Literatura e educação integral

26/05/2022

Com a leitura superinspirada do texto Para Maria da Graça, do livro O amor acaba, de Paulo Mendes Campos (1922-1991) – escritor mineiro que ajudou a dar prestígio à crônica e cujo centenário de nascimento é comemorado em 2022 –, o terceiro dia da Jornada Pedagógica ganhou ares poéticos na voz da professora e especialista em educação Ana Carolina Carvalho, formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá. Convidada para falar sobre “A literatura e a formação integral da criança: educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental”, ela dividiu a mesa com Érica de Faria Dutra, professora de cursos de pedagogia e pós-graduação em literatura para crianças e jovens e formadora de professores e gestores do Instituto Avisa Lá.

Jornada Pedagógica 2022, mesa de abertura do dia 25 de maio

As professoras Ana Carolina Carvalho e Érica de Faria Dutra falaram dos percursos e situações de leitura como experiência determinante para educação integral

 

“É curioso como Paulo Mendes Campos usa a história de Alice para falar sobre a vida, que deve ser pensada de modo profundo quando falamos em uma formação integral. Tradicionalmente, a educação se ocupou com uma dimensão cognitiva, intelectual. Pensar em formação integral significa ter atenção à totalidade do sujeito, não só ao que ele pensa. É estar atento ao sujeito e a tudo que o compõe – um corpo, uma história, um sentimento, uma identidade, suas referências. A educação integral olha para a singularidade de cada criança”, afirma Ana Carolina, lembrando que, a exemplo do que disse o escritor Bartolomeu Campos de Queiroz [1944-2012], o livro, o texto de literatura sempre nos escuta atenciosamente. “Não se trata de usar a literatura como a algo a ensinar. Mas de oferecer uma experiência com textos literários de qualidade”, diz Ana Carolina.

O lugar da representação das diferenças

Citando uma entrevista do cientista social e pesquisador Miguel Arroyo, um dos grandes defensores da educação integral nas políticas de educação do Brasil, as professoras lembraram que articular as dimensões do desenvolvimento integral “assegura que crianças e jovens sejam vistos como sujeitos totais: sujeitos de conhecimento, de cultura, de valores, de ética, identidades, memória, imaginação”, como disse o pesquisador.  “Outro aspecto importante que devemos considerar tem a ver com os muros da escola – uma formação ou educação integral dialoga com o entorno, com o mundo, com a vida lá fora”, de acordo com Arroyo.

Nesse sentido, segundo Érica, a escola deve propor diversidade para ajudar a entender “quem eu sou no mundo e quem é outro”. “Quem são seus autores preferidos? Que referências tenho de autoras e autores negros, indígenas, autores que saem do lugar do centro, das referências europeias que estão na escola? Que imagem vem a sua cabeça quando pensa numa princesa? E quando pensa num príncipe? E como modificar e sair do padrão Disney? A diversidade de representar as diferenças é fundamental para formar leitores mais empáticos, mais críticos”, disse Érica, citando outro trecho da crônica de Mendes Campo. “Gostas de gatos? Experimenta o ponto de vista do rato.”

Palestra durante a Jornada Pedagógica 2022

Bons livros, boas histórias, temas variados e pouco óbvios, adultos disponíveis e interessados em assumir riscos, lugar para palavra, curiosidades, espaço do silêncio e da escuta, confiança na inteligência das crianças, a comunidade e a possibilidade de estabelecer relações de pensamento com os outros, conforme relacionou a educadora argentina Maria Emilia López, segundo Ana Carolina e Érica, são aspectos importantes quando a leitura e a literatura são percebidas como uma possibilidade de acolhimento para as crianças nos anos iniciais do ensino.

A conversa como “coração da leitura”

Capa do livro O lenço branco 

Entre os muitos momentos emocionantes conduzidos pelas professoras – que demonstraram, na prática, a leitura da literatura como uma experiência a ser compartilhada –, as transcrições de diálogos com alunos em rodas de leitura de títulos como O lenço branco, de Viorel Boldis,  e Lá e aqui, de Odilon Moraes e Carolyna Moreira, ambos do catálogo da Pequena Zahar, revelam a importância das conversas de leitores, do papel do mediador e da formação de professores-leitores. 

