Poesia para crianças: há quem não acredite. Mas as crianças, sim, essas não deixam dúvidas de que esse gênero de literatura infantil é uma potência. Quando procurou uma editora para lançar De cabeça para baixo, Ricardo da Cunha Lima ouviu várias negativas. No entanto, a Companhia das Letrinhas apostou na obra, que foi lançada no ano 2000 e recebeu quatro prêmios, um deles na Alemanha. O livro continua um sucesso de vendas até hoje, mais de 20 anos depois.
O Brasil tem uma literatura infantil riquíssima, com muitos autores e ilustradores de relevância mundial
Ricardo da Cunha Lima (Autor)
Além deste livro, Ricardo assina outras oito obras de literatura infantil. Depois de 12 anos sem publicar para este público, período em que se dedicou à vida acadêmica como professor de Latim na Universidade de São Paulo (USP), ele lança em 2022 De volta - não poderia ter outro nome! - também pela Companhia das Letrinhas. Aqui, o autor fala um pouco do início de sua relação com a editora, de momentos especiais que viveu com leitores e conta quais são alguns de seus autores preferidos de livros infantis.
LEIA MAIS: 29 livros infantis que já ganharam o Prêmio Jabuti
*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais.
Ricardo da Cunha Lima (Foto: Tito da Cunha Lima)
Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro para a editora e o que mais te marcou nesse processo?
Ainda muito jovem, publiquei quatro livros infantis pela Editora FTD, sendo o primeiro deles em 1984, aos 18 anos, mas, depois, acabei me afastando do mercado editorial. Então, no final dos anos 1990, voltei a procurar as editoras, com um livro de poemas para crianças. Ninguém se interessou. O original foi recusado por mais de 20 editoras e eu já estava perdendo a esperança de retomar a carreira de escritor. Então, entreguei o livro a uma amiga dos tempos da faculdade, Elisa Braga, que trabalhava na Companhia das Letras. Ela gostou do livro e o mostrou a algumas pessoas da Companhia das Letrinhas, a começar pela Lilia Schwarcz, que era a responsável editorial na época. O livro foi muito bem recebido, todos gostaram e logo me procuraram, propondo a publicação. Foi uma felicidade imensa! Depois de tantas recusas, acreditaram em mim!
O livro, intitulado De cabeça pra baixo, foi publicado no ano 2000 e recebeu quatro prêmios, sendo um na Alemanha. Além de receber muitos elogios e ser adotado em várias escolas, ele continua sendo um sucesso de vendas até hoje. O processo editorial deste livro foi incrível, um enorme respeito ao escritor, uma revisão primorosa e um cuidado absoluto na parte gráfica. Lembro de discutir o texto com Heloísa Jahn, que trabalhava na editora e fazia a preparação da obra: ela, que faleceu recentemente, era uma notável intelectual, tradutora, poeta, editora, que me deu muitas sugestões e enriqueceu demais o livro. A Letrinhas buscou o importante ilustrador Gian Calvi, na ocasião afastado do mercado, para fazer as ilustrações, que ficaram maravilhosas. Eu era escutado em todos os detalhes da produção, um respeito que distingue a Companhia das Letrinhas de muitas outras editoras.
A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos em 2022. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?
Tenho mais de 30 anos de carreira, ou seja, acompanhei um pouco a transformação do mercado literário nessas três décadas. Mas, nos últimos doze anos, me afastei completamente do mercado editorial e agora estou voltando. Não por acaso o livro se chama De volta. Mas a percepção que eu tenho é de que o mercado editorial era muito precário há mais de 30, 40 anos. Nem todas as editoras acreditavam nele. Nos anos 1970, houve um movimento de renovação, com alguns autores importantes, como Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Bartolomeu Campos Queiroz. Então, houve um momento de expansão e de valorização do livro. Mais editoras entraram no mercado e houve uma tentativa de levar o livro infantil além do rótulo de paradidático, que era aquele livro que servia para ser adotado na escola, com uma moral muito útil. Os livros foram ficando mais bonitos, mais cuidados graficamente, a qualidade da capa, do papel, das ilustrações, muitos novos escritores.
Poderia citar três livros infantis que foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?
