Ironia na literatura ajuda a ‘ler’ o outro e contribui para a empatia das crianças

12/09/2022

Cada um de nós é dois, e quando eles se encontram, é muito raro que os quatro se entendam. Essa brincadeira dialética é de Fernando Pessoa, e parece contar sobre o desafio e, ao mesmo tempo, o sabor de se relacionar. O que dizemos nem sempre é o que o outro entende. Aliás, frequentemente é o contrário. “A arte mente porque é social”, dizia também Pessoa. Na arte, esse movimento pode ser intencional. Nas histórias para o público infantil, por exemplo, a ironia pode funcionar como recurso literário, um tempero extra do texto escrito ou até mesmo uma ferramenta de narrativa visual. É o caso dos livros ilustrados em que acontece uma “disputa” entre histórias paralelas ou até independentes: palavras dizendo uma coisa e imagens dizendo outra. 

No livro Uma raposa (Companhia das Letrinhas, 2022), de Kate Read, por exemplo, a ironia se mistura ao suspense para apresentar uma história divertida que inverte o sentido das narrativas clássicas sobre raposas e galinhas. Muitos clássicos infantis fazem uso desse recurso literário, é o chamado “contraponto”, que torna as histórias muito divertidas. Quem já viu uma criança apontar para uma cena ou personagem e gargalhar sabe bem do que estamos falando. Jon Agee, por exemplo, é um autor conhecido por inserir esse elemento nos livros, como Vida em Marte e Eu quero um cachorro, da Pequena Zahar, em que o leitor fica sabendo do conflito da história antes do próprio personagem. Outros exemplos de ironia podem ser encontrados nos livros Uma planta muito faminta, de Renato Moriconi, que traz esse recurso no desfecho da história; Uma chapeuzinho vermelho, de Marjolaine Leray, que conta com a esperteza e o humor irônico da Chapeuzinho para derrotar o lobo; e Não!, de Marta Altés, que brinca com o entendimento do cachorro sobre seu próprio nome.

LEIA MAIS: Humor na literatura infantil, uma ferramenta sofisticada

Em Uma raposa, a ironia está a serviço de uma brincadeira de inversão narrativa. Ao contrário do que acontece no imaginário popular, aqui, as raposas precisam fugir das galinhas, que se unem em um motim emocionado para espantar o invasor. Como se trata de um livro de contar – ou counting book –, a narrativa enumera cada elemento da história, acentuando ainda mais a ironia por meio do suspense. 

Capa do livro Uma Raposa, um livro de contar e de suspense

A reviravolta que muitas vezes conduz ao clímax narrativo é só mais um dos motivos para empregar a ironia enquanto figura de linguagem em um livro para jovens leitores. Será que existe um limite de até quando utilizá-la sem prejuízo de interpretação? Quando as crianças começam a apreender a linguagem no ponto em que ela comunica o contrário do que diz de fato? De que formas os livros ajudam nessa percepção?

A psicóloga Ana Carolina Del Nero esclarece que a ironia é uma forma sutil de comunicação não verbal, em que o significado da frase fica subentendido nas entrelinhas. "Para sua apreensão, é necessário um entendimento do outro, de suas circunstâncias, crenças, motivações, pensamentos e emoções. Na psicologia, chamamos esta habilidade de 'Teoria da Mente'. Em outras palavras, precisamos ter empatia para de fato acessarmos o conteúdo irônico de uma frase."

A ironia nos ensina a sair de nós mesmos e nos colocarmos no lugar do outro. (Ana Carolina Del Nero, psicóloga)

Para que ‘serve’ a ironia?

As crianças podem aprender algo com a linguagem irônica, seja em uma narrativa ou no uso cotidiano? Na visão da psicóloga Patrícia Grinfeld, sócia fundadora do Ninguém Cresce Sozinho, plataforma que apoia famílias nos cuidados com a saúde mental na parentalidade e a primeira infância, a resposta é sim. “A ironia diz de uma capacidade de subversão das palavras. Se essa subversão está a serviço do humor, da brincadeira, ela está a serviço do desenvolvimento. Mais do que ter um papel no desenvolvimento infantil, o entendimento e o uso da ironia nos dão pistas do desenvolvimento da criança”.

LEIA MAIS: Compreensão literal da criança: quando é tudo ao pé da letra

A criança apreende a ironia como ela apreende a linguagem. Alguém precisa fazer uso da ironia diante da criança e com a criança. A ironia, assim como outros contextos, não surge de forma espontânea na criança. É preciso que ela seja apresentada, gerando perguntas e interesse para que, enfim, possa ser assimilada e utilizada por ela. (Patrícia Grinfeld, psicóloga)

Esse pensamento nos leva diretamente à potência dos livros, afinal, é ouvindo e contando histórias que as crianças absorvem a linguagem e assimilam as muitas possibilidades de manipulá-la na vida social. A leitura dá às crianças a possibilidade de identificar essas diversas aplicações da linguagem. “Para uma criança entender e praticar ironias é preciso que ela compreenda que as palavras ganham significados diferentes de acordo com as circunstâncias em que são usadas. Chegar nessa compreensão exige um caminho no desenvolvimento da linguagem e do pensamento.”

E a partir de que idade isso acontece? “É difícil determinar a partir de que idade as crianças começam a utilizar a ironia como um recurso na comunicação, mas sabemos que se ela chegou lá é devido a um avanço no seu desenvolvimento”, explica.

Cada criança tem sua linguagem

Para ela, é preciso considerar também que nem todas as crianças desenvolvem as mesmas habilidades ao mesmo tempo. E, mais do que isso, não há um caminho comum trilhado por todas as crianças, cada uma desenvolve sua própria relação com a linguagem, que pode ser mais ou menos incentivada a depender do contexto em que ela vive.

