Imagens que transformam, compõem, se opõem e até substituem palavras em narrativas. Assim são os livros ilustrados, que, para um dos maiores ilustradores de livros infantis da atualidade, Odilon Moraes, estão em seu grande momento. “É bonito ver o espaço que o livro ilustrado ganhou dentro da literatura infantil”, diz ele, que foi premiado com o Jabuti já na primeira ilustração de livro infantil, com A saga de Siegfried, de Tatiana Belinky.
É bonito ver o espaço que o livro ilustrado ganhou dentro da literatura infantil.
(Odilon Moraes, autor e ilustrador)
Em uma entrevista exclusiva, que faz parte da série comemorativa dos 30 anos da Companhia das Letrinhas, ele relembra o início da carreira como ilustrador, o primeiro prêmio e fala um pouco de como as últimas três décadas transformaram o mercado editorial infantil. Para o autor, ainda há muito espaço para o livro ilustrado - e muitas histórias ainda hão de vir.
*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais.
Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro e o que mais te marcou nesse processo?
Odilon Moraes - Meu primeiro livro foi A Saga de Siegfried. Na verdade, eu tinha começado a ilustrar em 1990, com um livro paradidático e uma coleção de didáticos de inglês. Eu estava realmente iniciando. Eu até cursava arquitetura, na época. Em 1991, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), eu tinha uma amiga em comum com a Lili [Lilia Schwarcz, fundadora da Companhia das Letras, junto do marido, Luiz Schwarcz] e essa amiga falou de mim para ela. Depois, pediu para eu ir até lá, mostrar meu portfólio. Na hora, eles tinham um texto que era A saga de Siegfried, de Tatiana Belinky. Foi a primeira vez que senti que estava trabalhando com ilustração de literatura. Lembro que, pela primeira vez, a reunião se deu em torno do meu ponto de vista, de como eu via aquela história. Depois, felizmente, eu nem esperava, estava até viajando, quando me ligaram e voltei correndo porque o livro ganhou o Jabuti. Meu primeiro livro ganhou o Jabuti de cara. Então, houve o processo de fazer o livro em primeiro lugar, pensado como literatura, e, em segundo lugar, o fato de que a edição foi vista e premiada.
LEIA MAIS: “O ilustrador é um escritor de imagens”
A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?
Eu acho que nessas três décadas é que começamos a ver o livro ilustrado de uma maneira diferente, dentro da ilustração tradicional. De certa maneira, acompanha e “escreve junto” com a palavra, muitas vezes, no lugar dela. Esse tipo de literatura é até pensado, por alguns, como um gênero, um modo diferente de escrever. Assim como você tem o quadrinho e tem a literatura infantil, você teria o livro ilustrado, que seria uma espécie de narrativa híbrida, vamos dizer assim. A literatura se estrutura na palavra e o livro ilustrado, de alguma maneira, se estrutura também no que a imagem vai contando.
Tem sido uma época muito efervescente nesse sentido. O livro ilustrado não é mais uma novidade, mas ainda estamos vivendo os desdobramentos desse entendimento que passa não só pelo modo de compreender a escrita e a leitura de um livro, mas pelo modo de compreender a edição também. Antes, um escrevia e outro desenhava. Agora, você passa a ter um tipo de escrita que depende da interação entre ambos. Não é um ilustrador que está sendo contratado para ilustrar a obra de alguém. Ele está fazendo a obra junto. A obra tem dois autores. Acho que, nesses trinta anos, vivemos isso dentro das editoras, como um momento de grande importância na discussão da literatura infantil.
O primeiro livro ilustrado por Odilon Moraes para a Companhia das Letrinhas, vencedor do Jabuti
Quais livros infantis foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?
Existem alguns clássicos do livro ilustrado, que são de autores dos anos 1950, 1960. Apesar de serem mais antigos, eles foram traduzidos e publicados aqui no Brasil nos últimos 30 anos. Alguns clássicos dos clássicos são as obras da Beatrix Potter, que a Companhia das Letrinhas trouxe, com As aventuras de Pedro Coelho. Esses livros são uma base fundamental do pensamento sobre o livro ilustrado. Foi muito importante porque, até então, não se conhecia no Brasil. Outro importante é A árvore generosa, de Shel Silverstein. É uma obra fundamental. A terceira é Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak. É um livro de 1963. A Beatrix Potter representa esses fundadores, inventores da linguagem do livro ilustrado e o Sendak cria uma espécie de novo paradigma, o do livro ilustrado contemporâneo.