O Brasil tem uma literatura infantil riquíssima, com muitos autores e ilustradores de relevância mundial. Fica difícil me restringir assim. Então, para facilitar minha tarefa, vou fazer um recorte e falar somente de poesia. Não vou mencionar livros específicos, mas não posso deixar de citar os nomes de Tatiana Belinky e José Paulo Paes entre os autores que mais me influenciaram e serviram de modelo. Nos meus livros da Letrinhas, fiz poemas em homenagem a ambos. Mais recentemente, um livro de poesia que me marcou foi Cada coisa, de Eucanaã Ferraz (também da Letrinhas). Há nele algumas descobertas geniais, além de um incrível trabalho com a linguagem poética. Quanto aos ilustradores, eles são fantásticos, e, dentre tantos, não pode faltar um nome como Roger Mello, que também é autor de livros importantes e premiados, alguns dos quais pela Companhia das Letrinhas.
LEIA MAIS: 30 anos de literatura infantil brasileira
Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ou ao feedback e interação com os leitores ficou na sua memória ao longo desse tempo? Poderia contar um pouco qual história mais te marcou?
Depois de mais de 30 anos de carreira, eu teria muito o que falar sobre o processo de criação e a produção dos livros, então, prefiro recordar dois momentos muito especiais desse contato com os leitores, entre tantas ocasiões. O que há em comum entre ambos é o reconhecimento inesperado e surpreendente que tive como autor de livros, em situações muito emocionantes. O primeiro aconteceu quando, um dia, um aluno do curso de Letras da USP (onde sou professor) me procurou, no fim da aula, para contar que, quando criança, tinha lido meu livro. Então, tirou da mochila um exemplar meio surrado do livro que havia lido muito tempo atrás, e que pretendia passar ao seu filho. Foi inesperado e emocionante.
O segundo momento aconteceu quando eu fiz um estágio de doutorado na Universidade de Coimbra, em Portugal, em 2006, e, no final do período, decidi doar meus livros de poemas da Companhia das Letrinhas para a biblioteca pública local. Lá chegando, me apresentei à bibliotecária que, para minha incredulidade, disse que conhecia minhas obras. Eu pensei que ela estivesse me confundindo com algum outro autor mais conhecido (já me aconteceu muitas vezes), mas, para meu completo espanto, ela não só foi buscar os exemplares que a biblioteca já possuía, como ainda começou a fazer uma descrição detalhada e uma crítica muito favorável dos meus livros, declarando-se uma fã apaixonada dos meus poemas. Eu fiquei profundamente emocionado. Essas duas histórias mostram, para mim, o alcance inesperado que um livro pode ter, atravessando tempos e distâncias, chegando aonde eu jamais teria imaginado.
Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança?
A Companhia das Letrinhas teve grande impacto no mercado editorial, pois começou num momento em que o mercado de livros infantis era dominado por grandes grupos editoriais de obras escolares, que tratavam a literatura como um acessório “paradidático”. Assim, a preocupação de todas as editoras era com o baixo custo do livro e com a possibilidade de que ele fosse adotado por escolas, com temas palatáveis e subservientes a propósitos didáticos. A Companhia das Letrinhas trouxe um novo olhar, valorizou a qualidade gráfica das obras e buscou o valor literário dos textos, elevando muito o nível artístico dos livros e influenciando todo o mercado. As próprias escolas abriram espaço para esses livros de mais qualidade, reconhecendo a importância da obra literária de alto nível desde a primeira infância.
LEIA MAIS: Cláudio Thebas: “Literatura para crianças não é livrinho”
Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?
Essa é uma questão que muito me preocupa, pois temo uma diminuição do espaço do livro na formação cultural das crianças e, principalmente, na busca espontânea da literatura como entretenimento e lazer. Assim, por um lado, acredito no aprimoramento da literatura infantil, na qualidade crescente dos livros e até mesmo na incorporação, na literatura, de elementos da cultura digital. Mas, por outro lado, temo que o público em geral dedique pouco tempo ao texto literário, exatamente num momento em que a alfabetização e o contato com os livros aumentavam no Brasil.
O que mais me preocupa em toda essa transformação é ver que o mundo digital e as redes sociais já pautam as informações culturais e determinam a circulação da arte. Os meios de comunicação e até as editoras começam a ser influenciadas pela baixa qualidade do universo online, e acabam se adequando e até reproduzindo o nível superficial desse ambiente. Isso se reflete até na bagagem cultural dos estudantes universitários. Estou muito preocupado! Não é uma questão de autores e leitores, mas de toda a sociedade.