Uma reflexão sobre a literatura no contexto escolar levando em consideração as leis que tratam da obrigatoriedade da inserção da história e da cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial da rede de ensino (leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008) foi o ponto de partida para a participação da editora Débora Alves, do Grupo Companhia das Letras, no segundo dia da Jornada Pedagógica 2022. Mestra em filosofia pela Universidade de São Paulo e especialista em alfabetização, Débora fez um painel memorável sobre os aspectos que envolvem a literatura afro-brasileira, uma das conceituações possíveis, como explicou, para identificar a produção de autores brasileiros negros. Além de sugerir abordagens do tema no ambiente escolar, ela lembrou que o assunto inclui a discussão sobre a desumanização que vem com o racismo e, citando o crítico Antonio Cândido, com a “cota de humanidade” que a literatura pode desenvolver em cada um.
A editora Débora Alves apresentou, entre outras questões, os aspectos relacionados à literatura produzida por autores negros no Brasil
Para pensar sobre a Lei nº 10.639/2003, resultado de esforços de grupos da sociedade visando a inclusão, a participação e a democratização do exercício da cidadania plena, é fundamental entender que os discursos estão sempre sujeitos a diferentes interferências e a outros discursos, disse Débora. A lei usa o verbo “resgatar” e implica, na rede de ensino, no direito à igualdade no tratamento da história e das culturas que compõem a nação brasileira e também ao acesso a diferentes perspectivas dessas culturas. “Mas se há necessidade de resgate, é porque algo foi silenciado, invisibilizado e isso precisa ser revisto”, afirmou Débora.
Conceitos: literatura negra e literatura negra-brasileira
Lembrando que literatura afro-brasileira e literatura africana de língua portuguesa são produções originalmente distintas, a pesquisadora apresentou questões essenciais para a discussão, dentro ou fora da sala de sala. Há uma definição mais adequada para essa produção? Literatura negra? Literatura negra-brasileira? Como conceituá-la? Categorizá-la é reduzi-la? A partir de que momento é possível falar dessa literatura? Como estabelecer ou relacionar, por exemplo, uma autora como Conceição Evaristo e um escritor como Lima Barreto?
Sobre definições e conceitos, Débora compartilhou, entre outras, a percepção do professor e pesquisador Eduardo de Assis Duarte, da UFMG. “[...] Vejo no conceito de literatura afro-brasileira uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série que vai de Luiz Gama a Cuti, passando pelo ‘negro ou mulato, como queiram’, de Lima Barreto (1881-1922) –, quanto o dissimulado lugar de enunciação que abriga Caldas Barbosa, Machado, Firmina, Cruz e Sousa (1861-1898), Patrocínio (1853-1905), Paula Brito (1809-1861), Gonçalves Crespo (1846-1886) e tantos mais. Por isso mesmo, inscreve-se como um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua expressão literária.”
Se há necessidade de resgate, é porque algo foi silenciado, invisibilizado e isso precisa ser revisto.
(Débora Alves, editora e pesquisadora)
Um tema muito atual
Para Assis Duarte, é a partir da interação dinâmica de cinco grandes fatores – temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público – que pode-se constatar a existência da literatura afro-brasileira em sua plenitude. Já para o escritor, poeta e dramaturgo Cuti (Luiz Silva), conforme lembrou Débora, há outras considerações importantes sobre essa conceituação. “Denominar de afro a produção literária negro-brasileira (dos que se assumem como negros em seus textos) é projetá-la à origem continental de seus autores, deixando-a à margem da literatura brasileira, atribuindo-lhe, principalmente, uma desqualificação com base no viés da hierarquização das culturas, noção bastante disseminada na concepção de Brasil por seus intelectuais. ‘Afro-brasileiro’ e ‘afrodescendente’ são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento silencioso do âmbito da literatura brasileira para fazer de sua vertente negra um mero apêndice da literatura africana. Em outras palavras, é como se à produção de autores brancos coubesse compor a literatura do Brasil [...] A literatura negro-brasileira nasce da e na população negra e que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil”, ele escreve.
Independentemente de eventuais consensos, tal qual um imaginário que se forma, se articula e transforma no curso e no tempo, como escreveu o sociólogo e escritor Octavio Ianni, a literatura feita por autores negros envolve muitas possibilidades de aprendizado e reflexão com o trabalho de autores contemporâneos como o escritor Jefferson Tenório, autor de O avesso da pele, vencedor do Prêmio Jabuti 2021. Tenório estreou este ano como colunista do portal de notícias UOL, onde publicou recentemente o texto “Recusa ao identitarismo é o novo racismo à brasileira”. “Os autores negros e negras não acordam num belo dia e pensam: vou escrever um livro sobre racismo. Nós acordamos um belo dia e pensamos: vou escrever um livro sobre a vida, sobre a morte, sobre a perda, sobre o luto, sobre a beleza, mas, ao mesmo tempo, somos afetados pelas pautas identitárias, porque existir em coletivo é uma eterna negociação com as identidades”, escreve Tenório, indicando vários caminhos e abordagens possíveis para a prática da leitura nas escolas.
