Era uma segunda-feira de abril quando a população de Embu das Artes – a 30 quilômetros da capital paulista – se reuniu em cortejo para entoar um adeus coletivo para Raquel Trindade (1936-2018), aquela que transformou a cidade em expoente da cultura popular negra no país. Artista plástica, coreógrafa, folclorista, ativista, escritora, professora e guardiã de conhecimentos e tradições afro-brasileiras, considerada uma das maiores griots do Brasil, Raquel ganha agora as páginas de um livro infantojuvenil. Pelas mãos da escritora Sonia Rosa, o livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda, da Pequena Zahar, conta para as crianças em primeira pessoa, como se fosse Raquel a escrever, quem foi essa conhecedora e transmissora dos saberes ancestrais.
Percorrendo as memórias da artista Raquel Trindade – mais conhecida como Rainha Kambinda – o livro de Sonia Rosa convida o leitor a conhecer sua trajetória de luta pela representatividade
Filha do poeta, folclorista e cineasta Solano Trindade e da terapeuta ocupacional e coreógrafa Maria Margarida Trindade, Raquel fundou, em 1975, o Teatro Popular Solano Trindade, em Embu das Artes. A iniciativa é apenas um dentre os muitos passos de Raquel para manter viva a herança da família. Em 1950, o pai havia criado o Teatro Popular Brasileiro, no Rio de Janeiro, em parceria com Maria Margarida e o amigo e pesquisador Edson Carneiro. Mas, mais que manter a herança da família, sua atuação deixou marcas profundas para a promoção da cultura negra e popular. E seu nome – e seu apelido, Rainha Kambinda, por causa do grupo Maracatu Nação Kambinda, que fundou em 2008 – ficará para sempre como um dos grandes símbolos de nossa cultura.
É por isso que, naquele ano de 2018, durante o velório público que seguiu em procissão pela cidade, os cânticos de despedida conduzidos pelo seu filho, o compositor e percussionista Vitor da Trindade, já antecipavam que a história de sua mãe e a contribuição cultural construída por ela teriam como destino a eternidade. Em frente à Escola Municipal José Arnaldo Mellone, um cartaz feito pelas crianças anunciava: "Raquel, você encantou Embu, agora vai encantar o céu".
Vitor, o primogênito dos três filhos de Raquel, foi também o elo que uniu a trajetória de sua família à dessa outra artista e ativista brasileira, Sonia Rosa. Quando eram adolescentes, Sonia e Vitor ficaram amigos, uma amizade que se estendeu a toda família Trindade, um núcleo de ativismo e expressão pela arte.
Na biografia ilustrada Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda, Sonia desvela a vida profissional, familiar e social de um símbolo da cultura brasileira, com a particularidade de quem viveu o seu impacto de perto. Para ela, contar quem foi a Rainha Kambinda para as novas gerações é uma forma não só de zelar por um patrimônio público, mas também de transformar o seu luto íntimo em uma declaração de amor coletiva. “O livro nasceu do fundo do meu coração e das minhas saudades”, conta Sonia.
Raquel Trindade: “Minha arte é fruto da insubordinação”
É o que dizia Raquel Trindade, na voz narrada pelo livro de Sonia Rosa. Além da paixão pela palavra e pelo fazer artístico, as duas artistas têm em comum a missão de fazer desses elementos um instrumento para a transformação da sociedade. Enquanto Trindade teve como berço o Recife dos anos 1930 e 40, Rosa nasceu no Rio de Janeiro dos anos 1960.
As décadas que separam as duas artistas são em si um testemunho do quanto as expressões artísticas e autorias negras na cultura brasileira alcançaram novos patamares ao longo da evolução histórica. “É preciso estudar sobre negritude, branquitude, pacto narcísico, empoderamento da pessoa negra; sobre a complexidade e simplicidade das cotas, e sobre a resistência dos quilombos e a luta dos negros para uma sociedade que os respeite em suas potências e subjetividades. O desconhecimento sobre a temática tem resultados desastrosos”, defende Rosa.
