Se a multiculturalidade, a diversidade e a coexistência de diferenças de toda ordem – étnicas, religiosas, regionais, de gêneros, entre tantas outras – determinam os novos paradigmas da sociedade, toda essa multiplicidade deve permear as práticas e a experiência da leitura na escola, parte essencial dessa realidade. Esta foi uma das reflexões que deram o tom da mesa de abertura da Jornada Pedagógica 2022, “Literatura e educação: direito de todos”, com a participação dos professores e pesquisadores Ana Crelia Dias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Rosenilton de Oliveira, da Faculdade de Educação da USP. Eles abriram a série de encontros cujo tema central é “Percursos de leitura na escola e transversalidade: literatura e diversidade”, com transmissões pelo YouTube e interpretação em libras. Confira abaixo os pontos principais e destaques do debate.
“Felizmente, sobretudo nesse momento, parece que entramos finalmente no século 21. Estamos rompendo de vez com a ideia de centralidade, de uma única perspectiva. Isso produz muitos desafios. Não há mais espaço para imposição de um grupo sobre o outro. O outro tem tanto direito de existir quanto eu posso existir”, disse Rosenilton, que é doutor em antropologia social e especialista em gestão escolar.
Os professores Ana Crelia Dias e Rosenilton de Oliveira, convidados da mesa inaugural da Jornada Pedagógica 2022
“O que significa diversidade para tantos? Tratar de diversidade é tratar de direitos humanos. E há uma série de questões e novas epistemologias que também estão sendo indicadas por novos leitores, que não estão ‘engolindo’ o que ‘engolíamos’ nas escolas. Os autores negros, por exemplo, nós estamos descobrindo agora graças aos movimentos sociais”, afirmou Ana Crelia, que é especialista em literatura infantil e juvenil.
Educação emancipatória
Sobre a educação e a leitura como direitos dos cidadãos e dever do Estado, conforme o artigo 206 da Constituição de 1988, Rosenilton também lembrou da importância dos artigos 215 e 216, que tratam da diversidade do patrimônio cultural brasileiro e de acessar saberes e fazeres produzidos por todos os povos que constituem o Brasil.
“A sociedade brasileira é multicultural e diversa a partir do encontro de grandes grupos populacionais de três continentes, ou seja, os indígenas, os europeus e os africanos. A relação entre esses grupos foi extremamente complexa e marcada pelo elemento da violência. É essa estrutura de violência que atravessa o imaginário e produz o que chamamos de Brasil. No processo da nossa escola, há atravessamentos que vão demarcando poder e exclusão. Classe, cor, raça, região, gênero, religião. Tudo o que está na sociedade está na escola. Por isso é tão importante pensar numa educação que seja mais emancipatória”, disse Rosenilton, lembrando que o currículo escolar ficou estruturalmente eurocentrado por colocar historicamente as produções culturais da Europa no centro das atenções e tratar as outras como secundárias.
“Nesse currículo, o sujeito branco é a norma e os outros são exceção. Quando a gente fala das monarquias, o referencial são as princesas da Disney. Não há comparabilidade entre a monarquia europeia e a africana. Pensar nos sujeitos negros e indígenas que estão produzindo textos, por exemplo, é pensar em outras éticas, outras epistemologias, outras compreensões da realidade que devem estar presentes na escola", afirmou o professor.
É fundamental trabalhar com histórias universais em que a personagem principal é uma criança negra, uma criança indígena. E elas podem ser pessoas com deficiência, sem deficiência. Estamos falando de um público composto por várias marcações identitárias, daí a importância de incluir as várias formas de ser do humano.
(Rosenilton de Oliveira, professor e antropólogo)
Direito à leitura, direito de todos
“O que significa esse direito? Direito a quais literaturas? O que significa direito de todos?”, questionou a professora Ana Crelia ao citar o texto “O direito à literatura”, escrito nos anos de 1980 – há mais de três décadas, portanto – pelo crítico e professor Antonio Candido [1918-2017] e que se transformou em referência nas discussões sobre o tema. Entre outros pontos, Ana lembrou que direito pressupõe equalização, que não se pode pensar em direitos humanos considerando recortes de classes sociais e que, no Brasil, as políticas públicas de acervo estão longe de ser uma garantia de acesso.
Ao tratar da experiência de leitura nos anos de formação escolar, Ana lembrou que esteticamente a literatura já quis se afastar da pedagogia e por isso é tão importante, nas escolas, ter claros os limites entre informar e tratar literariamente. A partir dessa premissa, a pesquisadora destaca três linhas de produção de obras para crianças e adolescentes – os livros informativos, os paradidáticos ou parainformativos e os livros literários.
Nem todo livro para crianças e jovens é literatura. Ser literária ou não não é o que imprime qualidade à obra. O que imprime qualidade é a autenticidade, a originalidade dentro do objetivo que ela se propõe.
(Ana Crelia Dias, professora e pesquisadora)
Livros informativos, paradidáticos e literários
“Quando o texto é informativo, o objetivo é informar, trazer as questões para aprofundar o debate. É diferente de um livro didático, que está comprometido com um conteúdo programático. O livro informativo tem outras peculiaridades como a atitude investigativa que ele suscita, o aprofundamento da menção do conteúdo didático, as informações de diferentes fontes. Livros informativos têm que trabalhar dentro do registro de autenticidade, originalidade, fidelidade em relação a fontes, sem fake news, por isso devem ter seu lugar na escola”, diz Ana, que citou Tudo sobre Anne (Companhia das Letrinhas), como exemplo de um livro informativo. “Traz informações que extrapolam Anne como personagens de si mesma em seu diário”, disse. “Ao contrário do que pensamos, livros informativos se diferenciam dos didáticos e são muito importantes para as crianças.” Ela também lembrou da importância e da responsabilidade do mercado editorial no sistema de acesso a livros de qualidade.
Os livros que Ana identifica como paradidáticos ou parainformativos propõem uma temática a discutir. Neles, há um paridade entre a informação e fabulação e a narrativa está a serviço dessa discussão temática. A literatura aparece como um veículo a ser conduzido. Como exemplo, ela citou Valentes – Histórias de pessoas refugiadas no Brasil (Seguinte), de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza. “Não deixaria na categoria dos informativos porque as autoras, que fizeram uma pesquisa intensa, entrevistam refugiadas e criam narrativas das pessoas. Ao criar essas narrativas, elas se apropriam do território literário como se fossem minibiografias”, diz Ana, que leu trechos da obra.
Sobre os livros literários, Ana Crelia lembra que o compromisso com a temática nem sempre está exposto no primeiro plano. O texto literário é multisignificante e faz emergirem muitos temas, que podem variar a cada leitura. O literário tem camadas que vão sendo atualizadas com as leituras, como acontece, diz Ana, em Eu sou uma noz (Escarlate), da autora espanhola Beatriz Ozés, em que uma criança refugiada declara, diante de um juiz, ser uma noz. “Em literatura não importa apenas o que se diz, mas como se diz”, afirmou Ana, destacando a importância de crianças, jovens, professores e educadores acessarem a leitura.
Confira a íntegra das participações dos professores no vídeo abaixo.