Você já se lembrou de algo que aconteceu há muito tempo ao sentir um cheiro específico? O aroma de um bolo já o transportou para sua infância, nos cafés de domingo na casa de sua avó? O cheiro do sal o leva direto para as lembranças de férias na praia? Isso acontece porque as memórias e a permanência delas estão totalmente relacionadas aos sentidos e emoções. Não nos lembramos exatamente do que aconteceu há muitos anos, especialmente de acontecimentos da nossa infância, como o rosto de um parente adorado ou um lugar especial em uma viagem, mas somos capazes de evocar fragmentos daquelas lembranças com associações diversas, explicadas unicamente (e poeticamente) pela nossa mente.
Assim, um avô querido perde seu rosto nas memórias de uma neta, mas sempre que ela avistar tartarugas, vai se lembrar do avô, como acontece no livro Tartaruga, de Ángela Cuartas e Dipacho. Da mesma forma, uma criança poderá se lembrar para sempre do passeio de trenzinho numa viagem especial ou do momento de leitura antes de dormir. Como tornar eternos esses momentos para nossos filhos? Como criar boas memórias afetivas? Do que realmente ele vai lembrar? Como a mente funciona? E de que modo memórias e emoções estão conectadas?
Memórias armazenadas e descartadas
No livro Tartaruga (Companhia das Letrinhas), a autora conta que não se lembra direito do avô, mas se recorda de todos os detalhes das tartarugas - animais de que eles gostavam muito. As experiências e as sensações dos momentos que ela passava com o avô, quando criança, ficaram marcadas pelas tartarugas. Ao lembrar dos animais, da aparência, do jeito, do cheiro, dos alimentos e até da paciência deles, ela se lembra - embora nem sempre isso fique assim tão claro - dos momentos que viveu com ele. E a memória tem mesmo desses truques, graças a algo que nasce com todos os seres humanos e que atende pelo nome de sistema límbico.
“O processo de formação de memórias acontece no cérebro em um sistema chamado sistema límbico”, diz a neuropsicóloga Mariana de Mello Gusso Espinola, professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). “Nesse sistema, temos, primeiro, uma memória de curto prazo, que serve para fazermos as coisas do dia a dia. Depois, nosso cérebro filtra para que as coisas relevantes passem para a memória de longo prazo. São aquelas coisas que lembramos mesmo depois de muito tempo”, explica.
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A neuropsicóloga explica que, se fossemos lembrar de tudo o que acontece, não teríamos espaço para armazenar tanta informação e que, por isso, o que nosso cérebro considera menos relevante acaba sendo “jogado fora”. “Por exemplo, o que você tomou de café da manhã no dia 9 de junho de 2013 não é uma informação importante. No entanto, se nesse dia, no café da manhã, você recebeu uma notícia de que alguém amado tinha morrido, pode ser que você lembre o que estava comendo”, aponta.
Essas limpezas e as concretizações das memórias classificadas como importantes acontecem durante o sono e, por isso, é tão importante dormir bem, por tempo suficiente e em condições adequadas para permitir que o cérebro faça bem esse trabalho.
Memórias ligadas a emoções e sentidos
As memórias ligadas a emoções são as mais acessadas - o que pode explicar, por exemplo, porque a narradora de Tartarugas, se lembra tanto desses animais e de tudo que os cerca - eram os momentos em que ela passava junto do avô, querido, embora ela ache que não se lembra dele. “O sistema no nosso cérebro que é responsável pela memória, o sistema límbico, também é responsável pelas emoções”, aponta a neuropsicóloga. Por isso, para ajudar a guardar uma memória, é importante que se envolva o máximo de sentidos possível - o que é uma dica boa para favorecer a aprendizagem também. “Comida, música, som, visão, cheiro, tudo ajuda”, diz ela. Como o sistema límbico é responsável pela memória e pelas emoções, quando a criança gosta da experiência, ela registra as informações com mais facilidade.
Quanto mais sentidos estiverem envolvidos, melhor será a fixação da memória (Mariana de Mello Gusso Espinola, neuropsicóloga)
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Entre todos os sentidos, o olfato é um dos mais poderosos, quando se trata de guardar memórias porque ele também faz parte do sistema límbico. Segundo Mariana, é o que mais estimulará memórias e emoções. O paladar também tem um papel forte. “Por isso, carregamos tantos sentimentos ligados à alimentação e que muitas pessoas comem para sentirem conforto ou têm boas memórias quando comem algo significativo”, lembra.
O lado não tão bom da história
Emoções fortes e talvez não tão agradáveis, provenientes de acontecimentos negativos, no entanto, também podem se associar a memórias e ficar armazenadas. Aliás, de acordo com a neuropsicóloga da PUC-PR, elas ficam gravadas com uma intensidade ainda maior. Mas tudo tem uma explicação e esta é diretamente ligada à previsão das necessidades. Gravar memórias negativas é um mecanismo de sobrevivência, segundo Mariana. “É importante que lembremos que o fogo queimou e doeu e que você ficou triste e com medo naquela situação, para não queimar a mão novamente”, diz ela. “Além disso, quanto mais forte a emoção, mais memória é associada a ela e, normalmente, sentimos de maneira mais intensa as emoções ruins do que as boas”, aponta.