Não por acaso, a autora se preocupou em narrar, com fidelidade afetiva, o histórico familiar da artista, e assim oferecer aos leitores a dimensão do que sua atuação significava para o percurso de valorização de ancestralidades e a transmissão oral de saberes.
Identidade, educação antirracista e letramento racial
A importância do nome para as identidades e subjetividades negras está presente na obra de Rosa desde o seu título, revelando o apelido de Raquel. “Sou a Rainha Kambinda, aquela que é sempre bem-vinda. Esse título de realeza quem me revelou foi o tambor. Toda gente sabe que o toque do tambor conta segredos”, diz o livro, que é todo narrado em musicalidade e rima.
Hoje, Rosa é consultora de letramento racial em escolas do Rio de Janeiro, dedicando-se à "literatura negro-afetiva para crianças e jovens", nomenclatura que ela criou para conceituar sua produção literária e reforçar a luta por uma educação antirracista, contra os silenciamentos de vozes negras ao longo da História.
Para mim, o nome identifica e anuncia. Por isso, minha obra é repleta de nomes. No caso dos heróis e das heroínas negras, sempre destaco os nomes na capa como forma de acolhimento e desconstrução dos apagamentos históricos. (Sonia Rosa, escritora)
Confira a entrevista completa com a escritora Sonia Rosa!
Quando e como aconteceu o seu contato com a obra de Raquel Trindade?
Sonia Rosa – Aconteceu no final da infância, início da adolescência, quando conheci o Vitor Trindade, filho da Raquel. Ficamos amigos e então fui conhecendo os outros membros da família. A grande artista Raquel Trindade, Dona Margarida, sua avó, e suas irmãs, Regina e Dadá. Junto de cada um, toda uma história bonita fundada na arte.
Como surgiu a ideia de apresentá-la em um livro para crianças? E como chegou ao formato biografia ilustrada?
Sonia Rosa – Foi num repente. Um dia, eu estava pensando com tristeza na partida dela. E no quanto Raquel Trindade foi querida e respeitada, uma mulher negra muito à frente de seu tempo.
Ela trilhou uma trajetória ímpar construída na ousada poesia do bem viver, com criatividade e magia. (Sonia Rosa, escritora)
Então, resolvi compartilhar em livro o precioso legado de Raquel Trindade. Uma heroína negra inesquecível. A primeira pessoa que soube dessa minha ideia foi o Vitor. Liguei para ele e compartilhei esse desejo, que nasceu do fundo do meu coração e das minhas saudades.
Como você fez para acessar as informações da vida e obra de Raquel?
Sonia Rosa – Fiz uma pesquisa pautada no afeto e na história vivida. Acessei minha memória afetiva e lá estava Raquel, cheia de sabedoria. Estive diversas vezes na casa dela no Embu. Era uma casa acolhedora, que tinha um teatro popular no quintal, eu achava aquilo o máximo!
Para o texto, conversei muito com Vitor, lembrei da convivência que tivemos quando era jovem e ela, mais velha, quase uma tia minha. Com sua voz calma, ela ia me ensinando coisas da vida que trago no meu peito até hoje.
Acessei também algumas entrevistas na internet que me ajudaram bastante na construção do texto. Optei por uma linguagem leve, musical e convidativa para abraçar o jovem leitor. Tive a intenção de apresentar o universo de Raquel e os caminhos traçados por ela, regados com sua força, coragem, ousadia e perseverança.
Eu quis reforçar no livro a sua dedicação incansável pela valorização do povo preto. (Sonia Rosa, escritora)
No livro, Raquel é apresentada como “uma ativista da pluralidade artística”. Diante de uma artista que circula por tantos segmentos, como foi ter de escolher uma maneira de narrá-la? E como a música atravessa todos esses fazeres?
