abriram caminho para estarmos aqui. É o caminho e o caminhar. Ancestralidade é, assim, estrada já conhecida pelas antigas e antigos que já a trilharam e andam conosco, e é desconhecimento também, indicando que há mais o que buscar, a se aprender”.
Ela conta que sempre retoma histórias e casos da vida da Bisa Veridiana, “baiana preta”, e do bisa Antonio, de origem indígena kariri, com sua filha, conectando-os à vida e à personalidade da menina. “Dia desses ela me falou: 'é, pelo jeito, não é só no meu jeito de falar que puxei a bisa Veridiana, eu também gosto de plantas, né?'”
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Aline lembra um provérbio africano que diz: “quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. E assim entende a importância da ancestralidade, especialmente as crianças. “Saber de onde vêm para que elas não se sintam perdidas. Saber que o cabelo é uma coroa que traz inúmeras histórias, sem limite de tempos, e faz de quem o reconhece rei ou rainha faz muita diferença”.
Assim, ela ensina que a ancestralidade “é vida pulsante que junta os tempos: presente, passado e futuro. Nossa ancestralidade nos dá um mapa de tesouros: de como curar, como amar, como resistir, enfrentar, recuar”. Através desse tesouro, ela conversa com a filha sobre racismo e o quanto isso dificultou ou impossibilitou “potências de se desenvolverem, mas nem assim conseguiu tudo, porque estamos aqui em luta pela libertação de nosso povo”.
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A psicóloga e mestranda em Educação e Relações raciais Débora Medeiros de Andrade define a ancestralidade como continuidade: “é o que permanece vivo, o que se transmuta da matéria concreta para a memória e para a palavra, que é um elemento vivo, de acordo com muitas filosofias de África, como as de origem Banto ou Iorubana”.
E, como ela explica, “as crianças são continuidade e é preciso que elas aprendam a escutar, para guardar, para depois transmitir. Escutar não apenas o que lhes é dito diretamente pelas pessoas mais velhas, mas escutar a vida à sua volta, ampliar o sentido de escutar, como um verbo ativo, como perceber o mundo com sensibilidade”.
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Ancestralidade na literatura infantil
O tema tem aparecido com frequência na literatura para a infância, como revelam alguns dos últimos lançamentos da Companhia das Letrinhas e da Pequena Zahar. Além de Tayó em quadrinhos, os livros Uma aventura do Velho Baobá, de Inaldete Pinheiro de Andrade, e Ei, você! Um livro para crescer com orgulho de ser negro, de Dapo Adeola, representam a ancestralidade de maneiras diversas, mas sempre reforçando a conexão dos povos da diáspora negra àqueles que os precederam e abriram caminhos.
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Em Uma aventura do Velho Baobá, a árvore africana que dá título ao livro é uma alegoria do ancestral, que empreende uma viagem da África para encontrar e conhecer seus parentes baobás que vivem do outro lado do oceano. Sendo o baobá uma árvore que vive por milênios, que armazena água em seu tronco e que oferece alimento por meio de seus frutos, folhas e flores, ele é a representação perfeita desse ancestral que abre caminhos, acompanha e nutre sua descendência no corpo e na alma.
O mar levaria Velho Baobá de volta para de onde veio, deixando aos parentes a mensagem de ânimo para resistirem às tempestades, ao fogo, às barreiras e à falta de proteção, aprofundando bem suas raízes sem nunca se esquecer das terras de lá.
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Além disso, o livro foi ilustrado com a técnica da geotinta pela artista recifense Ianah Maia. Ela explicou ao Blog que, além de ser uma técnica ancestral, utilizada desde as pinturas rupestres por povos tradicionais e povos indígenas, “nas religiões de matriz africana se considera que os ancestrais estão na terra, no solo”, o que confere mais uma camada de significação à narrativa visual do livro.
O livro Ei, você! Um livro para crescer com orgulho de ser negro, do britânico Dapo Adeola, que é um manual sensível de boas-vindas e de empoderamento, celebra a importância da força ancestral e das grandes personalidades negras da história como forma de fortalecer e dizer às crianças e pessoas negras que elas nunca estão sozinhas.
Você encontrará as hitsórias certas para viver. Histórias repletas de conhecimentos e sabedoria daqueles que vieram antes de você. Eles construíram seus próprios percursos e ainda iluminam o caminho para todos nós... e assim, mesmo quando percorremos lugares estranhos, sabemos que nunca estamos sozinhos
Ilustração de Nicole Miles, artista das Bahamas, para o livro Ei, você!
Débora Medeiros argumenta que a literatura infantil pode ser um rico veículo de manutenção da transmissão de ideias, valores e história dos ancestrais. “É um jeito de mantê-los vivos e que as crianças aprendam sobre si e sobre o mundo”. Ela afirma ainda que todas as manifestações culturais com origem em matriz africana e indígena guardam em si elementos de ancestralidade: “a roda de capoeira, de jongo, o maracatu, os candomblés, o samba, a contação de histórias da avó enquanto entrança os cabelos de sua neta.... Tudo isso é a ancestralidade viva”.
Para Aline Kariri Mina, “cada livro infantil afro-referenciado de fato reforça pontos da nossa cultura, ciência, espiritualidade (que caminha junto com tudo) e potencializa a autoestima, o amor pelo povo, por nossa ancestralidade. Porque nosso povo tem história, e ela começa muito antes da escravização”.