Quando se pensa na leitura de uma biografia, já vêm à mente exemplos de livros feitos para adultos. Que criança poderia se interessar pela vida de um adulto? Todas! Pelo menos no que depender de Luciana Sandroni. A escritora do Rio de Janeiro começou sua relação com a Companhia das Letrinhas justamente contando a trajetória de Monteiro Lobato, autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo, para crianças, em 1997. Em seguida, vieram livros sobre Mário de Andrade, Noel Rosa, Machado de Assis…
“Na ditadura militar, a literatura infantil era uma área que não chamava atenção e, então, muitos autores passaram a escrever livros para crianças”
(Luciana Sandroni, autora)
Em entrevista ao Blog da Letrinhas, Luciana conta que chegou à Companhia das Letrinhas por intermédio de uma amiga, uma das primeiras autoras da editora: Heloísa Prieto. As duas faziam mestrado juntas, à época. Aqui, ela relembra esse início e também conta como a Companhia das Letras mudou, a seu ver, o cuidado que as editoras dispensavam à literatura infantil brasileira dos anos 1990 em diante.
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*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais.
Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro para a editora e o que mais te marcou nesse processo?
Eu estava fazendo um mestrado na PUC-RJ, na área de literatura, com a Heloisa Prieto. Eu já tinha criado uma personagem para crianças, a Ludi, que fala muito da história do Rio de Janeiro, da história do Brasil. Então, quando conheci a Heloisa, comentei com ela que eu estava escrevendo sobre a vida de Monteiro Lobato para crianças. Era uma biografia, com ficção, mas a ideia era as crianças ficarem conhecendo mais sobre a vida dele. Ela já tinha entrado na Companhia das Letrinhas e me deu o contato da Lilia Schwarcz. Lembro que, na época, mandei o livro para ela pelo correio. E ela gostou. E foi muito bacana o encontro.
Então, foi publicado o Minhas memórias de Lobato, em 1997. Ficou um livro bonito, com ilustrações geniais da Laerte. Era um cuidado que eu nunca tinha visto; foi muita dedicação. Depois desse livro, a Lili me deu a ideia de falar sobre a vida do Mário de Andrade, que foi maravilhosa. Fizemos Mário que não é de Andrade (2001) com ilustrações de Spacca. Adorei, porque Mário não escreveu para crianças, mas eu tinha uma relação com ele desde a adolescência, então, foi muito interessante esse convite.
A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos em 2022. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?
Ao estudar literatura infantil brasileira, vemos alguns pontos marcantes. Em 1970, aconteceu o que muitos especialistas chamam de boom da literatura, com nomes como Lygia Bojunga, Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Rui de Oliveira… Tinha muita gente, escritores muito bons. Era uma época em que estávamos na ditadura militar e a literatura infantil era uma área que não chamava atenção. Muitos autores passaram a escrever livros para crianças e falaram o que quiseram. Tinha O rei de quase-tudo, de Eliardo França, Flicts, do Ziraldo, que foram marcos.
Nos anos 1980 e 1990, começa-se a ver muita ilustração. Tem Roger Mello, Graça Lima, Mariana Massarani, Humberto Guimarães, Rico Lins, Ivan Zigg. E na década de 1990, você vê as editoras - muito impulsionadas pela Companhia das Letrinhas - com um empenho na beleza do livro, do objeto livro. Na Companhia, o livro salta aos olhos, a editora passou a cuidar do livro infantil como se cuidava do livro adulto. Tem atenção especial ao projeto gráfico, ao papel, à capa.
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Poderia citar alguns livros infantis que foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?
O cavalinho azul, da Maria Clara Machado, e Reinações de Narizinho, edição de luxo, com organização da Marisa Lajolo.
Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ou ao feedback e interação com os leitores ficou na sua memória ao longo desse tempo? Poderia contar um pouco qual história mais te marcou?
Me marcou muito o lançamento de Minhas memórias de Monteiro Lobato, que aconteceu em São Paulo. Eu sou do Rio de Janeiro, nunca tinha lançado um livro em São Paulo. Foi muito bacana a editora ter proposto isso. Eu estava esperando poucas pessoas e tivemos a ideia de chamar uma atriz para fazer a Emília durante o evento, que aconteceu na livraria de um shopping. A família de Monteiro Lobato indicou a atriz, que chegou fantasiada. Ela era muito boa! Começou a andar pela livraria, pelo shopping, a fazer uma farra com as crianças, vinha perto de mim e perguntava coisas. Lembro que ela dizia: “Eu também tenho que assinar o livro, porque também é meu!”. O Sítio do Pica-Pau Amarelo nem estava na televisão, na época, mas o lançamento foi um sucesso. As crianças ficaram loucas.
Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança?
A Companhia das Letrinhas estimulou editoras com mensagem sobre a qualidade do livro infantil. Esse aspecto de cuidado com o livro infantil, que sempre foi muito depreciado, ficou forte. Os autores eram bons e os ilustradores também, mas não havia tanto cuidado com a impressão, com as cores, essa atenção especial à beleza.
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Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?
A criança segue muito o espírito dos pais. Não vejo problema nenhum em jogos, em computador. São mais uma opção de lazer, não vejo como competição. Mas depende muito dos pais, dos professores e dos adultos ao redor o estímulo à leitura. O livro não perde espaço, acho que não há essa “polarização”, para citar uma palavra que tem sido muito usada. Cada um tem seu espaço. Agora, se a criança só tem o exemplo dessas mídias, acho que o problema não é ela, mas o adulto. Entendo também que demanda mais dos pais porque, para ler, os pais precisam estar junto dos filhos, sobretudo quando se trata das crianças pequenas. Mas precisa ter esse estímulo. O computador e o celular estão na nossa vida diária, o livro, necessita do estímulo.