Humor na literatura infantil: uma ferramenta sofisticada

21/04/2021

O humor é um recurso que aparece com frequência na literatura infantil e infantojuvenil e pode ser um grande aliado para aproximar as crianças da leitura. Mais do que “apenas” diversão (o que já é bastante coisa nos dias de hoje), o humor pode ser uma ferramenta narrativa sofisticada, que leva as crianças a questionar o mundo que as cerca e a si mesmas. Ele desperta o senso crítico e oferece perspectivas diferentes para situações já conhecidas, subvertendo-as, e mesmo inesperadas. 

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Autor e ilustrador de Uma planta muito faminta, livro recém-lançado pela Companhia das Letrinhas, Renato Moriconi afirma que o bom proveito do erro é uma das características importantes do humor no processo educacional. “O humor não tenta esconder algo errado, ao contrário, o revela e se alimenta dele”, conta o escritor. Alguns de seus trabalhos, inclusive, nasceram de erros não desprezados. “O humor é iconoclasta. Diminui a importância da resposta certa, expõe as contradições do correto, gerando novos debates.”

Uma planta carnívora que come até aviões tem
um final surpreendente e engraçado. Leia +.

No livro, uma planta carnívora insaciável começa a devorar as coisas mais absurdas, como uma vaca paraquedista e um coral de anjos. Quando finalmente fica satisfeita, seu destino é selado pela ironia.

O que os estudos mostram até agora é que o humor tem efeitos benéficos na aprendizagem. Luís Menezes, professor do Instituto Politécnico de Viseu (Portugal) e doutor em educação matemática, explica: “Por norma, o humor coloca o leitor perante uma situação inesperada, ou seja, coloca ‘rasteiras’ à nossa razão, pois as coisas parecem uma coisa, mas, no final, são outra.” 

De acordo com Luís Menezes, o discurso humorístico desafia a nossa cognição, contribuindo para o desenvolvimento da inteligência. “Ao mesmo tempo, ele cria um clima emocional e de bem-estar que, como sabemos, é favorável à aprendizagem, tanto em contexto escolar como não escolar.”

E, claro, "ajuda a tornar a leitura mais prazerosa", como ressalta a escritora Blandina Franco, que criou com seu marido, o ilustrador José Carlos Lollo, o Pum mais amado do Brasil. Para ela, o humor mostra para a criança que "o livro pode, sim, ser divertido. É como um brinquedo”. 

Para quem ainda não conhece e para quem quiser relembrar, dá o play no booktrailer de Quem soltou o Pum?:

A série de livros da dupla tem como protagonista um cachorro muito fedido e querido chamado Pum, que vive escapando por aí. Grande sucesso entre as crianças, os livros são permeados de trocadilhos com os nomes dos personagens, responsáveis pela comicidade das histórias. Desde 2010, já foram lançados seis Puns, inclusive um livro de banho, Soltei o Pum na banheira (Letrinhas, 2020).

Em sua nova aventura impermeável, o Pum
escapou bem na hora do banho! Leia +.

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Quando o humor aparece entre as crianças

Mas a partir de quando a criança desenvolve o humor? E como o humor vai mudando de acordo com a idade da criança? Alessandra Del Ré, que é doutora em linguística pela USP e docente da área na Unesp, tem se dedicado a estudar essas questões nos últimos anos. “Há muitos trabalhos, em geral a partir de um olhar da psicologia, que vão dizer que a criança só produz humor a partir dos 6 anos de idade. Mas, na convivência com elas, nos deparamos com infinitas situações em que a criança diz coisas engraçadas e ri delas muito antes disso”, conta a especialista que, junto a pesquisadores da França, tem buscado a gênese desse humor - afinal, não é do dia para a noite que a criança começa a entender e a dizer coisas engraçadas.

Ela explica que o ponto inicial de tudo acontece no seio familiar. Quanto mais os pais fazem uso do humor, mais a criança vai beber dessa fonte e se inspirar nesse modelo, levando esse recurso para a sua própria linguagem. Mas é importante considerar que a criança não ri exatamente do que riem os adultos.

“Muito do que nós, adultos, entendemos como humor e rimos está ligado a questões culturais, contextuais, políticas etc. E a criança ainda não está nesse universo. Seu universo, inicialmente, é o dos sons, das palavras, das ações. Por isso, assim que começa a produzir sons, ela se diverte brincando com eles. O mesmo acontece com as palavras, com a nomeação de alguns objetos, animais etc”, conta a linguista. 

Em uma de suas pesquisas, Alessandra acompanhou crianças brasileiras e francesas do nascimento até os 7 anos. A partir dos 2 anos, foi possível notar que algumas delas construíam frases longas, com uma linguagem bastante desenvolvida para a idade, mas brincando pouco com as palavras e rindo pouco das situações. Por outro lado, também encontrou outras crianças com a linguagem teoricamente “menos desenvolvida”, mas com uma riqueza de produções humorísticas. 

