Um extraterreste que está cansado de se ver retratado como um vilão verde e feioso nos filmes da sessão da tarde. Uma bruxa vaidosa que quer ir além das vassouras e aparecer na televisão. Um pirata que não sabe nadar. E uma sereia que, em vez de cantar para atrair os marinheiros, sonha mesmo em ser estrela do rock. Os quatro personagens têm uma vontade em comum: reivindicar para si uma outra narrativa, diferente das que já imperam por aí. São esses os protagonistas dos quatro livros de cordel criados pela artista recifense Mariane Bigio, mais conhecida como Mari Bigio, e que apresentam para os pequenos leitores figuras já conhecidas do imaginário popular, aqui representadas como um convite para acessar outras chaves de interpretação do mundo e das histórias. Eles inauguram com chave de ouro a Coleção Canoa, projeto encampado pelo segmento infantil do Grupo Companhia das Letras, que pretende tornar a leitura mais acessível a todos os leitores.
Mari Bigio é a autora de estreia da Coleção Canoa, que lançará livros com preço de capa a R$ 9,90.
Mari Bigio é cordelista, poeta, cantora, musicista, apresentadora de rádio, youtuber e contadora de histórias. Ufa! Plural e em constante movimento, a própria multiplicidade dessas muitas atuações parece dar notícias de sua origem: a cultura pernambucana, diversa e multifacetada por natureza, nascida da oralidade, na boca e no calor das gentes, de onde Mari se alimenta para criar.
Fenômeno nas redes sociais e no Youtube, onde mantém o canal Cordel Animado, Mari está em casa onde quer que tenha palavra, cadência e poesia. Em 2007, ela lançou o cordel A mãe que pariu o mundo, uma narração mitológica da criação do mundo gestado por uma estrela-mulher, criada com o intuito de levar às crianças e às famílias um convite para falar sobre parto normal e a tão temida pergunta “como nasce um bebê?”.
Agora, a artista dá à luz outras quatro novas criações literárias, A bruxa do breu, Uma carta para o pirata, A sereia garbosa e Aliens, a lição, que integram a Coleção Canoa. O projeto nasce de três desejos principais: oferecer narrativas que dialogam com a cultura brasileira, apresentar novos autores e artistas e colocar no mercado livros acessíveis, com preço de capa a R$ 9,90. "Estou bem feliz de embarcar nessa Canoa que pretende chegar onde os navios de grande porte nem sempre chegam. É uma metáfora bonita e significativa pra mim, que venho do cordel, outrora Jornal do Sertão, que informou e até alfabetizou pessoas nos cantos mais remotos do Brasil", defende artista.
Acredito muito que a literatura é essa ponte que conecta cultura e educação, ingredientes primordiais da transformação social. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
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Conheça os livros em ritmo de cordel
A bruxa do breu, Uma carta para o pirata, A sereia garbosa e Aliens, a lição são livros que vão agradar não apenas os pequenos leitores. Nos textos, há também referências engraçadas para os adultos reconhecerem, como o nome das bandas mais famosas do fundo do mar em A sereia garbosa: Tubarão Vermelho, Barbatanas do Sucesso, e Fish Floyd, em alusão a bandas famosas do rock nacional e estrangeiro. Os finais dos livros são surpreendentes e quebram estereótipos, superando expectativas e convidando o leitor a recriar junto cada narrativa conhecida.
Contadas em rima e ritmo, as quatro histórias são música para quem lê e para quem escuta, dialogam com as tradições orais da cultura popular brasileira e garantem ao cordel seu lugar cativo no repertório literário das crianças.
A fantasia é o território mais fértil para o diálogo com as crianças. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
O projeto gráfico foi desenvolvido pelo Bicho Coletivo, e um dos sócios do estúdio, Rodrigo Chedid, assina as ilustrações dos quatro primeiros títulos da coleção. Os livros têm a mesma linguagem visual, mas se diferenciam pela paleta de cores, que é única para cada um dos volumes. Além disso, Rodrigo deixou alguns easter eggs espalhados por cada título, como um pôster da sereia no navio pirata, crianças vestidas de bruxas entre os aliens, entre outras surpresas divertidas.