Sonia Rosa – Foi uma escolha pelo ritmo. Pela sonoridade. Pelo força do tambor, que sempre conta segredos. Pela cadência do texto que é embalante. Um convite a uma dança que cada um dança do seu jeito. É uma história oralizada. Como uma cantiga de ninar, de entrelaçar, que faz o leitor viajar ao som do batuque.
A narração em primeira pessoa evidencia a relação do trabalho de Raquel Trindade com a sua própria trajetória enquanto artista e ativista do livro? Como você vê a conexão entre os dois universos, e por que escolheu contar a história dessa forma?
Sonia Rosa – A verdade é que me sinto muito conectada com Raquel. Ela tem um compromisso com “seu povo preto”. Meus textos também visam o fortalecimento das identidades negras. Tenho muita alegria em escrever sobre vidas negras, heróis, heroínas, pessoas comuns e suas potências. Sou uma mulher negra crescida numa família negra na qual muitas histórias que ouvi nunca encontrei em livros.
Minha mãe me contava muitas histórias de vida, de superação, de amor, de solidariedade, de coragem, de partidas e chegadas. Todo esse material se tornou ingrediente precioso para a minha vida e importante para minha escrita literária. Meus textos têm essa marca de oralidade, que aprendi dentro de casa, e que é facilmente identificável. Tenho muito orgulho disso.
Trabalho com o protagonismo negro. E sempre apresento os meus personagens usando de “sua própria palavra”. Em primeira pessoa e com seu jeito próprio de se anunciar. (Sonia Rosa, escritora)
É importante a gente lembrar, e nunca esquecer, que durante séculos a pessoa negra foi apresentada por narradores em terceira pessoa. Como se não tivesse voz própria e/ou história pra contar. Quando escrevo, gosto que meus personagens se apropriem de sua própria palavra. Esse é o meu estilo de contar histórias, de forma simples, com palavras do cotidiano e repletas do desejo de apresentar aos leitores outras histórias, ampliando seu conhecimento de mundo.
Sobre sua experiência em letramento racial nas escolas, qual a importância de um livro como este para a educação antirracista no Brasil e para a ampliação de repertórios de culturas negras?
Sonia Rosa – Acredito, fundamentada em estudos e experiências, que o livro de literatura compartilha ideias, amplia conhecimento de mundo e aguça nossa criticidade. O livro forma mentalidades. Durante muito tempo, os livros de literatura para crianças reforçaram estereótipos que contribuíam para uma forma única de pensar e conviver, baseada em uma concepção “embranquecida” do viver.
Com a efetivação da Lei 10.639/2003, que colocou como pauta em todas as escolas brasileiras a valorização das histórias negras, sua força e resistência, houve uma mudança significativa no mercado editorial. Desde então, estamos vivendo essa desconstrução (infelizmente, ainda muito vagarosa) por meio de variadas histórias escritas e/ou contadas sobre afrobrasileiros. Isso tem permitido ampliar percepções, na perspectiva de uma educação antirracista.
É importante ressaltar que muitos autores negros não esperaram “uma lei” para falar do protagonismo negro. Eu mesma, desde o meu primeiro livro, lançado em 1995, já apresentava um personagem negro protagonista, contribuindo assim, há quase trinta anos, para a ampliação do espaço das histórias negras, tão necessárias e dos consequentes repertórios de cultura negra. O livro da Raquel Trindade, a Rainha Kambinda, chega para fortalecer esse repertório. Tenho muita alegria com isso.
O livro infantil de qualidade, com personagens e temas negros, contribui pra o letramento racial, dentro e fora da escola, e é um grande aliado para uma educação antirracista. (Sonia Rosa, escritora)
Baseado nessa premissa, visito muitas escolas pelo Brasil afora, falando desses assuntos tão urgentes para nossa sociedade atual.
Um dos dados biográficos inspiradores de Raquel é sua atuação como professora acadêmica, mesmo sem ter um diploma universitário. Como você vê a conexão subversiva que ela fazia entre a potência dos saberes orais e o conhecimento formal?