Já entre as obras que foram criadas mesmo nesses 30 anos, destaco Onda, da Suzy Lee, autora contemporânea importantíssima, com toda a ideia da relação do objeto também dentro do livro. Entre meus top livros ilustrados brasileiros está Vizinho Vizinha, da Companhia das Letras, criado pelos três mestres, Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani. A obra faz exatamente esse jogo também com o próprio objeto. Um lado é um apartamento, o outro é outro apartamento. Na verdade, tudo está acontecendo ao mesmo tempo. Então, a página da direita e da esquerda não representam um andamento temporal como, geralmente, entendemos os livros. Ao contrário, são dois espaços. É uma exploração típica do livro ilustrado. E outro, que, hoje, já podemos dizer que é um clássico, é o Bárbaro, do Renato Moriconi, que tenho o prazer de dizer que foi meu aluno há muito tempo.
Em parceria com Tino Freitas, Odilon faz sua sensível leitura ilustrada do menino que conseguia ver as pessoas invisíveis do nosso dia a dia
Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ficou na sua memória ao longo desse tempo?
Quando falamos de livro ilustrado, o conteúdo não é só abstrato, da literatura. O livro, em si, faz parte dessa história. Então, o modo como você desenha, como as páginas são cortadas, como o livro abre, se abre para cima ou para baixo, tudo isso faz parte dessa literatura. Olha que curioso! O tamanho da letra importa. Mas importa a ponto de mudar o que está sendo dito. Algo que geralmente é menos perceptível, em certo grau, em uma literatura tradicional, mas, no livro ilustrado, qualquer aspecto material está dentro do que está sendo dito. A tecnologia propiciou alguns modos de fazer isso. Quando eu comecei a fazer livros, tinha editoras que me pediam para que eu desenhasse em um papel com uma aquarela e depois colocasse outra folha transparente por cima, vegetal ou poliester, e passasse uma canetinha preta, porque, se não fizesse esse sistema, na hora da impressão, podia dar problema. Eu tive um livro que era inteiro rascunhado, que saiu pela Zahar. O rascunho do livro foi fotografado, tratado e editado. Isso era impensável, antes. Se o traço não fosse com nanquim, se fosse à lápis, não saía. Você não podia ter outro modo de expressão que não fosse aquele, da arte final, onde tudo está limpinho e certinho.
A melhoria na captação das imagens também possibilitou modos de expressão mais delicados. Ilustradores como André Neves, por exemplo. Muitas vezes, o original dele tem uma espessura que você não pode colocar no scanner; tem que fotografar. Fotografar o original era algo que não existia. Então, hoje, há um aparato técnico que permite inventar muito dentro da literatura. Não só inventar do ponto de vista da imagem, mas também com possibilidades do objeto. Eu até brinco com a autora genial, que é Angela-Lago. Ela começou a fazer livros nos anos 1980, quando as coisas eram muito precárias do ponto de vista da fabricação. Se fosse uma jovem, como a Suzy Lee; se tivesse começado nos anos 2000, como seria a obra dela? Que possibilidades ela não teria à mão de trabalhar com objetos, diferentes daqueles geniais, mas que tiveram que ser simples, porque a tecnologia não tinha capacidade de acompanhar? Essa possibilidade maior na produção de livros, tanto no sentido do objeto-livro, como na captação de imagens, abriu um caminho completamente novo dentro do mundo da ilustração e do design.
LEIA MAIS: 15 livros para conversar sobre política com as crianças
Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança?
Vou me referir a um fato muito recente. O grupo Companhia das Letras passou a ter junto a Pequena Zahar e a Brinque-Book. São grandes editoras, com grandes catálogos, mas de perfis diferentes. Quando soube dessa junção, num primeiro momento, fiquei preocupado, porque pensei: “Nossa, como vai ser? São três modos diferentes de pensar a própria literatura, desde a fabricação, da forma de fazer contrato, a relação entre autores… São três formas distintas, que funcionam. Até o perfil de cada catálogo muda. Eu lembro que, quando as três eram separadas e eu tinha um projeto, eu podia pensar: “Ah, esse projeto é mais a cara da Zahar” ou “Ah, esse é mais a cara da Brinque-Book” ou “É mais a cara da Companhia das Letrinhas”. Então, acho que é uma responsabilidade muito grande manter essa personalidade de cada editora, com três possibilidades diferentes de pensar a literatura. Se a Companhia já tinha uma grande importância até agora, com a formação desse grupo, isso aumenta - e espero que lidem bem com essa pluralidade de pensamentos.
Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?
Eu acho que as manifestações artísticas, como a dança, o teatro, a literatura e o cinema, cada uma tem o seu nicho. Uma pessoa apaixonada por teatro não necessariamente será apaixonada por cinema e vice-versa. Ou talvez uma pessoa apaixonada por quadrinhos não goste de literatura infantil ou de livro ilustrado. Ou o oposto: tem gente que gosta de livro ilustrado e não gosta de quadrinhos. O livro ilustrado tem tido um boom nesses últimos 30 anos. Você pode dizer, por exemplo, que houve uma época de ouro do teatro e depois passou, mas o teatro continua existindo - talvez não mais em sua época de ouro, mas continua. Então, pode ser que estejamos vivendo a época de ouro do livro ilustrado, mas, talvez isso passe. Porém, o livro ilustrado continua, como um nicho.
O livro ilustrado tem uma característica, que é esse hibridismo na construção de uma história. Muitas vezes, promove algo como um duplo ponto de vista. Você tem histórias em que a palavra fala uma coisa e a imagem fala outra. O leitor tem de se posicionar em um lugar de não-passividade e conseguir conciliar coisas opostas. Nessa oposição, tem algo sendo dito. É como se o dito não estivesse em nenhum dos dois lados, mas na junção, mesmo que essa junção seja uma ligação de oposição. Pode ser uma ligação de complementaridade, mas também pode ser de oposição. A relação de oposição é uma relação também. Alguns estudiosos de livro ilustrado pensam que esse tipo de leitor tem muito a ver com nossa contemporaneidade. Essa coisa de falar que não existe mais um ponto de vista, mas vários. Tem um autor inglês que diz que o livro ilustrado é a escrita pós-moderna. Muita gente acha que daí, talvez, venha o sucesso do livro ilustrado, que, atualmente, tem sido pensado não só para criança, mas para adultos também, porque virou um modo de construir uma narrativa. Fico pensando que é um modo muito próximo do nosso modo de pensar hoje e que, talvez, daqui a alguns anos, não seja mais.
Talvez, daqui a 20 anos, o livro ilustrado não seja mais o top da literatura infantil, mas vai continuar existindo, apesar de talvez representar um modo de pensar já antigo. Existe também o pedagógico, o estimular a leitura. Aí, entramos em outra seara. Um dia, foi descoberto na literatura que a imagem poderia auxiliar na compreensão do conceito das palavras e isso modificou o modo de pensar o ensino. Daqui a pouco, talvez, o modo de pensar o ensino tenha a ver com a tecnologia do computador, de realidade virtual. Talvez, a partir daí, tenha se descoberto um novo modo de ensinar e que talvez seja válido, assim como pode ser que muita gente tenha achado, quando começaram a colocar as imagens ao lado do texto para ensinar: ‘Nossa, é o fim do ensino colocar imagem! Imagem é pra quem não sabe ler’.
Acho que o livro ilustrado é a descoberta de um novo território dentro da literatura infantil. Esse território está sendo reconhecido, ganhando leitores cada vez mais adeptos, mas a tendência disso não é ocupar espaços a ponto de tirar outros espaços. Essa tradição de contar coisas com imagens já acontecia antes, só que uma hora ela entra no livro, aí ela entra no livro em forma de sequência, aí passa a ter outra participação na história, isso vai continuar andando assim. É bonito ver o espaço que o livro ilustrado ganhou dentro da literatura infantil. A Companhia das Letrinhas é uma casa em que discussões sobre esse tipo de autor e esse tipo de literatura vão ganhar muito terreno. Agradeço pelo terreno que já ganhamos e espero que muito mais espaço para discussões sobre isso ainda venha a ser aberto.
LEIA MAIS: Uma volta pelos primeiros 30 livros da Companhia das Letrinhas