Ninguém melhor que a própria autora para apresentar os livros da maneira mais saborosa. Especialmente para o Blog da Letrinhas, Mari Bigio criou um quarteto de quadrinhas em cordel que são um aperitivo do que o leitor vai encontrar em cada obra:
Uma carta para o pirata
O mais temido pirata
muito bravo e carrancudo
esconde um coração mole
por trás do jeito sisudo
Aliens, a lição
Os Aliens, tão revoltados
embarcaram em missão
ensinaram – e aprenderam!
uma importante lição
A bruxa do breu
Essa bruxa tem vassoura
e assusta toda a gente
mas guarda certa vaidade
é uma bruxa diferente!
A sereia garbosa
Uma sereia seria
sempre séria e recatada?!
Ou seria uma sereia
divertida e despojada?!
Repopularizar o popular e inventar novas identidades
Em 2018, a literautura de cordel foi reconhecida para além de sua existência como um gênero literário, ganhando o título de Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Sem dúvida, um marco para a preservação da memória cultural brasileira. Mas nem só de títulos oficiais é feita a vida prática da literatura, é preciso também ler, reler, significar e ressignificar, equilibrando tradição e contemporaneidade, à luz das transformações sociais.
Assim, quando o cordel ganha as páginas de um livro infantil e assume seu lugar na formação leitora das gerações seguintes, toda a sociedade se beneficia. Declamadores, editores, ilustradores e folheteiros, cada um tem seu lugar na propagação coletiva desse manifesto cultural. Afinal, uma história só ganha corpo quando é lida e compartilhada.
Na entrevista abaixo, a multiartista Mari Bigio conta a história desses lançamentos, e chama a atenção para a importância de ampliar o horizonte de leitura das crianças por meio de narrativas populares que estabelecem pontes com as origens de nossa cultura.
Os livros A bruxa do breu, A carta para o pirata, A sereia garbosa e Aliens, a lição têm em comum o fato de que são protagonizados por personagens conhecidos do imaginário popular. Mas, aqui, eles aparecem em versões contrárias aos padrões e às expectativas do outro, são personagens que não se ajustam e nem querem se ajustar. Podemos dizer que o fio condutor dessa coleção é a busca por uma voz/identidade própria? Como você conectou essas quatro histórias?
Mari Bigio – Sim! Essa busca é algo latente pra mim – e acho que pra muitas pessoas. Passei boa parte da vida tentando me encaixar em certos padrões, aos quais eu simplesmente não pertencia, é doloroso. Mas quando a gente se dá conta de que somos muito mais que um rótulo, é libertador! Parece complexo para as crianças entenderem? De jeito nenhum! Na infância, a gente já começa a perceber nossos gostos, nosso jeito de ser. E o mundo ao redor, logo cedo, já trata de querer nos moldar ao tal "padrão".
É na infância que a gente já pode começar a promover rupturas. Criança é livre, tem que ser. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
Os quatro arquétipos que escolhi (a bruxa, a sereia, o pirata e os alienígenas) são seres fantásticos, mas que traduzem, em muitas histórias, o comportamento humano. A fantasia é o território mais fértil para o diálogo com as crianças, e cada um desses personagens convoca-nos, de forma lúdica, a pensar sobre esses comportamentos. No pântano, numa galáxia distante, na superfície do mar ou metros e metros abaixo dela, seja qual for o cenário, a jornada desses personagens não almeja a salvação, a vitória por meio de batalhas, ou um grande amor. É uma jornada em busca de afirmação, respeito, em busca do seu lugar no mundo – e até no universo.
O texto desses livros é repleto de referências para os adultos reconhecerem e se divertirem junto com a criança. Como você vê a questão do rótulo na literatura infantil? Adultos também podem ser a audiência de um livro chamado “infantil” ou juvenil?