Sonia Rosa – A sabedoria (essa de que estamos falando aqui) não é algo que encontramos com facilidade na vida acadêmica. Saberes sim. Muitos saberes. Mas “Sabedoria” é uma outra coisa. São saberes orais, tradicionais que foram repassados de geração a geração ao longo da criação do mundo e conectados com o nascimento e a morte, com o meio ambiente, com a natureza em geral.
Raquel, com sua sensibilidade, sabia fazer muito bem essa ponte, e dialogava com o mundo acadêmico sem perder seu lugar de fala por meio da oralidade, e discutia com suas turmas temas ancestrais, tendo a arte como a base do existir, coexistir, resistir.
A ancestralidade e o candomblé também estão presentes no livro, considerando que Raquel se inspirou nos pais e na conexão com os guias espirituais para construir sua trajetória. Como histórias como essas que você conta no livro ajudam a romper preconceitos religiosos?
Sonia Rosa – Histórias que ressaltam a religiosidade de matriz africana criam uma atmosfera de aprendizagem para quem lê. São ensinamentos filosóficos e pedagógicos pautados em uma visão africana, não eurocêntrica. E, por conta disso, geram muitas aprendizagens. Os guias espirituais, os orixás, os ancestrais fortalecem as existências e ajudam na caminhada. A apresentação desses elementos religiosos dentro do texto pode confrontar “formas únicas de se pensar o divino” e pode gerar desconforto, mas também possibilita ampliar conhecimento e fortalecer a tolerância religiosa pela oportunidade de contato com a diversidade religiosa. Muitas vezes, essa é a única experiência que o leitor tem. Daí a importância de cada vez mais livros que abordem naturalmente os temas religiosos.
Há mais de dez bibliotecas batizadas com seu nome, e este livro traz justamente a dimensão do nome para o título. Foi uma escolha intencional? Qual a importância do nome – e do gesto de nomear – em uma sociedade com tantos apagamentos históricos?
Sonia Rosa – A generosidade das escolas em batizar suas bibliotecas escolares com meu nome me deixou muito emocionada. Nem nos melhores sonhos da minha vida considerei que isso pudesse acontecer. Tenho muita alegria de ter recebido presentes tão especiais. Valorizo muito o nome de cada pessoa – na vida e nos livros. Teve uma época em que presenteei todos os meus sobrinhos com placas de nomes. Para mim, o nome identifica e anuncia. Por isso, minha obra é repleta de nomes. No caso dos heróis e das heroínas negras, sempre destaco os nomes na capa como forma de acolhimento e desconstrução dos apagamentos históricos. Isso aconteceu com o livro de Raquel Trindade, que em primeira pessoa nos conta sua própria história, até o seu encantamento.
As crianças de hoje têm mais possibilidade de acessar narrativas diversas nos livros do que tinham na sua época enquanto pequena leitora. O que falta para uma literatura infantil verdadeiramente plural?
Sonia Rosa – Na minha opinião, isso passa pelo letramento racial do mundo editorial. Que cada editora tenha em seu grupo de gestores pessoas que entendam a racialidade como algo presente em nossa sociedade, considerando de que formas o racismo atinge a todos nós, leitores e produtores de livros. E que deve se ter uma atenção especialíssima ao que se coloca no mercado para nunca magoar as infâncias.
Todas as crianças precisam ser respeitadas em textos e imagens. Quanto mais livros com diversidade, melhor a sociedade fica. (Sonia Rosa, escritora)
Uma criança negra, quando se vê representada de forma positiva em um livro, fica muito feliz e se sente valorizada em sua identidade. A criança não negra amplia seu conhecimento de mundo e desenvolve empatia com a diferença. É preciso estudar sobre negritude, branquitude, pacto narcísico, empoderamento da pessoa negra, a complexidade e simplicidade das cotas, a resistência dos quilombos e a luta dos negros para uma sociedade que o respeite em suas potências e subjetividades. O desconhecimento sobre a temática tem resultados desastrosos. Lembrar que ser antirracista é muito contemporâneo.
(Texto de Renata Penzani)