Capa do livro Lá e aqui, de Carolina Moreyra e Odilon Moraes

As rodas de leitores, segundo as professoras, reforçam o entendimento da conversa como “o coração” da leitura. “É preciso dedicar tempo para que isso aconteça. O tempo da leitura, o tempo da conversa. E entender como isso é um conteúdo escolar”, disse Érica.

Muitas vezes a escola, a instituição, acredita que depois de uma leitura deve haver uma atividade que deixa um vestígio, geralmente escrito. E há muita coisa sendo construída nas rodas de leitura.

(Érica de Faria Dutra, professora e pedagoga)

Ao ressaltar que o conteúdo para um currículo literário é tarefa e responsabilidade coletivas, de toda a escola, entre professores e gestores, Ana e Érica indicaram questões importantes que devem ser levadas em consideração na definição dos livros que serão utilizados. “Que leitor se quer formar? Como constituir uma comunidade de leitores na escola considerando percursos singulares e coletivos? O que as crianças aprendem quando participam de situações de leitura literária? Quais práticas de leitura serão desenvolvidas em cada ano da escolaridade? Quais livros serão escolhidos pensando na diversidade, continuidade e progressão?”

“A nossa defesa é da diversidade em relação ao acervo do que se pode ler. Olhar para trajetos singulares de leitura é olhar para a diversidade de leitores. Quando entramos em contato com o bom texto não é qualquer texto que serve. Os bons textos promovem a identificação com o que identifico e com o que é o outro. A boa literatura me ajuda a circular entre o me familiar e o outro”, afirmou Ana Carolina.

Confira a íntegra com a apresentação das professoras Ana Carolina Carvalho e Érica de Faria Dutra

 

 

A diversidade nas práticas de leitura

Espaço para compartilhar experiências relacionadas ao ambiente escolar, a mesa “Práticas de leitura literária e diversidade na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental” evidenciou o trabalho admirável das educadoras Larisse Moraes, no Rio Grande do Sul, Juliana Mutafi, em São Paulo, e Cris Coelho, na Bahia.

Mãe de Thiago e professora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint’Hilaireno bairro Lomba do Pinheiro, na zona leste de Porto Alegre, Lari é uma entusiasta e ativista da educação antirracista, que pratica cotidianamente como idealizadora e coordenadora do projeto “Afroafetivos: solte o cabelo, prenda o preconceito”. O alcance da iniciativa tem ultrapassado fronteiras e, entre outras, já publicou três livros produzidos por alunos.

Jornada Pedagógica 2022 do dia 25 de maio, mesa 2

 

“A partir do momento que as crianças têm contato com a representação e a representatividade, isso mexe com a autoestima e elas começam a produzir”, disse Lari, que fez um depoimento tocante ao relacionar as descobertas, na leitura e na literatura, da comunidade no entorno da escola e dos alunos, em rodas de leituras com escritores, além das parcerias viabilizadas a partir de ações transformadoras em que os alunos conseguem, afinal, se ver como protagonistas das próprias histórias.

Pedagoga com pós-graduação em gestão escolar e chefe da divisão de leitura e literatura na Secretaria Municipal de Cultura de Mogi da Cruzes, além de pesquisadora no grupo “A voz escrita infantil e juvenil: práticas discursivas”, Juliana Mutafi destacou a bibliodiversidade, termo usado a partir da década de 1990, ao definir a criação de repertórios e acervos que levam em consideração, nos anos iniciais do ensino, aspectos distintos como materialidade, processos artísticos diferentes, diversidade autoral, personagens únicos, diversidade editorial e múltiplas ilustrações. E de como essa é uma questão essencial para políticas públicas e de formação na definição das obras que serão trabalhadas nas escolas.

“A escuta e o olhar atento são essenciais para perceber as crianças e seus potenciais, inclusive o seu silêncio. É preciso conectar nossos olhos e nossos ouvidos ao coração”, disse Cris Coelho, que é pedagoga e diretora da Escolinha Afro-brasileira Maria Felipa, sobre a qual ela falou. “Buscamos uma perspectiva descolonizada de educação, que não omita os saberes tidos socialmente como hegemônicos, mas que também dê voz a outras narrativas desprivilegiadas e, por vezes, apagadas da nossa construção sócio-histórica”.

Confira a íntegra dos depoimentos das professoras Cris Coelho, Juliana Mutafi e Larisse Moraes

 

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