Mari Bigio – Como contadora de histórias, eu sou colecionadora de títulos infantis. Alguns desses livros me comovem tanto quanto um romance denso, me fazem gargalhar mais que muitas das melhores crônicas que já li. Nas minhas apresentações, muitas vezes os pais me procuram para dizer que se divertiram mais que as crianças. Eu acho o máximo! Quando escrevo, esse é o meu objetivo, despertar as emoções independemente da idade, fazer da leitura um momento de encontro entre as mais diversas gerações, uma oportunidade de vínculo, um espaço em que adultos e crianças se igualam em percepção e sensibilidade.
O cordel tem vivido um momento de retomada, desde o reconhecimento pela IPHAN como patrimônio cultural. A literatura infantil não fica de fora dessa, com exemplos potentes como Heróis e heroínas do cordel (2021), organizado por Januária Alves e ilustrado por Salmo Dansa. Como você vê esse movimento?
Mari Bigio – Os ciclos permeiam a história da arte, quiçá da humanidade. A gente parece que cria, mas, na verdade, reinventa o tempo todo. Quando eu "descobri" o cordel, nas aulas da minha professora de Literatura do ensino médio, eu vivi uma espécie de catarse. Como algo pode ser tão completo e complexo, com a dimensão oral, textual, estética? Pra mim, a literatura de cordel é simplesmente arrebatadora, e recebo muitos depoimentos e relatos de leitores que se deparam com essa mesma sensação. O reconhecimento, em 2018, como Patrimônio Cultural, foi algo que arrematou esse "Sonho coletivo chamado Cordel", como diria meu professor e amigo Marco Haurélio. Algo que paira sobre o imaginário de um povo não vive jamais um esquecimento, apenas sai de cena e aguarda na coxia para entrar no palco outra vez.
O Brasil inventou um Nordeste arcaico, de fome, seca, ignorância, e dá muito trabalho – leva muito tempo, pra gente desinventar. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
Parece uma redundância falar em popularizar algo que é popular por natureza, afinal, o cordel nasce justamente da oralidade do povo. O que falta para o cordel ser cada vez mais popular no país e no repertório cultural das crianças?
Mari Bigio – Não pode ser coincidência o fato de a história do cordel se conectar, em profundidade, com a história do Nordeste. Me parece que o mesmo vale para a Literatura de Cordel, que se popularizou massivamente no território nordestino. Ganhou ares pitorescos, folclóricos; algo que funciona apenas em determinadas épocas do ano, no ciclo junino, e em agosto. Isso impede que muita gente tenha acesso a esse tesouro que guarda enredos geniais, além de uma equação perfeita para a alma: rima e ritmo.
O cordel é como música, mas é Literatura, com L maiúsculo. Precisa estar nas escolas, cair na prova do Enem, estar na ementa das disciplinas nas universidades. É patrimônio, é nosso. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
Nos seus livros da Coleção Canoa, o cordel ajuda a trazer humor para temas complexos. Todo assunto pode virar cordel? Como usar o humor das rimas e da musicalidade do cordel para mediar assuntos difíceis com as crianças?
Mari Bigio – Eu sou uma entusiasta do cordel e tenho certeza de que todo assunto pode virar cordel, porque tudo cabe na Literatura. A arte é sobre a vida, ou não é?! O humor, pra mim, não é sempre algo risível... pra mim é inteligência, sagacidade. É com humor, esse humor cheio de sabedoria, que a gente enfrenta os percalços do cotidiano; a mesma lógica funciona pra gente apresentar o mundo às crianças.
Não faz sentido mostrar um mundo perfeito, sem medos, frustrações e perdas. A fantasia existe não pra ser uma fuga, mas pra ser um caminho. (Mari Bigio, cordelista e musicista)
É no fantástico que a gente pode aprender, com leveza, a lidar com as nossas dores, sobretudo na infância. Esse combo de humor, rimas, ritmo, musicalidade é como um portal que acessa o que há de mais profundo na gente. E, vez por outra, ou quase sempre: cura.