Seria possível apagar memórias ruins - um trauma de criança, por exemplo -, no melhor estilo do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças? Não - e isso nem seria saudável, na verdade. “Não acessar memórias não é bom para ninguém e mesmo memórias ruins precisam existir”, afirma a neuropsicóloga. Ela explica que, quando tentamos reprimir as memórias, elas acabam voltando, de forma patológica, muitas vezes, com efeitos psicossomáticos, como alergias, doenças autoimunes ou até em questões comportamentais e de personalidade. O mais importante, nesses casos, é que os pais tenham um canal aberto de comunicação com os filhos, para que eles possam trabalhar essas memórias, falar o que sentem e do que se lembram, além de buscar ajuda, quando necessário. “Ao falar, não apagamos as memórias, mas isso ajuda a torná-la menos doloridas e, com o tempo, menos acessadas”, explica.
Por que não lembramos de quando éramos bebês?
Os bebês têm memória, sim, mas, como ainda são imaturos neurologicamente, o processo funciona de uma maneira um pouco diferente com eles. “A percepção dos bebês não é tão estruturada quanto a das pessoas um pouco mais velhas. Além disso, eles ainda não têm linguagem, essencial para construir uma narrativa mental e tornar a memória mais fidedigna”, explica Mariana.
De acordo com ela, é por isso que a memória de um bebê se relaciona mais a sensações, sejam elas de desconforto ou prazer, do que a acontecimentos em si. Conforme ele cresce, amadurece e desenvolve a linguagem, a memória também se desenvolve e o processo vai ficando parecido com o que vivenciam os adultos. “Nos primeiros dois anos, as experiências que ficam mais marcadas estão relacionadas a sensações fortes de conforto e desconforto, justamente por essa falta de maturidade da percepção dos bebês”, pontua.
Podar para crescer melhor
O corpo humano é incrível e tem um sistema muito preparado para adversidades. Você sabia, por exemplo, que nós nascemos com muito mais neurônios do que precisamos na vida? Trata-se de uma reserva, para o caso de termos algum problema. No entanto, quando o organismo percebe que esse volume extra não é necessário, ele acaba fazendo uma espécie de faxina para jogá-los fora e organizar somente o que vai ser útil.
Nas chamadas podas neurais são retirados alguns dos neurônios considerados supérfluos. “Em algumas idades [por volta dos 3, 5 e 7 anos], há a poda dos neurônios que não se desenvolveram tão bem para que os bons neurônios possam se desenvolver melhor”, explica a neuropsicóloga. Esse processo, segundo a especialista, ajuda a melhorar a memória e a aprendizagem.
Por isso, o segredo é: quer que seu filho se lembre de um momento especial? Quer que a criança se recorde de uma história específica? Quer que um livro ou uma música sejam especiais para ele como foram para suas próprias memórias? Capriche no despertar dos sentidos e das emoções. Transforme a leitura em uma experiência multissensorial: inclua alimentos que possam estar relacionados às histórias, músicas que funcionem como trilha sonora para leituras, visitas a locais citados ou leitura em diferentes espaços...
Mais livros sobre memórias (e para matar as saudades)
Além de Tartaruga, outros livros podem abordam o tema da memória e trazem aspectos interessantes sobre as lembranças passadas de geração em geração para os pequenos. Confira as sugestões abaixo:
1. Samambaia canibal: um astuciado antropófago-tropicalista, Tiago de Melo Andrade (Escarlate)
Uma samambaia chamada Caetano ganha um adubo especial, fica forte e sai devorando tudo por aí: pizza, pizzaiolo, banco, banqueiro bilionário e au-au bilu-teteia. Essa é a história do livro que resgata lembranças e referências ao Tropicalismo e ao Movimento Antropofágico, bem como a livros tão diferentes quanto Macunaíma e Chapeuzinho Vermelho, em variadas formas de arte - literatura, música e cultura pop.
2. Catando piolhos, contando histórias, Daniel Munduruku (Escarlate)
A ancestralidade é a importância de saber de onde se veio, por meio de memórias de quem veio antes de nós. Neste livro, Daniel Munduruku resgata tradições de seu povo, transmitidas pela narrativa oral
3. A arca de Noé, Vinícius de Moraes (Companhia das Letrinhas)
Se os sons ajudam na formação e na fixação de memórias, A arca de noé, com poemas de Vinicius de Moraes, é um clássico que não pode deixar de ser lido. Impossível ler sem lembrar das histórias e das músicas que embalam a infância há várias gerações.
4. O pato, Vinicius de Moraes
A famosa canção de Vinicius de Moraes ganhou versão solo neste livro feito para crianças pequenas e pais saudosos, com ilustrações de Silvana Rando. Para apresentar às crianças a canção que ficou gravada nas nossas memórias afetivas: "Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá..."
5. A foca, Vinicius de Moraes
Da mesma série de O Pato, este livro cartonado e com cantos arredondados, ideal para bebês e crianças pequenas, mostra as peripécias da foca - outro poema presente em A arca de Noé.
6. A casa, Vinicius de Moraes
O primeiro livro da série para bebês conta a história de uma casa muito engraçada, que não tinha teto, não tinha nada - e que crianças de 0 a 100 anos vão adorar conhecer e revisitar. Com ilustrações de Silvana Rando
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