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Humor de acordo com a idade

Sobre o desenvolvimento dessa percepção de acordo com a idade, Alessandra destaca trabalhos que mostram que a criança de três meses já está no caminho do humor. Ela conta também que há traços de humor escatológico no discurso da criança entre 2 e 3 anos de idade.

“Já entre 4 e 6 anos, a criança ri dos palavrões, do escatológico, dos deslocamentos do cotidiano para o imaginário e vice-versa, de piadas e adivinhas que elas muitas vezes criam, das transgressões ligadas à língua, daquilo que é improvável, que foge da ‘normalidade’ das coisas e dos fatos”, explica Alessandra. 

A compreensão de enunciados irônicos, por sua vez, é uma competência que aparece relativamente tarde, aos 5 e 6 anos. A noção de humor originada do nonsense também demora mais para se manifestar. “Na verdade, ele pode até surgir, mas a criança parece não reconhecê-lo enquanto ‘instrumento’ para fazer rir tão cedo.”

Mesmo com esses apontamentos, Alessandra reforça que é delicado determinar uma idade em que a criança vai produzir este ou aquele tipo de humor. “Muito da produção e compreensão infantil está ligada, inicialmente, a essa microcultura familiar.” 

Um tipo de humor compreendido por crianças a partir dos 8 e 9 anos é o que tem como base as ilustrações, como tirinhas e charges, afirma Luís Menezes. 

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Alguns tipos de humor da literatura infantil

Quais são os tipos de humor encontrados com frequência nas obras de literatura voltadas para a infância? Confira abaixo um levantamento dos mais comuns, com suas características principais e sugestões de livros.

Jogos de sons e palavras: as brincadeiras de palavras com sentidos diferentes e sons semelhantes fazem sucesso entre as crianças bem pequenas, na fase de aquisição de linguagem, em que experimentam com os sons e a morfologia. Os trocadilhos também são jogos de palavras. Alguns livros que usam esse recurso são: Canarinho, cachorrão e a tigela de ração, de Sylvia Orthof, Cantisapos, histocarés e cirandefantes, de Sinval Medina, e a série do Pum, claro.

Duna não quer comer sua ração, mas um canarinho
esfomeado acha a comida deliciosa. Leia +.

Escatologia: muito popular entre as crianças, é relacionado às funções fisiológicas do corpo, como fazer xixi, cocô, soltar pum etc. Os livros do Capitão Cueca e do Superbebê Fraldinha, de Dav Pilkey, são bons exemplos, com seus heróis de roupa de baixo e vilões que são privadas, cocôs e xixis.

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O professor Fraldinha Suja obriga a cidade toda
a adotar um nome besta como o dele. Leia +.

Paródias: são obras que brincam com outras obras já conhecidas do público, deslocando elementos da narrativa e colocando os personagens em situações diferentes, tudo para que o efeito seja cômico. Os contos de fadas são parodiados com frequência, e alguns livros com esse tipo de humor são: Contos de sacisas, Joões e Marias e João e os dez pés de feijão, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta.

Sacinderela e Pererenzel são algumas das sacisas que
subvertem o lugar das princesas indefesas. Leia +.

Ironia: quando se diz o oposto do que se quer dizer ou quando a narrativa tem um final que vai na direção contrária do que havia sido construído no desenrolar da história. Uma planta muito faminta é um exemplo de obra que faz uso da ironia, assim como os dois livros de Jon Agee, da Pequena Zahar, Vida em Marte e O muro no meio do livro.

https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=4203002

Um astronauta busca vida em Marte, mas não consegue
encontrar. Será que ninguém vive lá mesmo? Leia +.

Nonsense: é o recurso aos elementos absurdos, sem sentido ou que não seguem a  lógica. Mais uma vez, Uma planta muito faminta é um exemplo, assim como Fuja do Garabuja, de Shel Silverstein, que também teve nova edição recém-lançada pela Letrinhas.  

 

Capa do livro Fuja do Garabuja, de Shel Silverstein

Um animalário cheio de criaturas esquisitas,
de hábitos mais esquisitos ainda. Leia +.

Humor na escola

Na sala de aula,  Menezes afirma que o humor pode funcionar no discurso oral do professor ou em um suporte escrito (livros e outros materiais). Mas é importante que seja planejado. “Pesquisas mostram que o humor, para funcionar bem, tem de ser planejado pelo professor. O humor espontâneo tem dois problemas: primeiro, não está ao alcance de todos os professores (pois nem todos têm um sentido de humor apurado); segundo, via de regra não está focado nos conteúdos escolares. 

Alessandra Del Ré acredita que as escolas ainda não entenderam como o humor e os jogos de linguagem poderiam ser instrumentos de socialização e aprendizado. Segundo ela, esse recurso poderia não só permear as situações interativas na escola (na relação professor-aluno e mesmo entre alunos), como auxiliar na aquisição da língua falada, no estímulo do imaginário e no desenvolvimento do senso crítico nos alunos – através das histórias em quadrinhos, por exemplo, cujo alvo frequente são os políticos, o mundo dos negócios etc.

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