Sugestões de abordagens na sala de aula
“É literatura brasileira feita por brasileiros, uma conversa nem um pouco distante. Ao contrário, gera muitos pontos de identificação, pontos de reflexão importantes”, diz Débora. Entre as múltiplas propostas de abordagens possíveis, três exemplos que ajudaram na construção de sentidos, antes mesmo de o aluno-leitor acessar o enredo das obras. No caso de O avesso da pele, de Tenório, estimular os alunos, por exemplo, já a partir da capa, do título, das inferências. A pintura Trampolim, de Antonio Obá, da série Banhistas – que está na capa do livro –, faz referência à luta dos direitos civis dos negros na América.
A leitura de um poema como Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo, pode ser associada à apresentação de obras como Uma palavra que não seja esperar, escultura de Flavio Cerqueira, ou Bastidores, de Rosana Paulino. Levar para a conversa na sala de aula mais uma visão de Inaldete Pinheiro de Andrade, com uma entrevista da autora, por exemplo, junto com a leitura do livro Uma aventura do Velho Baobá, é outra das sugestões. “A gente encontra muitos baobás inesperadamente em Recife, muitos eu sei onde estão, reconheço, visito. Mas outros são uma surpresa muito agradável de encontrar, e ele me atrai. Meu olhar vai em cima dele. [...] E todos os baobás que menciono no livro existem em Pernambuco”, diz Inaldete num depoimento que Débora apresentou como possibilidade para apresentar aos estudante. A pesquisadora ainda citou dois espaços digitais que atualmente são referência em literatura afro-brasileira, o Literafro e Quilombhoje.
Confira a íntegra com a apresentação de Débora Alves sobre literatura afro-brasileira no vídeo abaixo.
A diversidade na ilustração dos livros
“Ilustração e diversidade na literatura infantil”, o primeiro encontro do segundo dia da Jornada Pedagógica 2022, combinou arte, afeto e as experiências pessoais e profissionais de três ilustradoras reconhecidas pelo talento e qualidade de seus trabalhos. Com mediação da editora Ana Tavares, do selo Pequena Zahar, a conversa teve a participação da ilustradora mineira Marilda Castanha, autora de livros como A quatro mãos, entre outros; da “mensageira visual” Aju Paraguassu, que se autoapresenta como “indígena, baiana e ativista” e é autora das ilustrações da versão adaptada para jovens de Sejamos todos feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie, e da ilustradora, designer e artista visual Isabela Santos, que fez as ilustrações dos premiados Pipo e Fifi e Um Superamigo, destaque na Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha em 2018, e de Eu Também!, de Patricia Auerbach. “A arte pode ser uma estratégia da nossa existência, na medida em que vamos nos formando. Na arte, você está sempre em formação”, disse Marilda Castanha, lembrando que no livro ilustrado texto e imagem estão entrelaçados e a ilustração não está a serviço do texto.
As artistas também falaram sobre os desafios de tratar diversidade e representatividade ao retratar semelhantes e diferentes nos livros que têm feito. “Como mulher negra, tenho produzido muitos trabalhos sobre a infância negra. Para desenvolver um personagem, utilizo a minha vivência. Tive muitos amigos que eram crianças brancas, o que sempre me causou estranhamento porque nada era dito sobre aquilo. Na televisão, eu não via pessoas como eu. Quando você não se vê representada, é difícil lidar com a autoestima. Mas me interesso pela criança negra não só na visão étnica, racial, mas a que fale sobre afetos – que não tem nada a ver com representatividade. É importante reforçar a questão racial porque estamos nesse processo. Mas o negro, o indígena ou o mestiço está em situações cotidianas, de uma inclusão humana, mesmo não sendo um padrão. Para mim, é o que faz sentido hoje”, declarou Isabela.
Para Aju, que atualmente desenvolve um projeto sobre a diversidade de biomas, a questão étnica foi divisor de águas em sua história pessoal e isso se reflete em sua obra. “O livro de Chimamanda chegou para mim quando eu estava falando sobre o processo de me reconhecer como indígena. ‘Tem que chamar uma mulher preta’, eu disse. Mas pessoas de São Paulo me viam como negra. Conversando com amigas que são mulheres pretas, uma delas me disse que se reconhecia em mim. Foi a benção que me veio. É um livro enegrecido para fazer uma interlocução entre Nigéria e Salvador. Tenho muitas crianças ao meu redor, que me fornecem todo o aparado estético para isso. A diversidade pra mim é simples porque a cidade de Salvador [onde ela vive] me oferece isso.”
Confira a íntegra do encontro das artistas visuais no vídeo abaixo.