Assim, todo esse processo é atravessado tanto pelos seus recursos próprios como pelo seu entorno. Quem fala com a criança? O que falam? Como as pessoas do seu meio falam entre si? “Num contexto conhecido, a criança começa a entender e praticar ironias por volta dos 6 anos. Por exemplo, se diante da bagunça de seus brinquedos no final do dia a mãe diz: ‘Nossa, que organização!’, ela consegue compreender a ironia pois já sabe o que é organização e o que é bagunça, sabe que depois de brincar os brinquedos precisam ser guardados e sabe o que a mãe espera em relação à organização dos brinquedos. Mas se lhe falta conhecimento da situação, fica difícil compreender a ironia”.

Ilustração do livro Uma raposa, de Kate Read

Ilustração de Uma raposa, livro de contar de Kate Read, publicado pela Letrinhas

Livro infantil Uma raposa, de Kate Read, publicado pela Companhia das Letrinhas

Segundo Del Nero, o amadurecimento cognitivo, afetivo e social necessário para a compreensão da linguagem irônica é construído a partir da estimulação destas habilidades na criança. “Isso pode ocorrer de duas formas: na relação com pais, professores, amigos, e na exposição a obras literárias e artísticas que façam uso desta figura de linguagem. A arte de forma geral apresenta – e representa – a vida em suas camadas mais ricas e complexas, e a ironia tem esta função”, conta.

Quanto mais a criança tiver a oportunidade de entrar em contato com linguagem irônica, mais ela se tornará familiarizada e portanto mais apta a detectar, interpretar e utilizar ironias adequadamente. (Ana Carolina Del Nero)

Os livros e a apreensão da ironia

A literatura (e a arte de forma geral) pode ajudar na relação com a linguagem irônica? “A literatura, a arte de forma geral, favorece, e muito, a ampliação de repertório”, pondera Grinfeld. “A ironia, por definição, envolve entender que as coisas podem ter mais que um sentido, podem ir além do concreto. A arte e a ironia se encontram nesta multiplicidade de sentidos”, defende.

Quanto mais repertório a criança tiver, maior será sua capacidade de construir novos sentidos para suas experiências, inclusive as que envolvem linguagem e pensamento. (Patricia Grinfeld)

É esse repertório alargado que permite à criança identificar quando é saudável e bem-vindo fazer uso desse recurso na hora de se comunicar. Muitos pais podem ter receio de a ironia se transformar em um aliado da teimosia dos pequenos ou da tão famosa “birra”. No entanto, como defendem as especialistas, tudo vai depender da forma como os diálogos e a comunicação de forma geral acontecem no dia a dia com a criança. 

LEIA MAIS: O faz de conta e o pensamento mágico das crianças

Por isso, os livros infantis que apresentam personagens ou situações sarcásticas, contraditórias e cheios de chacotas e deboches não são vilões, e sim mais um mediador de uma relação complexa com a linguagem. Ou seja, a criança não necessariamente se torna sarcástica ao ler uma história com personagens sarcásticas, pois faz parte do desenvolvimento infantil compreender que diferentes contextos demandam diferentes comportamentos. 

Ilustração de Vida em Marte, de Jon Agee, livro ilustrado publicado pela Pequena Zahar

Em Vida em Marte, o astronauta está decidido a encontrar vida em outro planeta, mas não consegue perceber o marciano que está sempre por perto

Para a jornalista e pesquisadora do livro para a infância Daisy Carias, mais conhecida nas redes sociais como A Cigarra, a ironia na literatura pode ser uma janela para os adultos lembrarem como as crianças são altamente perceptivas. “Nunca li uma ironia num livro e me questionei se as crianças iam entender, tudo acontece de forma muito natural e dentro do tempo de cada um. Algumas mães têm um apavoramento diante de livros que as crianças não entendam ou não saquem a ironia”, conta.

Se tem uma coisa que aprendi na maternidade é que as crianças são muito, mas muito mais espertas do que a gente pensa. (Daisy Carias, jornalista e pesquisadora)

Para a psicanalista Gabriela Amaral, garantir uma relação saudável com as figuras de linguagem depende de um equilíbrio entre discurso e prática. “Quando a ironia irrita ou aborrece alguém, a criança precisa ser sinalizada sobre isso e ajudada a encontrar outras formas de se comunicar. A ironia pode ter um caráter também de agressividade, quando algo precisa ser manifestado pela criança, mas ela sente que não deve. 

Página do livro Eu quero um cachorro, um livro infantil cheio de humor e ironia, de Jon Agee, pela Pequena Zahar

Em Eu quero um cachorro, situações inusitadas e irônicas fazem a graça deste livro de Jon Agee

É interessante ajudar a criança a encontrar formas de expressar aquilo que sente. Se queremos incentivar um bom uso da linguagem, incluindo a ironia, temos que ser exemplo para as crianças. (Gabriela Amaral, psicanalista)

Já Del Nero afirma que a interpretação da função da ironia na comunicação (isto é, o humor ou a malícia) é uma habilidade desenvolvida mais precocemente, pois não envolve um entendimento complexo das crenças e intenções do outro. “Inicialmente, a criança desenvolve a capacidade de detectar incongruências no discurso e captar o efeito cômico, malicioso ou ambíguo que a ironia provoca. Porém, a capacidade de inferir o que o interlocutor realmente quer dizer com a fala irônica vai se desenvolvendo mais lentamente, explica.

(Texto de Renata Penzani)

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog